terça-feira, 15 de setembro de 2015

"Favorzinho"

(porque acabei de receber mais um pedido)


 

Não há pedido que aterrorize mais um tradutor do que este… Podes fazer-me um favorzinho? É que o favorzinho em questão é quase sempre muito simples. Faz-se num instantinho. Não dá trabalhinho nenhum. Coisinha pouca. Uma página ou duas. Vá… três. Mas a letra é grande. E tem imagens. Bonecos. Como é que se diz? Ah, ilustrações! O texto – texto a sério, com letras – resume-se a meia dúzia de linhas que se traduzem rapidamente. Quatro parágrafos, não mais. É para o marido da prima. Para o vizinho do tio-avô. Para a amiga de infância do colega. Tem de ser feito com uma certa urgência, mas não é preciso ter pressa. Logo à noite, está óptimo. Deus te pague. És um amor.

O favorzinho pode ser traduzir a receita de tarte de limão deliciosa que vinha num blog de culinária. (Eu sei inglês, mas o problema são as “medidas esquisitas”. Baralho-me toda, percebes?) A carta da imobiliária para os emigrantes portugueses que ainda não dominam a língua. É uma obrigação nossa ajudar os compatriotas. (Tentei traduzir com o Google, mas tenho medo que se perca o sentido… Não te importas de dar aqui um jeitinho, pois não?) As instruções de uma máquina de depilação a laser que se comprou na loja do chinês. (Eu sei espanhol, claro. Quem não sabe? Mas é que isto parece “linguagem técnica”, estás a ver?) A canção ou o poema lindíssimos, que encerram em si a sapiência do mundo. (O francês é uma língua muito bonita. Já não a uso desde os tempos da escola, esqueci-me um bocado…) Um gadget qualquer comprado na Amazon a um preço fantástico. (O problema destas cenas é que as instruções vêm sempre em inglês, é uma chatice! Eu é mais filmes, 'tás a ver?)

Melhor do que o simples favorzinho, só mesmo o favorzinho por interposta pessoa. É o chamado favorzinho 2 em 1. Porque já se sabe que o tradutor tem sempre amigos. As famosas “connections”. Infelizmente, nem sempre domina a língua requerida. Parece impossível, mas é verdade. Afinal, o tradutor é um bocado limitado. (Mas não falavas esloveno?! Pensava que tinhas traduzido desenhos animados em japonês… Não és tu que andas a aprender polaco?) Claro que esta falha linguística lamentável pode ser compensada por um colega mais “especializado”. Um colega que fale hindi e que esteja disposto a fazer-nos, a nós, um favorzinho.

O favorzinho também pode ser profissional. O que é bastante mais lixado, sejamos sinceros. É que não há forma de escapar airosamente sem comprometermos o nosso profissionalismo. A nossa competência. Ou o nosso posto de trabalho. Tradutor que é tradutor pode perfeitamente traduzir línguas que não domina, desde que domine línguas aparentadas. Desde que tenha boa vontade, claro está. (Entre o latim, o português, o francês e o espanhol, alguma coisa há-de conseguir perceber de italiano, não?) E, como é evidente, o tradutor pode fazer sempre uma noitada para acabar um trabalho, em nome da "amizade" consolidada ao longo dos anos. (Confio em si para me entregar isso amanhã de manhã…)

O pior de tudo é quando estes favorzinhos todos se misturam, o que não é assim tão raro como parece. Tipo... quando o chefe nos pergunta se conhecemos alguém que possa fazer o favorzinho de traduzir para ontem um texto pequenino em mandarim para o namorado da filha que está a fazer uma tese de doutoramento sobre Mao Tsé Toung.

E a melhor que já me pediram, em 15 anos de profissão. O número 1 do "Top 10 dos Favorzinhos": uma ajudinha para traduzir para francês o manual de instruções de um iate espanhol. Onde o meu filho Diogo até podia passar uns dias de férias, se quisesse. Assim o pai do colega conseguisse pôr o mamarracho a funcionar. Porque ele percebia muito de barcos, mas não percebia patavina de espanhol. Nada de nada. Quando perguntei se o dito manual estava em castelhano, respondeu que não… estava em espanhol. (Ah… não me digas que além de português, francês, espanhol e inglês, também falas castelhano?!) Obviamente que ia começar por tentar desenrascar uma tradução com o Google Translate, para me dar menos trabalho. Depois, era só fazer uma revisão rápida. Ajudar a traduzir um ou outro termo mais complexo. (Aquilo é fantástico, não é? Há muitas empresas que já nem contratam tradutores… Para quê?! É só espetar lá o texto, que ele faz o trabalho todo.)
 

Não é para me vangloriar, mas eu acho que os tradutores são uns seres absolutamente extraordinários. Estamos disponíveis 24h/dia, 7 dias/semana, 365 dias/ano, por quantias irrisórias. Obscenas mesmo. Cumprimos prazos apertados, limitados, impossíveis. Somos claramente arraçados de morcego. Não dormimos, dormitamos. Alimentamo-nos essencialmente de cafeína. Por vezes, também comemos um quadradinho de chocolate para espevitar à noite. Ou uma tablete inteira, dependendo dos níveis de stress. Temos uma relação obsessiva-compulsiva com o nosso computador, que avaria sempre nas piores alturas possíveis. Uma relação de amor-ódio. Na nossa cabeça convivem muitas línguas em simultâneo. Fazemos de tradutor e de revisor. Somos o polícia-bom e o polícia-mau. Mãe, pai, médico, motorista, professor. Mas, no fundo, somos apenas lobos solitários. A nossa existência está directamente dependente da ligação à internet. Por isso, somos peritos em procrastinar. Fazemos uma pausa para ir espreitar o Facebook que dura três horas. Podemos não ter tempo para ir beber um café, mas os nossos amigos sabem que podem desabafar connosco às horas mais estranhas. Estamos sempre "ligados”. Por isso, não me lixem… A malta já aguenta tanta coisa, será mesmo preciso ainda virem chatear-nos com favorzinhos?!




7 comentários:

  1. Magistral, minha cara.
    (e quando mandas o favorzinho terminado e depois se lembram que ainda precisam de umas alteraçõezinhas, que vão no original, claro? Ou quando "ajudam" e mandam uma versão intermédia em portunholinglêsfrancêsalemão, da qual é impossível extrair a ideia original, e choramos, e vamos buscar mais chocolate...)

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  2. Exacto, Gralha! Sendo que a tónica é "e vamos buscar mais chocolate"... ;)

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  3. Oh meu deus!!
    Parece que me estou a ver a mim!
    A melhor que me aconteceu foi quando me pediram para traduzir um CV porque "Eu pus aquilo no Google translate, mas depois saiu tudo torto, com linhas no meio das caixas e sei lá mais o quê! Tu tens mais jeito para estas coisas, fazes-me este favorzinho?"

    Sim, linhas e sei lá mais o quê! A questão nem era a correção do texto, mas a formatação, essa ferramenta do demo!!
    Somos gladiadores, é o que é!
    :)

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  4. LOL, Ana! Acho que um de nós podia bem dar-se ao trabalho de compilar as nossas maiores desventuras profissionais, dava um livro e tanto! Aliás, não percebo como nunca se lembraram de inventar uma heroína qualquer que fosse tradutora. :)

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  5. E como é que consegues dizer que não, Mel?! Eu nunca consigo.. :(

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