terça-feira, 22 de setembro de 2015

Um passarinho a cantar dentro do peito

(porque a definição de José Mauro de Vasconcelos é a melhor)



Há uns tempos atrás, o meu filho Diogo perguntou-me se eu já alguma vez tinha sido subitamente invadida por um sentimento intenso de felicidade. Assim uma coisa que se sente de repente e que nos aconchega a alma. Uma sensação sem explicação. Um bem-estar transbordante. A pergunta saiu-lhe de rajada, um pouco atabalhoada. Desatei a rir. Estava na correria do final do dia, no meio dos banhos e do jantar. Tinha a cabeça a léguas de grandes pensamentos e deu-me para gozar com ele. Disse-lhe que o melhor era guardar aqueles sentimentos esquisitos para ele e não dizer nada a ninguém. Que crescer era começar a ter consciência da nossa estranheza. Que havia coisas que devíamos esconder para não parecermos demasiado maluquinhos aos olhos dos outros. Acabámos os dois a rir e a conversa ficou por ali. Nesta casa andamos sempre na palhaçada. E tem mesmo de ser assim, porque os meus rapazes são uns homens um bocadinho fora do vulgar… muito sentimentais, muito melados, muito filosóficos. Às vezes, isto só vai lá mesmo no gozo. Mas sei que quem lhes conquistar o coração docinho será uma pessoa cheia de sorte.

Ainda não lhe disse, mas percebi perfeitamente o que o Diogo me estava a tentar dizer naquele dia. Ainda não lhe disse, mas foi isso mesmo que senti ao assistir à sua primeira aula de órgão. Uma felicidade tão súbita, tão grande, tão sem explicação aparente. Um passarinho a cantar dentro do meu peito, como dizia o Zézé.

Há oito anos que levo este miúdo às aulas de música. Perdão… que o arrasto para as aulas de música. Primeiro, em Portugal. Depois, na Bélgica. O trompete não era o seu instrumento de eleição, longe disso. Mas foi o que lhe permitiu evitar uma operação aos ouvidos e recuperar a audição parcialmente perdida, quando era pequenino. Quando aqui chegámos, estava fora de questão deixar o trompete. Aliás, foi graças a ele que percebi que o Diogo estava com uma otite e que já tinha a audição novamente afectada, no nosso primeiro Inverno belga dantesco. O problema é que, para se aprender a tocar um instrumento, no âmbito de uma academia de música oficialmente reconhecida neste país, é obrigatório ter aulas de solfejo. À antiga. Duas insuportáveis horas por semana. Por isso, este é o quarto ano em que o Diogo é forçado a ter aulas de solfejo para poder continuar a tocar trompete. É caso para dizer que um azar nunca vem só, coitado.

Este Verão, disse-lhe que podia finalmente deixar o trompete. Que escolhesse outro instrumento mais do seu agrado, se quisesse. Há dois anos que não tem problemas de ouvidos, um recorde absoluto desde o seu nascimento. Para meu espanto, o Diogo respondeu-me que não queria. Que preferia terminar o curso, que já está na recta final. Como está no último ano de solfejo, o professor de trompete propôs-lhe saltar um ano e apresentar-se aos exames mais avançados. No final do ano lectivo, se passar nas audições, ficará com o diploma de estudos musicais da Académie. Não só tem entrada directa no conservatório, como fica com habilitações suficientes para dar aulas de música no ensino básico. É uma coisa de monta, com apenas quinze anos. Principalmente para um miúdo que nunca teve especial queda para a música, ao contrário do irmão. Que entrou nisto obrigado e assim se manteve anos a fio, sem hipótese de escolha. Fiquei satisfeita por ele ter conseguido pôr interesses futuros à frente de interesses imediatos, por assim dizer. Até porque agora dá gosto ouvi-lo tocar trompete. Após anos de puro suplício, em que parecia que tinha uma manada de elefantes em casa, começou finalmente a sair um som delicioso daquele trompete. O professor está farto de o convidar para tocar numa das bandas que dirige, na dos jovens ou até mesmo na dos adultos. Mas o Diogo tem horror do palco, não foi feito para dar espectáculo.

Esta decisão responsável tinha uma condição, que eu aceitei de imediato. O Diogo decidiu aprender um segundo instrumento: violoncelo ou órgão de igreja, consoante houvesse vaga. Disse-lhe que escolhesse o órgão. Primeiro, porque a vaga era garantida… quantos miúdos querem aprender a tocar órgão de igreja?! Segundo, porque a igreja onde decorrem as aulas fica mesmo junto à escola de música, permitindo-lhe deslocar-se sozinho a pé. Admito que estou um bocado cansada de fazer de motorista dos principezinhos. Isto de tomar decisões adultas também implica aprender a ser independente e ganhar autonomia para gerir as suas próprias deslocações. Terceiro, porque o violoncelo é o instrumento do Vasco. Escolhido com apenas dois anos e meio. Abandonado em detrimento do violino, mais adaptado ao seu tamanho minúsculo. Tão ansiado, tão desejado, tão sonhado. Achei que era injusto deixar entrar um violoncelo nesta casa que ele não pudesse tocar. Quarto, porque o Vasco confidenciou-me de imediato que se o irmão escolhesse o violoncelo não havia problema nenhum, ele escolheria o piano quando chegasse a altura. Esta atitude de abnegação tão incrivelmente generosa da nossa coisa pequena comoveu-nos a todos, aqui, em casa. O Diogo escolheu, por isso, o órgão de igreja.

No primeiro dia de aulas, pediu-me para o acompanhar à igreja e falar com o professor. Estava com vergonha. E eu lá fui, maternidade oblige. Felizmente. Caso contrário, teria perdido a oportunidade de ouvir um passarinho cantar dentro do meu peito. O professor explicou-lhe como é que o mostrengo funcionava. Os rudimentos da coisa, vá. Depois, começou a tocar para exemplificar. Por fim, pôs-lhe uma partitura à frente e passou-lhe o comando do mostrengo. Para ele tocar só com uma mão e apenas no teclado, claro. Os botões do ar e os pedais ficaram para mais tarde. Bem como o domínio das duas mãos. Mesmo assim, o Diogo olhou para ele meio assarapantado. “Hein?!”  “Sabes ler partituras, não sabes?”  “Ehhh… sei... mas…”  “Então, experimenta!”  O miúdo demorou tempo a arranjar coragem. Fez mais algumas perguntas para se certificar de que não ia fazer figura feia. O professor exemplificou só mais um bocadinho. Até que o miúdo encheu o peito de ar. Ajeitou o cabelo, endireitou os ombros e pigarreou, como se fosse começar a cantar. E lançou-se. Os preparativos demoraram tanto tempo que eu consegui sacar do iCoiso e aprender a filmar naquele preciso momento. Bom, talvez não tenha demorado assim tanto. É que eu fiquei tão nervosa quanto o Diogo, conheço bem o filho que tenho. Mas quando o vi ali sentado, no meio da paz sepulcral da igreja ao entardecer, a tocar órgão pela primeira vez, senti-me invadir por uma felicidade imensa. Não só pelo feito em si, pelo facto de conseguir ler uma partitura e começar a tocar um instrumento novo de imediato, ainda que titubeante. Senti-me feliz porque o vi utilizar um conhecimento adquirido a duras penas ao longo dos anos para, finalmente – Finalmente! – poder tocar o instrumento que ele tinha escolhido. Fiquei feliz porque o vi feliz. Porque o vi realizado. E isto não tem preço. Senti-me feliz porque, cada vez que isto me acontece, cada vez que sinto um passarinho cantar dentro do meu peito, eu consigo perdoar. Fico mais leve. Penso que quem nos faz tanto mal, ano após ano, mês após mês, também está a perder isto. Todos estes momentos mágicos que compõem o crescimento dos rapazes e que nunca mais se repetirão. Instantes únicos, fugazes, que só quem está aqui a vê-los crescer tem o privilégio de assistir. E eu estou. Nós estamos. Felicidade pura.


 

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