quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Uma semana revisitada

(uma espécie de diário de bordo sem filtros, escrito aos bocadinhos)

 


Quinta-feira, 1 de Outubro
Dia de trabalho complicado. Em Verviers, somos apenas quatro. Metade está de baixa. A outra metade, entravada. Quando atendo o telefone, as pessoas desatam a contar a sua história. Nunca sei se devo fazer de chefe, de secretária, de assistente social ou de coordenadora do centro de documentação.

À noite, vou beber café com os meus antigos alunos de Espanhol. Querem convidar-me para continuar a dar-lhes aulas particulares. Fico comovida.

Nasceu mais um mandarim. São agora 3, resta um ovo. São uns nano-aliens nojentos sem penas, mas comovem-me na mesma.

 
Sexta-feira, 2 de Outubro
As dores esta manhã são insuportáveis. O Pascal decide ir trabalhar comigo. Suspiro de alívio só de pensar que não terei de fazer 100 km ao volante… E que vou tê-lo ao meu lado o dia inteiro. Tão bom!

Chegamos à escola do Vasco a tempo de falar com a directora, à saída. Explico que não nos sentimos muito satisfeitos por deixar a coisa pequena partir na classe verte sem conhecermos melhor a nova professora. Seria mais lógico fazer a colónia depois da reunião de pais, quando a professora soubesse o que a espera. A directora sorri. “Não estou a dizer que a senhora é mãe-galinha… Mas não se preocupe, todaaaa-a-gente-conhece-perfeitamenteeee-o-Vasco-nesta-escola. E pisca o olho ao Pascal.

Fisioterapia no final da tarde. A terapeuta-fofinha diz para ligar urgentemente à especialista em medicina de reabilitação. Estou febril. O braço está quente. “Todo o braço”, frisa. Não percebo o que quer dizer, mas ligo à médica. Deixo recado no atendedor.


Sábado, 3 de Outubro
Levanto-me cedo para levar o Vasco às aulas de ballet em Malmedy. Cada vez gosto mais destas manhãs de sábado a dois. Ele também, sai satisfeito e falador. Diz que adora os exercícios de barra no solo.
 
À tarde, vamos finalmente fazer a “Ballade des Champignons”. Um passeio nos bosques com um especialista em cogumelos (deve ter um nome científico qualquer). Esqueço as dores. No início, só encontramos cogumelos venenosos e rimos com a aselhice. Acabamos por sair de lá com o saco cheio. Mal chego a casa, cozinho alguns como o senhor nos explicou. Delicioso! Agora que sei apanhá-los, nunca mais compro cogumelos.

Festa surpresa dos 18 anos do Michael, filho da minha amiga Christine. Nenhum de nós está para aí virado, fazemos um esforço. Ficamos impressionados com o Raúl, que preparou sozinho um buffet faustoso para 65 pessoas. Fico feliz por ela ter enfim tropeçado no príncipe encantado. O Michael reencontra o pai, a madrasta e a irmã, que não vê há anos. Eu seria incapaz de um gesto tão generoso para com um animal que desapareceu da vida do filho. Choro com o discurso da Christine. Tenho tanto orgulho nesta mulher, minha “irmã do coração” como ela diz.
 

Domingo, 4 de Outubro
Obrigo-me a fazer as coisas aos bocadinhos, dormindo pelo meio. Lavar, estender e dobrar roupa. Há que aproveitar o sol, que se faz raro. Faço a mala do Vasco, riscando item por item. A minha cabeça já não é o que era. Faço os almoços e lanches da semana. D. Fuas consegue roubar boa parte. Nos últimos tempos anda insuportável, não sabemos o que fazer.

Às 21h, ligo ao meu pai. Ele aumenta a TV, mas não consigo ouvir os resultados. Procuro informação no Facebook. O Diogo vem perguntar se já sei alguma coisa. O telefone toca passado pouco tempo. Fico incrédula. Ainda estou incrédula quando o Pascal chega, horas depois. Tento explicar, falha-me a voz. Não votei. Foi o senhor da CGD em Bruxelas que me informou que os cadernos eleitorais tinham fechado, no início do Verão. Da embaixada nunca consegui informações. Merda de país. Sinto-me apátrida.

Os bebés mandarins morreram. A mãe cansou-se de andar sempre em cima deles e acabaram por morrer... gordinhos, mas enregelados. Mas estão a progredir, os primeiros foram comidos ainda dentro dos ovos. Pelo menos, deixaram o canibalismo filial.
 

Segunda-feira, 5 de Outubro
Levo o Vasco à escola cedíssimo. Vejo mães de telemóvel na mão a tirar fotos aos meninos, que partem pela primeira vez com a escola. Vejo meninos com malas maiores do que eles. O meu acenou-me calmamente e lá foi, com um pequeno trolley atrás. São muitos anos a virar frangos.

Continuo sem notícias da médica. Hesito em insistir, não gosto de chatear. O Pascal decide rumar comigo ao hospital. Em duas horas estou despachada. O médico acompanha-me à porta. Não percebo. Exames feitos. Braço imobilizado ao peito. Medicamentos num saquinho. Baixa médica passada. Não percebo. Exames mais complexos marcados. Consulta com um cirurgião especializado em ombros marcada para a semana. Não percebo. Diagnóstico: poliartrite. Que sim, que é verdade que causa dores horríveis. Ele percebe. Eu não. Mas é importante ouvir que não estou maluquinha, que o que eu sinto é mesmo muitíssimo doloroso.

No carro, o Pascal diz para não me preocupar. Só depois dos exames mais exaustivos haverá certezas. Talvez não seja isso. Mas não há-de ser grave. As doenças auto-imunes são controláveis actualmente. Não percebo. Não faço ideia do que é a poliartrite, mas as palavras dele deixam-me ainda mais preocupada.

Em casa, corro para a internet. Em português não aparece nada de jeito. Procuro sempre primeiro em português. Passo ao francês. Começo a perceber. Decido não dizer aos miúdos, não vale a pena assustá-los.

Insisto para o Pascal se ir embora, não preciso de babysitter. Provavelmente, fui demasiado bruta. Se fizer um bolo para o jantar talvez compense. Será que consigo fazer bolos só com uma mão? Estou a debater-me com as calças de ganga a pensar no que raio vou vestir que consiga despir com uma mão. D. Fuas decide transgredir a regra e entra no quarto. Olhos postos em mim, começa a fazer chichi no chão. Grito com ele e esconde-se debaixo da cama. Quanto mais grito, mais ele foge a fazer chichi pela casa fora. Escorrega e cai pelas escadas abaixo, aí só grito de susto. Uma vez chegado à sala, a bexiga já devia estar vazia, pelo que passa a algo mais consistente. Vou ao quintal buscar o balde e a esfregona. O pandemónio é total.

Desato a chorar, finalmente. Choro porque me sinto só. Estou farta de estar só, num país estrangeiro. Choro porque me pergunto como raio vou conseguir pagar os exames todos que me marcaram e a operação e o tempo de baixa médica e o raio. Choro porque não sei o que vou fazer à minha vida com uma mão imobilizada. E o resto, que é bem pior. Choro porque tenho raiva do mundo. Consegui chegar aqui, conseguimos chegar aqui. Não é justo.

À tarde, ligo à minha mãe. Tenho a desculpa das eleições. Já passou o choque. É tudo tão relativo. Falo por alto do que se passa, mas gozo com as desventuras do cão. É tão mais fácil brincar com as situações, não a quero deixar preocupada.

O Pascal volta com mais uma caixa de gelado de spéculoos. Percebo que também está preocupado. Faz festinhas ao cão, diz que o que ele fez é sinal de amor profundo ao dono. Que sentiu o meu medo. "Não estou com medo!", digo muito depressa. Ele vai buscar-me gelado, mas primeiro derrete-o um minuto no micro-ondas. O mesmo tempo do Vasco, informa-me.

Antes de me deitar, vou aconchegar o filho pequeno. Fico surpresa por ver a cama vazia.
 

Terça-feira, 6 de Outubro
Consulta de parodontia esta manhã. Estava marcada há meses, tinha-me esquecido. O Pascal, não. Peço encarecidamente ao médico que me dê pouca anestesia, que prefiro sentir alguma dor quando fizer a limpeza das raízes dos dentes. Percebo que não me liga nenhuma, quando o vejo substituir os frascos de anestesia uns atrás dos outros. Concentro-me nas imagens de Portugal que passam no ecrã fixado ao tecto do consultório.

Chegamos a casa mesmo a tempo de me pôr a caminho da cidade do Luxemburgo. Pensei muito se deveria fazer os testes para o concurso de tradutores da Comunidade Europeia, marcados para as 14h. Sei que não tenho hipótese, nunca passarei nas provas de matemática. Tenho uma mão ao peito. A cara completamente anestesiada do nariz ao pescoço. Chove a cântaros. Mas tenho de tentar, pelo menos tentar. Decido tirar a porcaria da tala que me imobiliza e escapulir-me pelas escadas abaixo. Quando o Pascal percebe, já eu arranquei de carro. Não posso continuar a deixar que o homem assuma tudo, a vida dele, a minha, a dos rapazes.

No caminho, fico sem gasolina. As estações de serviço são raríssimas nas auto-estradas na Bélgica, nunca percebi porquê. Ao fim de 50 km na reserva, saio da auto-estrada. Bem-dito Gps. Aproveito e compro um sumo de laranja… que não consigo beber sem entornar metade em cima do vestido. Vou matar o parodontista, já passaram horas desde a anestesia. Como não consigo comer, decido não arriscar a tomar os medicamentos. Percebo que, de facto, a tala resulta mesmo. As dores voltaram em grande.

Chego a horas, mas não arranjo estacionamento. Corro até ao centro de exames, chego 10 minutos atrasada. Um feito. Sou revistada e passo no detector de metais. Tenho de deixar as minhas coisas num cacifo. É estranho, estava a ver que me tiravam a tala. Duas horas e meia de intermináveis perguntas para responder em menos de dois minutos, dou a tortura por terminada. Lixei-me com a pergunta sobre o consumo de cerveja por habitante na República Checa em 2003. Vinha em tonéis para passar para litros. Depois de somar a quantidade consumida em garrafa, em lata, à pressão e mais qualquer coisa. Ah… e pediam a percentagem. Era isto, mais coisa menos coisa. Mas tínhamos uma calculadora à disposição. E dois minutos. Sempre soube que a matemática havia de me lixar a vida com F. Isso e a cerveja, claro.

Regresso a casa, exausta. O Pascal nem discutiu comigo por causa da fuga. Comprou-me mais gelado de spéculoos. Ao jantar, o filho crescido queixa-se do silêncio. "Faz falta o Vasco", disse. O Pascal concorda. Fiz-me de forte, já tenho tantas dores.
 

Quarta-feira, 7 de Outubro
Vamos buscar o Vasco à classe verte. Por 110 euros/três dias bem podiam ter trazido a criançada de volta. Fica estático a olhar para o meu braço imobilizado e não nos cumprimenta. Demora muito tempo a falar. Veio completamente rouco.

A mala veio imunda. A roupa veio imunda. A pouca que veio, claro. Os ténis e o kispo ensopados. E imundos. Mas, pelo menos, vieram. Já não é mau…

À noite, quase janta ao colo do Pascal. Atasca-se a mim aos beijinhos. A coisa pequena precisa de tempo. O Diogo ria, aliviado. Os meus homens todos em casa.
 

Quinta-feira, 8 de Outubro
Recebo um postal que o Vasco me enviou da colónia. Diz que chegou bem, que se está a divertir muito. Pergunta se me estou a divertir (?!). Diz que sente muito a minha falta. Soube depois que foi ideia do Pascal, que foi comprar postais e selos com ele, antes de partir.

Também recebo cinco e-mails do outro. Dizemos sempre “l’autre”, criatura sem nome. “Mas vai pagar?!”, pergunta o Pascal a rir. Claro que não. Criatura imoral. “Mas, pelo menos, ela inovou nos insultos?” Dizemos sempre “elle”, criatura-sombra. Claro que não. Até para isso é preciso imaginação. E inteligência. Já só peço correcção linguística. Insultada, sim, senhora… mas, de preferência, sem ser ao abrigo do “AO for Dummies” e sem erros que me dão urticária.

Jantamos cogumelos, mais uma vez. A sobremesa é gelado de spéculoos, para não variar. Preciso de esvaziar o congelador. Acho que nunca mais vou comer cogumelos na vida. Já nem os posso cheirar.

8 comentários:

  1. Ai, mulher, nem sei o que te diga... Espero que não tarde muito para deixarem de ter necessidade de tanto gelado. Ou, antes: gelado, só por bons motivos. E espero que sejas bem acompanhada por toda a equipa médica, para te porem a funcionar como deve ser. Da equipa familiar nem é preciso falar. Um abraço.

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    1. Obrigada, Gralha! Olha... na verdade, aquilo não conta como gelado se primeiro for derretido no micro-ondas, sabes? :)

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  2. Aiiiii... já uma pessoa não se pode ausentar daqui que é logo uma catadupa de novidades...

    Espero que as dores passem, e definitivamente!

    Quanto às eleições, admito: pela primeira vez na minha vida chorei ao ver os resultados eleitorais!

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    1. Pois, Naná... isto é um blog muito à frente! :)

      Como te compreendo em relação às eleições. A sério que não percebo os resultados. Mas fiquei com a certeza de que nenhum de nós vai voltar para Portugal nesta encarnação...

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  3. Desta vez também não sei que deixar aqui: pelas eleições e pela sua maleita...tendo-me calhado a mim também uma doença autoimune chamada Síndrome de Sjogren. Felizmente para mim não cheguei ainda a esse nível de dor, há outras problemáticas que me têm tocado quase desde que nasci e que, juntando os sintomas, fizeram com que fosse eu a descobrir o que tinha, muito antes de haver Internet...As melhoras e deixe-se mimar pelos seus homens, o stress e a angústia são os piores detonadores das autoimunes!

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    1. Bolas, não deve ter sido fácil fazer um diagnóstico na era pré-internet. Eu nem com o Google lá fui... mas posso dizer com orgulho que comecei a traduzir quando ainda só existiam dicionários em papel!

      Um grande beijinho de coragem para si, Mariana.

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  4. Sei que me repito, mas... pega meia dúzia de abracinhos...
    E beijinhos.

    ...

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    1. Obrigada, Ana. Beijinhos e abracinhos nunca são demais, que eu sou uma criatura melada e melosa!

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