sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Juízos de valor

(onde se tenta com todas as forças ter empatia e se falha redondamente)


Contaram-me uma história pessoal e fiquei chocada. Até hoje. Já passaram muitos dias, mas não consigo esquecer. Continuo chocada. E, acreditem, eu não me choco facilmente. Primeiro, porque sou bastante liberal. Segundo, porque decidi deixar de julgar os outros quando a minha vida deu um trambolhão. Foi mesmo uma decisão consciente. Sei que há várias pessoas que pensam mal de mim e me julgam, movidas apenas por outra versão da história. É tão fácil usar argumentos falaciosos e deturpar a realidade! Ninguém sabe o que se passa no convento até lá estar dentro. Ou melhor, ninguém sabe o que vai na cabeça das pessoas até passar pelo mesmo. E ainda assim… Somos todos diferentes. Perante uma situação idêntica, podemos ter outra estrutura que nos permita lidar com o problema de forma distinta. Não sou melhor que ninguém. Evito sempre fazer juízos de valor. Desta vez, não consegui. E senti-me terrivelmente mal por isso. Fiquei desiludida comigo própria.

Um dos melhores amigos do Vasco veio brincar com ele numa tarde de sábado. Convidei a mãe do menino a entrar. Sem sermos propriamente amigas, costumamos aproveitar para beber um café e pôr a conversa em dia nestas “trocas de filhos”. Ela também é estrangeira, do Médio Oriente. O filho é um aluno brilhante. Muito calmo e doce. Extremamente bem-educado. Miudinho, como o Vasco. São capazes de passar um dia inteiro a brincar, sem ninguém dar por eles. Nós achamos imensa piada ao miúdo e gostamos bastante de o ter cá.

Naquele dia, a mãe pareceu-me um pouco mais em baixo. Não é exactamente a pessoa mais alegre que conheço, mas sempre me pareceu muitíssimo inteligente. Gosto de conversar com ela. Perguntou-me se conhecia algum psiquiatra. Admitiu que estava a anti-depressivos há anos. Que os últimos que o médico lhe prescreveu eram muito fortes e que tinha decidido largar tudo. Sem saber bem o que dizer, avancei uma daquelas banalidades… que gerir um hotel devia exigir muito dela e do marido. Que nunca tinham fins-de-semana, nem pausas a meio da semana, como todos nós. Que devia estar exausta. Ela contra-argumentou de imediato: “E tu, o que estavas a fazer quando eu cheguei?”. Engoli em seco. Estava a traduzir. Sim, também trabalho sem horários.

De chofre, contou-me a história toda. O meu café arrefeceu, sem que lhe tivesse tocado. Há uns anos tinha tido uma menina. Como já tinha 38 anos, pediu ao obstetra para fazer uma amniocentese. Pediu diversas vezes, ele recusou sempre. Que não estava na idade requerida. Que as ecografias mostravam uma bebé saudável e perfeita. Ela sentiu que o médico a tinha negligenciado um pouco, talvez por ser estrangeira e o marido nunca a acompanhar às consultas.

Disse-me que teria abortado de imediato, caso o bebé tivesse algum problema. Perguntou-me se faria o mesmo. Respondi-lhe que, há uns anos atrás, talvez não o tivesse feito. Hoje em dia, fá-lo-ia sem hesitar. Aliás, fá-lo-ia sem hesitar se soubesse que estava grávida. Não quero mais filhos. Ela assentiu e continuou a sua história.

A menina nasceu com trissomia 21. E sofria de um grave problema cardíaco. O mundo desabou. O médico foi alvo de um processo. Ela recusou levar o bebé doente para casa. Não conseguia lidar com aquilo. Não conseguia aceitar. O marido muito menos, recusou-se a criar qualquer ligação com aquela criança. O único que a aceitou incondicionalmente foi o  irmão, o amigo do Vasco. Que não lhe via deficiência nenhuma, quando lhe pegava ao colo. Os meses passaram e a menina foi operada, o problema cardíaco ficou resolvido. Quanto à trissomia não havia nada a fazer, obviamente.

“Sabes alguma coisa sobre trissomia 21?”, perguntou-me. Hesitei. Acabei por admitir que sim, que o centro de documentação onde trabalho pertence a uma associação de pais de crianças deficientes. Não ousei dizer o nome da organização. Ela também não perguntou. “Dei-a para adopção”, confessou.

A mulher que estava à minha frente não verteu uma lágrima, mas estava destruída. Deu a filha para adopção para salvar o filho da responsabilidade de assumir uma irmã deficiente, um dia mais tarde. Para salvar o casamento. Porque serem proprietários de um hotel de sucesso não se compadece com as rasteiras da vida. Porque a família está toda longe e não tem qualquer rede de suporte. Porque não aceitou que lhe fosse negada a hipótese de fazer um aborto. Porque não conseguia lidar com o facto de a bebé não ter cura possível. Deu a filha para adopção porque não sabia o que poderia fazer por aquela filha deficiente.

Felizmente desta vez não pediu a minha opinião. Talvez a minha cara deixasse transparecer o que senti. É raro ficar sem palavras, mas não soube mesmo o que dizer. Seguiu-se um longo silêncio. Lembrei-me que os pais do amigo do Vasco recusaram que o levássemos ao lago de Buchenbach este Verão. E também não quiseram inscrevê-lo na mesma colónia de equitação que o Vasco, porque “só os meninos pobres é que frequentam as colónias da Mutuelle”, apesar de custar uma verdadeira fortuna. E que o amiguinho nunca ficou a dormir cá em casa porque temos muitos animais… Lembrei-me do desvelo com que sempre os vi tratar aquele filho, que se adivinhava tão amado e protegido. E fiquei ainda mais confusa.

Quando a mãe do amigo do Vasco se foi finalmente embora, não fui capaz de continuar a trabalhar. Fiquei à espera que o meu amor chegasse para lhe contar. Porque me senti culpada por julgar aquela mãe. Porque não sabia o que havia de pensar. Sou a favor do aborto. Defendo incondicionalmente o direito de escolha da mulher sobre o seu corpo e a sua vida. Mas nunca entregaria um filho para adopção. O meu amor chegou e, após ouvir a história sem me interromper, também ficou silencioso. É sem dúvida o homem mais frio e avesso a crianças que conheço. Excepto o Diogo e o Vasco, que ama de um amor espantado. Mas o meu amor ficou tão chocado quanto eu.


Ontem, tive um daquele dias fantásticos de Team Building, numa abadia perdida no fim do mundo. Fazia um frio de rachar e tinha muitas horas de caminho pela frente. Talvez seja de referir que parte do percurso foi feito no meio da neve. Estava com um humor de cão. No final do dia, ao ver que as actividades estavam para durar, uma colega pergunta-me se estava preocupada com os horários do Vasco. Expliquei-lhe que não havia problema, que ele devia estar bem melhor do que nós, a divertir-se na festa de anos do amigo no hotel. “Estás a falar do hotel X, perto de tua casa?”, perguntou-me. “Sim. Conheces?” A minha colega não me respondeu. De repente, fez-se luz. “Foste tu que seguiste o caso?”  “Fui. A mãe contou-te?” Disse-lhe que sim. Por coincidência, tinha-me contado há relativamente pouco tempo. Confessei-lhe que aquela história não me saía da cabeça. Que tinha ficado chocada, apesar de tentar não fazer julgamentos de valor. “Não te preocupes, a menina está ótima. E tu gostas muito dela… Lembras-te da bebé X, com quem te fartaste de brincar na primeira festa das famílias a que assististe, quando começaste a trabalhar connosco? Era ela. Este ano, também te vi a falar com a família…”  “É impossível não o fazer, são amorosos. Têm uma energia incrível. Aquela miúda é uma delícia!”  “Então, concentra-te nisso. Esquece o resto.”

Neste caso, nem sequer foi preciso aplicar a teoria dos seis graus de separação. A menina está bem pertinho. Por um lado, conforta-me. Não podia estar melhor entregue. Por outro lado, fiquei ainda mais confusa. Continuo decidida a tentar não fazer julgamentos de valor. Mas hoje pedi ao meu amor para ir buscar o Vasco à festa de anos do amigo. Não consegui. Ainda não consegui encarar de novo esta mãe. O segredo profissional impede-me de lhe contar que conheço a menina. A verdade é que também não sei se adiantaria de alguma coisa. É estranho ver que alguém entregou um filho para adopção para se salvar e acabou completamente destruído. Salvou-se a menina, que tem a gargalhada mais cómica do mundo.

2 comentários:

  1. Mas salvou-se a menina... e a pedrinha que me foi entrando no coração ficou mais leve...
    Eu também lá vou dizendo que não podemos julgar os outros, que quem vive as coisas por dentro é que sabe o que custa... mas não consigo deixar de o fazer, é só humano.
    Dar um filho para adoção ? friamente, percebo, é lógico, faz sentido, sera até melhor para a criança. Mas nunca o conseguiria. Talvez seja a cultura, talvez seja da personalidade de cada um, sei lá, mas não consigo sequer ponderar a possibilidade (mais ainda por estas razões).
    Enfim, bjs e obrigada pelos seus textos e pelo vislumbre que nos vai dando da sua vida !
    AMC (em Lisboa)

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    1. Exacto, AMC... "ainda por cima por estas razões". Mas, se calhar, a nossa sociedade é que nos habituou a que seja aceite que se dê uma criança para adopção porque os pais não têm condições ou são demasiado jovens. Eu não conseguiria, é evidente. Mas esforço-me por aceitar que uma mulher tenha o direito de dizer "eu não consigo"... Seja como for, arcará sempre com as consequências da sua escolha.

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