segunda-feira, 4 de maio de 2015

Com ela aprendi o amor

(porque foi com ela que tudo começou)


 

Com ela aprendi o amor. Não me lembro do ventre que me acolheu, dos braços que me embalaram, da voz primeira que me guiou. Sei que não fui uma criança fácil. Muito menos, uma adolescente. A ânsia de independência e liberdade nunca me abandonou. Mas o amor com que cresci ainda hoje me acompanha. Aquele amor que é feito de demonstrações de afecto. O amor lambuzado. Apertado. Declarado. O colo onde há sempre espaço. O amor feito de beijinhos guardados num lugar especial no pescoço que só ela conhece.

Com ela aprendi a ver com a alma. A ler mundo com os olhos do coração. A almejar o que está para além do óbvio. A procurar a beleza das coisas. Aquilo que não se sabe explicar, mas que se sente.

Com ela aprendi a ser exagerada. Emotiva. A equilibrar estados de espírito. A rir quando a situação puxa o riso e a chorar quando a situação exige lágrimas. Passo facilmente da lágrima ao riso. E vice-versa. Aprendi a não me levar muito a sério.

Com ela aprendi a contar histórias. A construir o fio narrativo. O enredo. Aprendi a valorizar a poesia das palavras. A trabalhá-las, a poli-las. Aprendi o exemplo dos clássicos. As lendas. A mitologia. Cresci rodeada de personagens, os melhores companheiros da infância. E entrei na juventude com o Pessoa e o Eugénio de Andrade.

Com ela aprendi a arte. A arte em todas as suas formas. A arte no museu das janelas verdes. A arte nas noites quentes de jazz na Gulbenkian. Na Companhia Nacional de Bailado. E na Comuna. No silêncio das igrejas. A arte que ela descobria nos postais que volta e meia me oferecia, com reproduções de autores desconhecidos. (E a eterna dedicatória no verso com aquela sua letra deitada.) Com ela aprendi também a procurar a arte nas mais pequeninas coisas. Na vida. Na Feira da Ladra. Na velhota que passa. Na música que se ouve através da janela entreaberta. No menino que ri. No gato que espreita. A arte fugaz do nosso quotidiano.

Com ela aprendi a meter conversa com toda a gente. A fazer amigos. A ser extrovertida. A saber estar. Aprendi a usar vestidos e tranças com laços. A ter uma palavra de atenção para com as pessoas invisíveis que estão à nossa volta. Aprendi a bondade. A boa-educação. Aprendi o mais básico. Também aprendi a desenrascar-me. Aprendi que cozinhar é muito diferente de fazer comida.

Com ela aprendi a ser filha única no meio de três irmãos. A ser especial. A sentir que tinham orgulho em mim. Aprendi que podemos discutir com uma mãe, o amor nunca sai beliscado. Podemos até passar muito tempo sem lhe falar, há palavras que não precisam de ser ditas para serem adivinhadas. Aprendi que as mães são mágicas. São espelhos. Reflectem o que de melhor e pior temos. A nossa dor, os nossos desejos, as nossas lutas, as nossas conquistas. Aprendi que uma mãe põe o coração ao alto, engole conselhos e maus augúrios, para deixar os filhos aprenderem por si próprios.

Com ela aprendi que uma mulher tem de lutar por certas causas. Não pode dar nada por adquirido. Uma Barbie não é apenas uma boneca, é um estereótipo que se deve combater. Não se pode abdicar de nada, demorou-se muito a chegar aqui. A vida exige-nos um certo estoicismo. Temperado na medida certa com inteligência e doçura. Podemos tropeçar, mas caímos sempre como os gatos. Há que cultivar a capacidade de nos reinventarmos, sem nunca deixarmos de nos maravilhar.

Com ela aprendi a ser filha e a ser mãe também. A projectar-me no futuro através deles. E a rever-me no nosso passado. Aprendi a ser família. A aceitar defeitos e qualidades que herdei e que transmito, independentemente da minha vontade. Aprendi a fazer parte de um todo que me ultrapassa.
 
 


E o nosso poema de sempre…

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.


Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

8 comentários:

  1. Obrigada, Gralha. São as saudades a falar...

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  2. As nossas mães são os melhores exemplos de heroínas que temos na vida!

    E quem me dera a mim ser um pouco mais como a minha mãe era, ao invés de ser tamanha "espalha-brasas!" como a minha avó materna (segundo dizem as más línguas...)

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  3. Mas olha que as mãe espalha-brasas também são do melhor, Naná! :)

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  4. Tinha perdido isto, e está excelente!
    Para o meu espírito analítico, haveria que distinguir o que aprendeste com a tua mãe, do que já vinha, do lado dela, nos genes. Palpita-me que a emotividade, a intuição (por vezes, indispensável, mas por vezes falível), e mesmo a rebeldia já vinham nos genes... (esta última possivelmente em duplicado...)
    Mas isso seria outro texto, bem entendido, e perdia-se a poesia...
    Curiosamente, gosto mais da poesia do (teu) texto em prosa, que do poema que lhe juntas... Acho que o Eugénio de Andrade não devia ainda ter lido o Khalil Gibran...

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  5. Já calculava! Mas continuo a não gostar do poema.
    Outra coisa, sobre intuição. Eu aprendi com a tua mãe duas coisas muito importantes sobre a intuição, de que infelizmente só te consegui transmitir uma. A primeira é esta: a intuição é um instrumento cognitivo extremamente potente, quer quando a lógica não é aplicável, quer como crivo corrector da mesma. Porém, e esta é a segunda coisa que aprendi, e a que não te consegui transmitir: a intuição não tem qualquer instrumento de auto-correcção quando dá para o torto. E dá para o torto numa certa percentagem de casos.
    Por exemplo: se conheceres um fanfarrão de 15 anos, não basta "confiares na intuição"; seria necessário inquirir analiticamente, "o que é que isto vai dar daqui por 20 anos"? E, no período subsequente, tentar colher mais dados que confirmassem (ou não) a tendência para a desgraça, antes desta acontecer. Fui claro?

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  6. Ah... mas é que esta coisa da intuição leva o seu tempo a dominar! Tipo treino de jedi, percebes? ;)

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