sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Duas mãos cheias de anos

(porque hoje celebras uma década de vida)



Não gostas de acordar bruscamente. Não gostas de apressar o ritual da noite, antes de te deitares. Gostas de lavar os dentes a ouvir música clássica e de ler um bocadinho na cama. Não és um grande dorminhoco. Nunca foste. Há pouco tempo, disseste-me que era uma perda de tempo.

Adoras comer. De preferência, doces. Chocolate e gomas. Detestas a consistência dos legumes. Mas adoras sopa passada. Gostas da alface da nossa horta, mas o tomate e o pepino dão-te vómitos. Adoras canja. Devoras sushi. E tudo o que é comida chinesa, em especial pato com laranja. Estás sempre pronto a experimentar novos restaurantes, novas gastronomias, novos sabores. Só não te peçam para comer de manhã, és incapaz. Bebes apenas leite com chocolate. Com esforço, umas bolinhas de cereais, que vais pescando distraidamente com a mão enquanto lês.

Tens a sensibilidade à flor da pele. Emocionas-te com facilidade. Choras muito, quando te comoves. Ou quando tens medo de levar um ralhete. Mas depressa passas ao riso. Às gargalhadas tolas. Às vezes, penso que és como o Pessoa, finges tão completamente que chegas a fingir que é dor a dor que deveras sentes. Como se a vida fosse um palco de uma peça de teatro. As emoções além de verdadeiras, também podem ser fingidas. Por isso, voláteis e inconstantes.

Fazes contas de cabeça com uma velocidade assombrosa. E percebes conceitos matemáticos bastante abstractos. Mas fartas-te depressa, se não te sentires motivado. Ou é difícil ou não interessa. Ou exige esforço mental ou não vale a pena.

Perdes tudo, o tempo todo. Ou melhor, as coisas perdem-se. Estragam-se. Partem-se. É como se tu e os objectos quotidianos vivessem em dois planos paralelos. Às vezes, também te perdes. Entras num mundo que é só teu. Que te faz esquecer num segundo o que acabámos de dizer. As ordens e os pedidos. As súplicas. Esqueces tudo. Chega a ser desesperante. Nunca tens pressa. Porque as pequenas contrariedades da vida de todos os dias pura e simplesmente não te conseguem atingir. Sorris e o mundo ilumina-se.

Tocas violino desde os dois anos e meio. Já lá vão sete. E cinco violinos. Vários professores, que não esqueces. Adoras tocar, mas não gostas muito de praticar todos os dias. Por ti, já tocavas na orquestra e nem precisavas de ensaiar. Nunca esqueceste o teu primeiro amor. Espera só mais um bocadinho, já falta pouco para teres as tão desejadas aulas de violoncelo. Mas também querias experimentar a flauta transversal. O piano, nem pensar. É o instrumento do teu irmão, que invejas mas não ousas experimentar.

É muito difícil castigar-te. Porque tu precisas de muito pouco para ser feliz. Se te tiro as consolas, queres brincar com Legos. Se te tiro os Legos, vais brincar para o quintal. Se te tiro o quintal, o que te está mesmo a apetecer é ver televisão. Se te tiro tudo, vais alegremente ler um livro. Sabes bem que isso nunca serei capaz de te tirar.

Baixas sempre a cabeça e franzes o sobrolho, quando te ralho. Ou choras grandes lágrimas de crocodilo ou ris disfarçadamente. Nunca te atinge. Passados uns minutos, apareces aqui em baixo como se nada fosse.

Adoras a sétima arte. Gostas dos grandes clássicos de Hollywood, que duram horas infinitas. Especialmente se, depois, puderes ver os remakes. Nunca gostaste muito de filmes para crianças. Há muito tempo que te levamos connosco a ver filmes para adultos. Tapas os olhos com as mãos quando há cenas de beijos. Ficamos sempre espantados com o alcance da tua compreensão. Fazes as perguntas correctas, tiras ilações assombrosas. Percebes tudo ao mais ínfimo detalhe. Viste o Interstellar. Bridge of Spies. Le Tout Nouveau Testament. The Martian. Le Dernier Loup. Captain Fantastic. E tantos, tantos outros. O dono do “nosso” cinema já te conhece e deixa-te sempre entrar. Choraste tanto quando viste a Famille Bélier, que nos conseguiste emocionar a nós. E o resto das pessoas que estavam à nossa volta.

Adoras viajar, partir à aventura. És um óptimo companheiro de viagens. Nunca te queixas, nunca estás cansado, nunca te fartas. Gostas de tudo. Andas de olhos bem abertos para captar tudo o que te rodeia. As pessoas, a cultura, a arquitectura, a gastronomia, os hábitos. Os sons. A arte. Gostas de museus. Fixas um objecto e só sais dali quando tiveres percebido tudo. Incomodas os guias com mil perguntas, sem qualquer vergonha. O que mais te encanta são as diferenças.

Gostas de brincar no quintal. De chinelos. Ou descalço. Gostas da tua colecção de paus que consegues desencantar nos sítios mais estranhos. No meio das rochas e no centro das cidades. Não precisas de muito para te entreter. Um pau basta. Faz de espada ou de pistola. Gostas de espadas e pistolas e armas em geral. Principalmente se forem antigas. Não percebo porquê, não gostas de guerras. Nem de conflitos de qualquer espécie.

Não és muito dado às novas tecnologias, aos ecrãs, às consolas. Ligas pouco a telemóveis e jogos alienantes. Só acendes a televisão nas manhãs de fim-de-semana, quando acordas antes do resto da tribo. Talvez seja pelo exemplo que tens em casa, mas preferes um bom livro. Ou umas peças de Lego. Entreténs-te muito bem sozinho.

És o menino da mamã. Apegado, melado, mimado. Ainda pedes colo e beijinhos. Gostas de te aninhar em mim. Olhas-te ao espelho e procuras as semelhanças. Não é difícil, somos quase iguais. Mas espero que o teu cabelo se mantenha claro. E tens umas sardas deliciosas que só aparecem no pino do Verão. Procuras também semelhanças de carácter. Queres ouvir-me contar as minhas histórias de infância. Os disparates e as grandes aventuras. Tal como eu fazia, gostas de imaginar as profissões que um dia gostarias de ter. Tal como eu, perdes-te num mundo de escolhas. Podes ser tanta coisa. Podes ser tudo.

Gostas de História. És capaz de passar dias inteiros a ouvir os relatos do Pascal. São uma espécie de palestras que devoras. As Guerra Púnicas. O antigo Egipto. A Segunda Guerra Mundial. Estás sempre a sugerir novos temas. Tens dez anos mas já sabes a diferença entre comunismo e capitalismo. E em que consistiu a Revolução Cultural. Dizes com um ar muito sério: “O dinheiro é o nervo da guerra.”

A música é a tua vida. Desde sempre. É como se o teu corpo fosse movido por uma espécie de música interior. Passas a vida a dançar. A saltitar. Ouves quase sempre música clássica, que conheces na perfeição. Aos primeiros acordes, reconheces os compositores e a obra. Com o teu irmão, gostas de fazer jogos de adivinhas sobre os grandes clássicos. Não lhe ficas muito atrás. Também gostas de música pirosa, dos anos setenta. E de metal. Tens um gosto ecléctico, não fazes distinções qualitativas.

Desde pequenino que transformas gostos passageiros em obsessões. Começaste com as princesas da Disney. Não, primeiro foram os concertos da Mariza. O Noddy. A Pequena Sereia. Star Wars. Kid Paddle. Animais. A mitologia. James Bond. A última foi o Harry Potter. Durante longos períodos de tempo, mergulhas num mundo qualquer que te deixa completamente obcecado e alheado. Depois, passa. Ou passas à próxima obsessão. É cíclico.

Gostas de dinheiro. De ter dinheiro. De gastar dinheiro. Não te preocupas minimamente de ficar sem nada, depois. Fazes contas e mais contas. Pões de um lado e tiras de outro. Adoras passar tempos infinitos a ver lojas de brinquedos. Principalmente o corredor dos Legos. E do Star Wars. Mas também gostas de oferecer prendas. Compraste com as tuas mesadas a prenda de Natal do teu irmão em Setembro. E acho que acertaste em cheio.

Não és um desportista. És extremamente trapalhão. Se houver um buraco num raio de meio quilómetro, é certo e sabido que vais lá cair. Não gostas de jogar basquetebol, mas forças-te a jogar futebol para estares com os teus amigos no recreio. Dizes sempre que o professor de Educação Física te detesta. Morres um bocadinho quando te obriga a correr à volta do lago. Gostas das aulas de natação, onde andas ininterruptamente desde os seis meses. Outros já se estariam a preparar para os Jogos Olímpicos, tu limitas-te a brincar  na água como um golfinho. Gostas de dança clássica, mesmo que não tenhas a flexibilidade, a fluidez, a delicadeza ou a beleza necessárias. Mesmo que não gostes do universo feminino despudorado que te rodeia nas aulas. Gostas do movimento do corpo e da música. E isso chega perfeitamente para estares disposto a contrariar ferozmente a tua natureza duas horas seguidas por semana.

És um diplomata nato. Gostas de agradar. De parlamentar. De manipular. De dar ordens. Exploras na perfeição todas as zonas cinzentas da vida. As nuances e as excepções. Gostas de ser popular, de ser conhecido. De agradar. De seduzir. Gostas de te dar bem com toda a gente. Não gostas que as raparigas te peçam em namoro. Gostas de ter amigas. As tuas “potes”. Tens muitos amigos na escola. E todos gostam de ti. Dos mais pequeninos aos maiores. Adoras quando é o teu dia de tomar conta dos pequeninos da creche, durante o recreio da hora do almoço. Ontem, disseste que um menino tinha cancro e choraste. És uma boa pessoa. Pões uma enorme ternura em tudo o que fazes. É verdade que procuras estar sempre feliz, que pões a tua felicidade à frente de tudo o resto. Mas também é verdade que procuras incessantemente fazer os outros felizes. És, sem sombra de dúvida, a pessoa mais empática que conheço.

Adoras o teu irmão e consegues levá-lo à loucura. Usas e abusas do facto de seres mais pequeno. Gostas de ouvir as suas histórias e de estar com os seus amigos. Queres ser com eles, o mais depressa possível. Segues os gostos do teu irmão de perto, com uma veneração que me comove. Música clássica, Star Wars, Harry Potter, Lego, lutas de espadas, videojogos. Nos últimos tempos, começaste a tentar competir com o Diogo em certos terrenos. Já percebeste que o irrita que saibas mais de história do que ele e gostas de o provocar. Apesar do amor incondicional, tens um grande espírito crítico em relação ao teu irmão. Apontas-lhe os defeitos como ninguém. E espias com curiosidade o estranho mundo da adolescência.

Vives a ler. Num mês, leste a saga toda do Harry Potter. Sete livros com milhares de páginas. Tens sempre um livro perdido nas diferentes mochilas das actividades. Lês e relês, até saberes tudo de cor. Repetes as tiras de BD como se fossem piadas. Gostas de confrontar livros e filmes. Livros e música. Livros e o mundo. Mais do que literatura, gostas de literatura comparada. E eu não posso deixar de sorrir perante a beleza da vida, que me deu um filho que segue naturalmente a minha paixão.

Tens uma memória de elefante. Consegues lembrar-te dos pormenores mais insignificantes. Basta ouvires uma história uma vez para conseguires contá-la nos mais ínfimos detalhes. Fixas as datas e os números. Por vezes, espantas-me com acontecimentos muito longínquos que te vêm à memória. Gostas muito de recordar o passado. Principalmente as histórias engraçadas, que repetes à exaustão.

Fazes hoje dez anos. Uma década. Duas sequências de números. É muito tempo e é tão pouco. Vieste virar a minha vida do avesso e estar-te-ei eternamente grata por isso. Espalhas magia à tua volta. És o meu sol, todos os dias. O melhor filho do mundo. Consigo amar-te infinitamente e, ainda assim, ficar novamente apaixonada sempre que olho para ti. Acho sinceramente que és uma pessoa extraordinária, destinada a uma vida fora do comum. Um pequeno ser estranho, que terá uma vida igualmente estranha. Mas muitíssimo feliz. Porque és a pessoa mais feliz que eu conheço. Sabes ver sempre o lado bom da vida. E isso é raro, Vasco.


Ontem estava a escolher a mais bonita fotografia tua. É difícil escolher porque és muito fotogénico e tens sempre atrás de ti o melhor dos fotógrafos, que te adora. Depois, descobri este vídeo… és tão tu! Com apenas 11 meses, já eras todo tu. A felicidade. A música. A dança. A atenção. O não conseguir estar quieto. A queda para o disparate… para destruir tudo à tua volta, sempre com a mesma curiosidade e alegria de vida. Espero que nunca a percas. Que consigas manter sempre vivo este Vasco pequenino, este Vasco dos 10 anos estreados hoje.

8 comentários:

  1. O Vasco vai adorar ler isto, quando chegar a altura disso <3
    Passem um dia muito feliz.

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    1. Obrigada! Espero que sim, Gralha... e que, nessa altura, ainda se consiga rever nas minhas palavras. <3

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  2. Um grande beijinho de parabéns ao Vasco! E à mamã também, pois sem ela, certamente que nada do que li acima, teria sido possível!

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    1. Uiiii... é uma aventura ser mãe deste rapaz, Célia! Obrigada!

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  3. Fiquei comovida com esta análise/resenha dos 10 anos do mais novo...Como escreveram, o Vasco vai gostar de ler este post de uma mãe que se revê tanto nele, acho que parecem irmãos! E no Vasco vejo tanta coisa da minha filha: perder tudo, adorar ler, saber tudo o que ouviu e leu, também uma boa companheira de viagem, ainda que fosse preciso estar sempre atenta ao rol de coisas que tinham ido na bagagem...Acresce este menino ser tão sensível aos outros, talvez devesse ter desenvolvido mais essa capacidade na minha filha enquanto tinha "poderes" para isso... Tenho mesmo pena que o Vasco não tenha tido "evidências" de que gostávamos de o parabenizar! Diga-lhe que lhe envio os parabéns, que gosto muito de saber que ele é um menino que vive feliz e encontra tantas maneiras de ocupar o seu tempo sem ser a olhar para um écran...E parabéns à mãe Rita por esta obra, se bem que seja bem secundada nessa tarefa pelo resto da tribo! Beijinhos

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    1. Obrigada, Mariana. O Vasco não se interessou muito por ler o meu post (a verdade é que nem perguntei se queria lê-lo e ele também não pediu...), mas quis ler o comentários aqui e no FB. Ainda me vai para a política, este rapaz! :)
      Beijinhos.

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