segunda-feira, 13 de março de 2017

Extracção

(onde um momento de horror se transforma em amor)



O Vasco foi arrancar um dente. Um molar que nasceu torto e nunca se endireitou. Literal e metaforicamente falando. Quando este problema começou, há quase ano e meio atrás, pedi a opinião do meu sogro. Mas foi só mesmo um parecer. Ou dois. Nunca quis misturar as coisas. Os tratamentos foram sempre feitos por outros profissionais. Até que o endodontista disse: “extracção”. E o meu coração encolheu. Até que o ortodontista disse: “extracção”. E o meu coração ia deixando de bater. Até que o dentista disse: “extracção”. E eu pus o coração ao alto e recorri ao meu sogro.

A verdade é que tudo mudou, neste lapso de tempo. Graças ao Vasco, devo confessar. Quando digo que o filho pequeno faz magia, acho que ninguém acredita. Suponho que é preciso conhecê-lo bem para perceber. Tem uma espécie de charme intrínseco que desfaz as barreiras à sua volta. Que cria pontes. Que vai ao encontro das pessoas. Que cativa. Entre o Vasco e os pais do meu amor foi paixão à primeira vista. Enquanto eu me mantinha ferozmente distante, coisa pequena aproximou-se descaradamente. Tornou-se da casa. Às tantas, fica muito difícil não gostar de quem gosta tanto de um filho nosso. Quer dizer, não é que eu não gostasse. Só não queria era ter de sentir afecto por obrigação. Fi-lo durante demasiados anos e sei bem o que me custou. Mas, graças ao Vasco, acho que começámos todos a gostar uns dos outros antes mesmo de haver lugar para grandes convívios. E, quando aos poucos comecei a baixar a guarda, foi como se já nos conhecêssemos há muito tempo. Afinal, temos dois amores em comum…

Assisti a uma das cenas mais ternurentas da minha vida. Tinha tudo para ser pavorosa e, no entanto, foi de uma beleza comovente. Eu estava nervosa. Não consegui comer o dia todo, tinha o estômago embrulhado. Acabei por ficar de fora. Envergonhada, mas fiquei. Achei melhor não insistir, não fosse desmaiar durante o processo. Deixei-me estar no escritório, a espreitar a cena pela porta entreaberta. O meu sogro escondia discretamente os instrumentos que ia tirando, virando-se de costas para o Vasco. A minha sogra deslocava-se estrategicamente, para não assustar. Parecia uma dança coreografada ao pormenor. E iam falando, falando, falando. O Vasco estava descontraído. Distraído. O meu amor ficou o tempo todo de cócoras, ao lado da cadeira, a dar-lhe a mão. A ser apenas presença. E aquela família, que não é minha, tratou um dos meus como se fosse. Demoraram muito tempo. O tempo mais do que necessário. O meu sogro teve o cuidado de cortar o molar ao meio. Tirou uma parte e, depois, a outra. Sem recorrer aos alicates torcionários. Nada fazia medo. Não ouvi um único gemido. Não vi uma lágrima. Só confiança e amor.

No final, insisti para pagar. Tive de insistir muito. Sou coerente com o facto de detestar que me peçam “favorzinhos”. No dia seguinte, o meu sogro ligou para saber do seu “encantador paciente”. E eu fui apanhada de surpresa, a meio do jantar. Mais tarde, com calma, mandei uma mensagem a agradecer. Porque o trabalho tem um custo. Mas a simpatia e o cuidado com que tratam o meu filho pequeno não têm preço.

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