quarta-feira, 15 de março de 2017

Um público pouco exigente

(onde se aprende uma lição)



Coisa pequena andou dois anos a “desaprender” violino, como diz a nova professora. São coisas que acontecem em qualquer processo de aprendizagem. Às vezes, por força das circunstâncias, anda-se para trás. Até que o director da academia deu autorização para o Vasco mudar de professora. Na Bélgica, o ensino musical oficial é bastante rígido… nada que uma mãe tuga enfurecida não consiga contornar. Suponho que também devo ter marcado pontos ao mostrar-me disponível para fazer 60 km, de modo a evitar o ser execrável que dá aulas na dependência de Vielsalm.

Em Setembro, o Vasco começou uma nova etapa. A mais sofrida da sua existência. É um miúdo bafejado pela sorte, essa é que é essa. Basta-lhe ouvir a matéria uma única vez, consegue compreender e reter de imediato. O estudo não é para aqui chamado. O esforço também não. E as mossas no ego muito menos. Custou-lhe horrores admitir que não estava à altura do que seria esperado no 4.º ano. Teve de se adaptar a um novo violino, consideravelmente maior. Teve de recuar no livro e voltar a tocar partições antigas. Teve de corrigir vícios entranhados. A posição do braço, cotovelo, pulso, mão, dedos. Uma e outra vez. Fisicamente foi bastante duro. Psicologicamente foi muito mais. Até porque a nova professora utilizou uns métodos algo espartanos. Também a mim me custou vê-la destruir este miúdo, semana após semana. As críticas eram ásperas e magoavam-no imenso. Houve dias em que o Vasco saiu da aula com a alma aos pés. Creio que muito poucas crianças teriam resistido. Eu sou adulta, mas sou mãe. E a dada altura, disse-lhe que podia desistir. Que o violino devia ser uma fonte de prazer, não de tortura. Que ninguém podia obrigá-lo a tocar todos os dias com espírito de missão. A única obrigação que ele tinha era a escola.

Mas o Vasco foi mais forte do que eu. Foi mais forte do que todos nós, que sentíamos o coração encolhido, sempre que ele arrancava uns sons dilacerantes daquele pobre violino. Este inverno foi interminável em vários sentidos. Para ser totalmente honesta, devo confessar que o filho pequeno me deu uma lição de espírito de sacrifício. E de auto-confiança. O Vasco manteve uma fé inabalável na sua capacidade de superação. Acreditou quando mais ninguém acreditava. E conseguiu. À sua maneira, claro. Uma mistura equilibrada de muito trabalho e de uns pozinhos de magia. Começou a prestar atenção às aulas da aluna bastante mais avançada do que ele, que antecedem as suas. E pôs a lendária memória de elefante ao serviço da causa. Socorreu-se do Youtube para ver vídeos. Na semana seguinte, reconhecia as músicas e os erros habituais da colega já adulta. Começou a fazer pequenos comentários. A inundar de perguntas professora e aluna, com uma sede de conhecimento que comoveu ambas. Aos poucos, foi melhorando. E de permeio conseguiu conquistar a professora.

Há uns tempos, vi-o chegar aos pulinhos. Mal entrou no carro disse-me que a professora tinha comentado toda contente “Este é o meu aluno!”, quando ele fez um dos seus já habituais comentários sobre as músicas da colega. Foi o ponto de viragem. A partir dali, instalou-se uma dinâmica positiva e o ensino começou a fluir. O violino deixou de ranger todas as noites. O sofrimento desapareceu para dar lugar ao trabalho, apenas e só. Mas o Vasco manteve a operação de charme...

Hoje, os alunos da professora foram dar um pequeno concerto. Eram vários alunos de diferentes anos, principalmente principiantes. E um conjunto de cordas, composto por malta mais crescida. O local escolhido foi algo inusitado… um lar de idosos. O Vasco explicou-me tudo direitinho, com grande seriedade: era um público pouco exigente. O público ideal, a bem dizer da verdade. Não poderiam tocar trechos muito longos, porque a capacidade de concentração dos velhotes é bastante reduzida. Parece que adormecem com facilidade. Se desafinassem não havia qualquer problema, pois os problemas auditivos são comuns na terceira idade. De qualquer modo, acontecesse o que acontecesse, haviam de ficar todos contentes por terem animação à hora do lanche. E diz que os velhotes acham sempre piada às crianças. A maior parte das mães (sim, somos quase sempre mães…), pôs-se em debandada. Eu desenrasquei com esforço um cantinho, no meio das cadeiras de rodas. Fiquei entalada entre dois velhotes muito cómicos, tive de conter umas quantas gargalhadas valentes. E ainda tive direito a um cafezinho.

Houve alguns miúdos nervosos, mas o concerto foi um êxito. Lá está… o público foi bem escolhido. Bateram muitas palmas (algumas antes do final das músicas, outras a meio e mais umas quantas a despropósito). No fim do espectáculo, desfizeram-se em elogios. Inclusivamente a mim, quando me viram sair com um violino às costas, do alto do meu metro e meio de gente. Parece que tenho muito jeito... O Vasco só tocou uma música, acho que a professora não quis arriscar. Mas tocou-a extremamente bem. Com aquele seu à-vontade, que contrastava com todos os outros. A professora veio falar comigo depois. Estava espantada. Diz que ele brilha quando toca em público. “É uma força da natureza em ponto pequeno.” Aproveitei para lhe agradecer o que tem feito pelo Vasco. “Temos conseguido recuperar o tempo perdido, hein?”, disse-me. Pois… isso a mim pouco me importa. O que me interessa verdadeiramente é ver que o meu filho voltou a tocar com alegria. Que está feliz e motivado. Expliquei-lhe que não fazia mal, se fosse preciso chumbar de ano. A professora respondeu que ainda tínhamos muito tempo, antes do exame de final de curso, no próximo ano. Que logo se via. De qualquer modo, não era um chumbo, era um “ano joker” para se aperfeiçoar. A ideia agradou-me. A ela, nem por isso. Acha que não vai ser preciso. O Vasco é um lutador, explicou-me. O seu amor pela música vai muito para além do violino. Raras vezes viu um aluno tão trabalhador. Que se eu não me importasse de o levar aos ensaios, para o ano queria que ele fizesse parte do conjunto de cordas. Aceitei o convite, meia atordoada. Sobretudo, envergonhada. Porque eu não acreditei no Vasco. Porque me custou vê-lo sofrer. Porque achei que talvez fosse melhor desistir do violino. Fiquei envergonhada por não ter conseguido ser a mãe que ele merecia.

[ pelo menos, desta vez, lembrei-me de levar a máquina fotográfica… estou em franca melhoria! Comoveu-me ver a professora de cócoras ao lado do Vasco, como se estivesse a transmitir pensamentos positivos ]

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