domingo, 18 de janeiro de 2015

Belgicismos

(que mudaram mesmo a minha forma de estar na vida)


 
Os miúdos não precisam de tomar banho todos os dias (excepto quando têm educação física). O cabelo é lavado de dois em dois dias. Não andam porcos, nem cheiram mal. Não morrem por isso.

Não é preciso mudar de roupa todos os dias (excepto a roupa interior). Não andam porcos, nem cheiram mal. Não vem mal ao mundo, a sério.

Não é preciso ter montanhas de roupa. Os belgas vivem com muito pouca roupa, mas a que têm é de qualidade. O mesmo se passa com o calçado. E com os agasalhos de inverno, claro.

Basta uma refeição cozinhada por dia, ao jantar. Ao almoço, pode-se comer sopa, sandes, iogurtes e fruta. O pão é sempre integral. Leva manteiga, queijo e carnes frias. Ou azeite, ervas aromáticas e rodelas de chouriço assado, no caso do meu filho mais velho gourmet. Toda a gente leva marmita para o trabalho há muitos, muitos anos.

Aos fins-de-semana, quando acordamos tarde, fazemos uma espécie de brunch com ovos, bacon, baked beans, panquecas, fatias douradas, scones, etc. Não há aquela obrigação de passar a vida à roda dos tachos. As refeições (e a comida, em geral) são encaradas com outra descontracção.

Gastar dinheiro em cafés e pastelarias é um desperdício. Quando fazemos um passeio, levo sempre lanche reforçado. E água.

Não é preciso andar com muito dinheiro na carteira. Quanto menos se tem, menos se gasta. O cartão multibanco serve perfeitamente. Aliás, também já adquiri o costume belga de pedir nas caixas do supermercado para acrescentarem mais 10 ou 15 euros ao valor final, quando pago as compras, para ficar com algum dinheiro “vivo”, por assim dizer. Sempre evito uma ida ao banco, onde normalmente levantaria mais dinheiro no ATM.

Preferencialmente, faço compras no comércio local. Nas lojas em segunda-mão (roupa, brinquedos, livros, móveis, coisas para a casa, etc.). Na semana passada, por exemplo, comprei oito copos na loja da Cruz Vermelha por 2 euros. O edifício foi cedido pela Câmara e é gerido por voluntários simpatiquíssimos. Os artigos foram todos doados. Quem tem dinheiro paga, quem não tem, pode levar o que precisa segundo um sistema de pontos. Os 2 euros que gastei vão directamente para ajudar alguém. Economizo na gasolina e não encho os bolsos do senhor sueco, que não conheço de lado nenhum.

Os médicos atendem sempre a horas. Se chegamos dez minutos atrasados às consultas, corremos o risco de já não sermos atendidos. Todas as consultas das principais especialidades são gratuitas até aos 18 anos. E os miúdos são muito vigiados através da escola, embora no início possa parecer estranho. Se estivermos mesmo muito doentes, o médico de família vem a casa, sem cobrar mais pela consulta. Aliás, há uma tabela muito rígida de valores. Os preços andam entre os 25 e os 60 euros no máximo por consulta (e é preciso ser uma especialidade mesmo muito especial!).

A rede de bibliotecas públicas é muito boa, por isso, tornou-se passeio familiar obrigatório todas as semanas. Paga-se apenas uma quantia irrisória pelos direitos de autor e livros para adultos. Normalmente, têm também uma ludoteca repleta de jogos que os miúdos podem trazer para casa, uma mediateca bastante completa com filmes recentes, computadores com acesso gratuito à internet, actividades várias, encontros, etc. Acaba por ser um sítio onde se podem conhecer pessoas interessantes. Além disso, costumam ter livros em segunda-mão para venda em óptimo estado, onde às vezes me desgraço. Também já nos habituámos a ir a livrarias que só vendem livros usados, mas não são bem alfarrabistas. Têm sempre imensas novidades, a preços bem mais baratos. O Vasco adora lá ir, porque encontra sempre bandas desenhadas como novas por 3 euros.
 
Vale a pena ir até ao Luxemburgo todos os fins-de-semana encher o depósito do carro. Aproveito para comprar alguns produtos que são mais baratos do outro lado da fronteira (e produtos portugueses, claro).

Tudo o que não queremos, pode sempre ser útil a alguém. Estou desconfiada que a nossa vizinha do lado nos detesta, dada a nossa… efusividade mediterrânea, digamos assim. Mas isso não a impede de me dar a roupa que já não serve ao filho para o Diogo. Tal como eu levo a roupa do Vasco para distribuir pelas minhas colegas do trabalho, embora a maior parte ganhe mais do que eu. A mais pequena coisa é aproveitada. O Diogo este ano herdou a calculadora que a filha da secretária já não precisava. Não é tanto uma questão de poupança económica, como de gentileza entre as pessoas. Simpatia pura. De defesa de um modo de vida mais ecológico, em que se dá uma enorme importância ao reaproveitamento.

Os cães entram em todo o lado, nos transportes públicos e nos cafés. Nas farmácias, nas lojas, no supermercado. Não se vê animais abandonados, mas também não é permitido vender cães ou gatos nas lojas. E é obrigatório ter um seguro familiar que os inclua, porque de facto, aqui, são considerados parte integrante da família. E a verdade é que o D. Fuas já nos começou a acompanhar muito mais nas voltinhas diárias.

Há uma grande consciência cívica. O voto é obrigatório. As políticas sociais são inatacáveis, sob pena de o país se mobilizar. As escolas têm o cuidado de preparar os miúdos para a vida cívica, discute-se a actualidade política, ensina-se economia doméstica. As crianças são sempre chamadas a participar nos gastos escolares, seja através da boa utilização dos manuais escolares cedidos pela escola todos os anos, seja através da angariação de verbas para ajudar os pais a pagarem uma viagem, por exemplo.

Vale a pena distribuir simpatia à nossa volta, começamos mesmo a encarar a vida com outros olhos. Na Bélgica, as pessoas dão sempre os bons-dias quando entram num estabelecimento comercial. E, quando se despedem no final, desejam um resto de dia feliz. Em qualquer lado se mete conversa, se faz uma brincadeira, se troca um sorriso. Raras vezes, vi gente a reclamar. Há outra calma. Ninguém apita, por exemplo. As pessoas ajudam-se umas às outras. Há uma grande preocupação em facilitar a vida e ajudar o próximo. Há sempre miúdos a vender alguma coisa às portas para angariar dinheiro para um projecto da escola. E são sempre recebidos com um sorriso. Em Malempré, às vezes também eram recebidos com rebuçados.
 
 

3 comentários:

  1. Sim, é uma filosofia de vida muito comum nos países nórdicos, Paula. Quer dizer, "nórdicos" para nós, que viemos da Europa do Sul. Para eles, "nórdicos" são os povos escandinavos... :)

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  2. Sou bastante belga. Deve ter sido de comer tantas bolachas em miúda. Ahahah, piada tão seca.

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  3. Acabaste de inventar uma boa expressão para definir mães descomplicadas, Gralha... "eu cá sou muito belga!" :)

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