(onde realizamos inesperadamente um
sonho)
Andei uns tempos perdida, depois de
ter desistido do meu projecto de empreendedorismo. Por um lado, sentia-me
aliviada por ter conseguido perceber a tempo que aquilo não era exactamente a
minha praia. Por outro lado, instalou-se um vazio que parecia interminável. Uma
escuridão profunda. O que diabo iria eu fazer da vida, em termos profissionais?
Sem os meus diplomas oficialmente aprovados, só podia aspirar a empregos sub-qualificados.
Não me entendam mal… não tenho qualquer problema em arregaçar as mangas e fazer
o que for preciso. Trabalhar nunca poderá ser sinónimo de vergonha, seja lá
qual for o trabalho. O problema é que eu não sei fazer nada. Essa é que é essa.
Toda a minha existência se construiu à volta da literatura e das línguas.
Trabalhei numa biblioteca. E numa livraria. Muito brevemente, numa editora. Dei
aulas de Português. Fui revisora. E tradutora. Geri uma livraria. Escrevi
artigos. Especializei-me em tradução e legendagem. Fui professora de Inglês e
Espanhol, enquanto o processo de reconhecimento dos meus diplomas na Bélgica
estava em curso. Geri um centro de documentação e comunicação, onde ninguém se
importava com as burocracias… E agora, o que raio poderia eu fazer?
Há já vários anos que andava
calmamente à procura de um emprego a tempo inteiro, porque financeiramente era
complicado viver apenas com um part-time.
Quando a “minha” biblioteca encerrou devido ao corte de subsídios, eu já sabia
que seria praticamente impossível voltar a ter a mesma sorte. Na Bélgica, é
preciso diplomas para tudo. Qualquer tipo de trabalho é feito mediante
habilitações próprias. Os poucos empregos que não exigem diplomas, requerem
impreterivelmente experiência. Ora a única experiência profissional que eu
tenho gira em torno dos livros, das línguas, do ensino… ou seja, de
conhecimentos que têm mesmo de ser certificados. Eis-me, então, presa num
círculo vicioso do qual era muito difícil sair. Foi precisamente para tentar
dar a volta a este problema que enveredei pela ideia do abrir um negócio meu, na sequência do insistente pedido do gestor de carreira idealista.
E foi mesmo no escritório do Yannick
que a situação se desbloqueou, como que por magia. Em Janeiro recebi uma das
suas habituais convocatórias, para fazer um ponto de situação. Estávamos em
amena cavaqueira, quando entrou um homem na sala com um passo decidido. Sem
pedir licença, puxou de uma cadeira e instalou-se. Enquanto ligava o
computador, apresentou-se rapidamente: “Sou o chefe do Yannick. Já sei que
desistiu do seu projecto de empreendedorismo, por isso tenho aqui uns empregos
para lhe propor…”. Em apenas cinco minutos, fiquei a saber que os Serviços
Sociais tinham criado um estatuto especial que permite aos desempregados
trabalharem até terem direito ao subsídio de desemprego por completo, deixando
de depender de ajudas sociais. A entidade patronal são os próprios Serviços
Sociais que põem o trabalhador à disposição de um empregador a custo zero. O
tempo de trabalho varia consoante a idade, mas o salário é igual para todos.
Tendo em conta que a maioria dos cidadãos que recebe ajudas do Estado é um caso
perdido, sobram poucas pessoas aptas para o trabalho… como eu. “Você é normal”,
lançou-me o Chefe de chofre. Pela primeira vez na minha vida, a normalidade
deixou-me desconfiada. O facto de o pobre Yannick se contorcer pouco à-vontade
na cadeira também acabou por levantar suspeitas. Como sou lesta de raciocínio
(além de aparentemente normal),
respondi: “Acho que estou a perceber... Vocês devem ter uma quota qualquer de
inserção no mundo do emprego e, como a maior parte das pessoas que recebe
ajudas sociais é pouco dada ao trabalho, eu vou ter mesmo que aceitar um
emprego qualquer que me proponha, certo?” A cara do Chefe abriu-se com um
sorriso: “Você faz parte dos 10% que sobram se excluirmos os toxicodependentes,
os alcoólicos, os que não têm quaisquer estudos, os que sofrem de problemas
psicológicos… e os completamente destituídos”. Fiquei a saber que os "destituídos" são pessoas incapazes de trabalhar por não terem qualquer tipo de
hábitos de trabalho… tipo, as pessoas
que já nasceram dependentes do sistema e que continuam a transmitir essa
dependência crónica à progenitura. “A Rita não se insere em nenhum destes
casos, pois não?” Ehhh… Acenei
lentamente que não e preparei-me para a sentença. “Ora, bem me parecia! Então,
vamos cá ver qual o emprego que mais lhe convém…”.
Vinte minutos volvidos, tínhamos
esgotado todas as fantásticas ofertas do Chefe. O Yannick parecia cada vez mais
infeliz. Eu estava a ficar ligeiramente em pânico. A “proposta” era clara: se
eu não aceitasse nenhum trabalho, arriscava-me a ficar sem o complemento do
subsídio de desemprego que os Serviços Sociais me pagam todos os meses. Decidi
ser sincera. A ideia de voltar a trabalhar agradava-me imenso. Desde que desisti
do meu projecto, caí numa espécie de buraco sem fim à vista. Além disso, o que
estava a receber não era nenhuma fortuna. O problema é que eu não queria passar
os próximos 18 meses da minha vida a fazer aqueles trabalhos horrorosos que o
Chefe me propunha. Tenho oito anos de estudos universitários. De certeza que
havia outros empregos onde poderia ser mais útil do que a limpar o lar de
idosos da commune ou a trabalhar na
lavandaria comunitária. O Chefe fechou o computador, tirou os óculos e
perguntou com interesse: “Útil? É importante para si sentir-se útil?” O Yannick
veio prontamente em meu auxílio: “Eu disse-te que a Mme Barroso era diferente…”. Tive de concordar. “Apesar
de ser normal, como o senhor disse,
sou ligeiramente diferente. Não andei
a estudar tantos anos para fazer um trabalho que qualquer pessoa pode fazer
melhor do que eu. Detesto fazer limpezas e passar a ferro. Aliás, em minha
casa, não engomamos a roupa. Agora que penso, nem sequer sei onde pára o ferro
de engomar… Mas, olhe, há outras coisas que eu posso fazer. Que eu sei fazer. Coisas
úteis… Se o senhor me está a oferecer um emprego de bandeja, acho que é o
momento ideal para encontrarmos algo que eu não conseguiria fazer de outra
maneira.”
O Chefe parecia ter desistido
definitivamente das suas fenomenais ofertas de emprego. O computador continuava
fechado. “A sua perspectiva é interessante... Pode dar-me um exemplo de um
sítio onde gostasse de trabalhar e se sentisse útil?” Respondi de rajada, sem precisar
de pensar: “Há cinco anos que respondo a anúncios para trabalhar nos diferentes
centros de acolhimento de refugiados. Já respondi a todo o tipo de ofertas de
emprego, nunca fui sequer chamada para uma entrevista. A verdade é que não
tenho qualquer experiência… Mas eu própria sou emigrante. Falo quatro línguas.
E acho que podia ser útil. Olhe, por exemplo, há várias semanas que ando a
acompanhar dois refugiados venezuelanos gratuitamente… podiam perfeitamente
remunerar-me por este trabalho.” O Chefe largou a rir e pegou no telemóvel. “Já
me podia ter dito. Colaboramos regularmente com o centro de refugiados estatal
da nossa região. Temos lá seis pessoas a trabalhar neste regime. Vou
ligar agora à directora a ver o que ela me diz…” A resposta chegou três semanas
mais tarde. Chamaram-me para uma entrevista. O serviço de Animação e o serviço
de Integração Local do Fedasil estavam interessados em “contratar-me”.
Decidiram criar um posto especial feito à minha medida, uma espécie de elo de ligação
entre os dois serviços. E eu – que para trabalhar no Fedasil, estava disposta a
fazer qualquer tipo de trabalho – fiquei incrédula por terem encontrado uma
função que é a minha cara. Sem nunca me terem visto, parecia que já me
conheciam e que estavam decididos a tirar partido do meu "potencial". O que quer
que isso fosse…
Comecei a trabalhar no dia 1 de Março.
E todos os dias percorro os 10 minutos que me separam do trabalho com um
sorriso de incredulidade. Ainda sinto vontade de me beliscar. Sabem o que é um
sonho tornado realidade? É o meu trabalho no Fedasil. Tenho sempre pressa de
chegar e saio sempre depois da hora. Se pudesse, passava lá a vida. Falo
diariamente as minhas quatro línguas e esforço-me por aprender algumas palavras
numas mil outras. Já ensinei jovens mães a fazer massagens aos seus bebés. E aprendi
a fazer crochet com uma senhora idosa, que conseguiu reproduzir fielmente as
pegas que a minha avó Clarisse fazia com as guitas de embrulhar as caixas dos
bolos. Consegui fechar um projecto de colaboração com a academia de música onde
andam os meus filhos, que me encheu de orgulho. Provei comida de terras longínquas,
generosamente oferecida por quem nada tem. Aprendi danças folclóricas com os
nossos residentes. E organizei uma palestra para pais solteiros. Fiz cartazes
que são verdadeiras obras-primas, em diversas línguas. Ajudei as crianças a
fazerem os trabalhos de casa, numa luta titânica contra a conjugação francesa. Participei
numa festa de homenagem aos nossos voluntários. Animei um atelier sobre a
situação dos refugiados para um 10º ano e consegui não chorar com as histórias
que foram narradas. Enchi-me de medo a conduzir uma carrinha por montes e
vales. Só passaram duas semanas e já fiz tantas coisas diferentes. Coisas que,
afinal, eu sei fazer. Que eu consigo fazer. Que eu gosto de fazer. Coisas que
fazem a diferença na vida de muitas pessoas. Mas, principalmente, na minha. Às
vezes, sinto-me cansada só de pensar nos constantes malabarismos que tenho
feito nos últimos cinco anos para nos conseguir sustentar. Não há meio de desencantar
uma rotina qualquer, que me permita finalmente baixar as armas. Parece que sou
constantemente obrigada a sair da minha zona de conforto. No fundo, sei que me
queixo sem razão. A verdade é que eu gosto de recomeços. De novas
oportunidades. De páginas em branco. De sonhos tornados realidade.