segunda-feira, 30 de maio de 2016

Fome de quê?

(porque mais importante do que as respostas, são as perguntas...)

 


Fiz 40 anos. Quatro décadas. É difícil acreditar. Sinto que já vivi muitas vidas, mas não tenho a seriedade requerida. Espero nunca vir a ter. Ando a fazer o caminho ao contrário. Era muito mais velha aos 25 anos do que sou agora. Levava o mundo às costas. Era uma chata. Queria controlar tudo. Tinha muitas certezas. E um futuro todo traçado. Aos poucos, tenho aprendido a libertar-me. A não me levar muito a sério. A praticar o desapego. A viajar ligeirinha, como se quer. Preciso de tão pouco para ser feliz! Preciso dos meus. E de tempo. Tudo o resto é acessório. Por este andar, ainda espero vir a ser uma velha gaiteira. Trabalho alegremente para isso. Espero cumprir-me.
Mais importante do que as respostas, são as perguntas. A pergunta. “Você tem fome de quê?” Tenho fome dos meus filhos. Sempre. A tribo. Tenho fome do meu compagnon de route. Porque juntos somos melhores. Tenho fome de gente. Dos meus. Tenho fome de mundo. Tenho fome de viajar. De aprender mais, ver mais, ler mais, ouvir mais. Rir mais. Tenho fome de compreender. De apreender. Tenho fome de mudança. De ter poucas certezas. Tenho fome de escrever. Tenho fome de fazer coisas. De fazer amigos. Tenho fome de aventura. De peripécias. Principalmente, tenho fome de ter fome. Mais importante do que realizar sonhos, é ter sonhos. E eu tenho fome de sonhos.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Enigma


(porque o meu amor anda há semanas

a preparar uma surpresa ultra-secreta)




Indícios:

1.    Partimos todos esta tarde e só voltamos no Domingo à noite
2.       D. Fuas Roupinho fica com a vizinha
3.       Não são necessários passaportes
4.       É preciso um saco com roupa velha para sujar e um vestido de noite (segundo o Vasco, também preciso de maquilhagem)
5.       Vamos no carro a GPL do meu sogro e ainda temos de levar um bidão de gasolina
6.       Fica a 7 horas de viagem
7.       Depende do tempo
8.       Vou estar com pessoas que conheci na Bélgica e de quem o Vasco e eu gostamos muito
9.       O Diogo diz que vou adorar
10.   [indício extra, lido à socapa na To Do List escrita em neerlandês: "pequeno cavalo"]
 

Descodificação:

1.    Não pode ser muito longe
2.       Não aceitam cães
3.       Não vamos viajar de avião
4.       Vamos fazer algo ao ar livre e, na noite dos meus anos, vamos ao restaurante
5.       Vamos para França
6.       Vamos para o Sul de França
7.       Há actividades ao ar livre
8.       Tendo em conta a sociopatia crónica do Belga, só podem ser “pessoas ficcionais”
9.       Mais importante do que eu adorar, é o Diogo estar encantado com a ideia…
10.   O indício roubado permanece um mistério, mas desconfio que esteja relacionado com uma prenda, não com o fim-de-semana.
 

Solução:

Nunca se deve subestimar um tradutor curioso, profissional na resolução de enigmas e preenchimento de lacunas várias. Os pontos 6 e 8 são indícios demasiado evidentes. Já descobri a solução, mas continuo a fingir que não, para não estragar a surpresa do melhor companheiro de aventuras e seus fiéis escudeiros. A festa dos meus 40 anos promete ser épica.
 

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Gente maluca é pior que ladrões

(uma tragicomédia em seis actos)


 


Acto I
Esta manhã, os rapazes anunciam que têm exame de solfejo. Quer dizer, o anúncio foi feito pelo Diogo, que a coisa pequena anda sempre a Leste (pensava eu que era o único). Peço o “journal de classe” para verificar as horas… infelizmente, a última página está em branco. O Vasco teve consulta de ortodontia em Liège e faltou à última aula. 

Acto II
Mando uma mensagem à professora a justificar a ausência da aula anterior e a perguntar a que horas é o exame de HOJE do Vasco. Responde-me que é às 17h30, sendo que o Vasco passa em 7º lugar. Faço contas por alto… provavelmente, não haverá tempo para a aula de violino. Volto a mandar mensagem a agradecer a informação e a perguntar se há aula de violino a seguir. Recebo um lacónico “não” com resposta. 

Acto II
Vou buscar o Vasco à escola ao meio-dia e dou-lhe um raspanete porque ainda não estudou nada para o exame de solfejo. Coisa pequena almoça calmamente e, a seguir, estuda rapidamente. O meu amor apanha-o a brincar no quintal, dá-lhe novo raspanete e tranca-se com ele no quarto a estudar as partituras. 

Acto IV
O Diogo vai fazer o seu exame às 16h30 e manda-nos uma mensagem a dizer que afinal há aulas, não exames. Mando uma nova mensagem à professora a perguntar se o Vasco devia ter ido à aula de solfejo, anterior ao suposto exame do Diogo… e ela responde-me com outro lacónico “sim”. E aí eu perco a paciência. Mando uma última mensagem: “Perguntei-lhe esta manhã se o Vasco tinha exame se solfejo hoje e a senhora disse-me que sim, às 17h30!!! E, afinal, ele acabou por faltar à última aula de solfejo!!!”. Não obtive resposta. 

Acto V
Contrariamente a mim, os meus filhos tiveram resposta… Em plena aula, a professora lê a mensagem e, olhando para o Diogo, diz que está a ser insultada… logo agora, no final do ano, mesmo antes dos exames. E deixa a ameaça a pairar no ar. A seguir, quando o Vasco entra na aula de violino para onde foi levado à pressa, diz-lhe que ele é que está em falta porque não foi à aula de solfejo, que se a mamã quer ralhar e insultar alguém, que o faça com ele… não com ela, que não está para essas coisas. 

Acto VI
Hesitei entre ir lá directamente ou ligar-lhe a pedir explicações. Acabei por deixar falar a Rita belga e fiquei quietinha no meu canto. Enfim… é como quem diz. Belga, mas pouco. Amanhã tenciono ligar ao director da Académie a fazer queixa. E aproveito para lhe dizer tudo o que tenho aqui guardado há dois anos sobre aquele portento de pedagogia, que nunca se dignou a fazer um único elogio ao Vasco. Como se fosse possível evoluir na crítica cerrada! Entretanto, revirei a Net do avesso à procura de uma professora em Liège que aceitasse ajudar a coisa pequena na próxima semana a preparar as duas partições que tem de tocar no exame de violino. Não vá aquele estafermo lembrar-se de aproveitar para me chumbar airosamente o filho… Como dizia a minha avó Clarisse, gente maluca é pior que ladrões. Credo!

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Os filhos que nunca tivemos I


(porque há momentos e pessoas do passado que mudam o presente)



Há pouco tempo, ligou-me o meu primeiro amor. Precisava de falar comigo. Estranhei a urgência, pouco habitual. Não nos víamos há bastante tempo, ele está sempre a viajar. E, da última vez que nos encontrámos, discutimos. O habitual. Quando entrei no café, estava a ler, numa mesinha do fundo. Não tem tablets, nem smartphones. Não tem nada de moderno, a bem dizer da verdade. Nem sequer a roupa. Parece uma pessoa antiga. Anda sempre com muitos livros. Perguntou de chofre: “De que abdicaste por mim, Rita?” Ele diz sempre o meu nome. Não percebi a pergunta. “Já temos 40 anos. Não tive filhos. Os teus filhos são os filhos que eu nunca tive. E tu, de que abdicaste por mim?” Escapou-me uma gargalhada. Ao fim de tantos anos ainda me espanta a sincronia de pensamento. Esta questão tem-me assombrado, nos últimos tempos. Porque ele foi o começo de tudo o que se seguiu. Porque demorei muito a compreender, mas finalmente percebi. Ele foi o ponto de viragem. O momento exacto em que o meu caminho se desviou inexoravelmente para um lado, e não para outro. E daí advém uma vida. Três vidas, para ser honesta. Demorei muito a encontrar a solução do meu enigma. “Aos 16 anos, convenci-me de que nunca mais iria amar ninguém na vida. Que só temos uma alma gémea e que eu tinha perdido a minha. Por isso, comecei a namorar com o meu melhor amigo, por quem sentia um carinho imenso. Percebo agora que nunca o amei verdadeiramente. Nunca o desejei. Mas achei que era uma maneira segura de ter os filhos que nós nunca teríamos.” 

Aos 15 anos conheci a minha alma gémea. A primeira imagem mantém-se nítida até hoje. Ia começar uma escola nova, num país novo. Não percebia uma palavra do que me diziam, sentia uma dor de cabeça constante. E depois vi-o. Alheado do mundo, sentado na relva. Estava a ouvir música num walkman. Um livro de poesia aberto sobre os joelhos. O cabelo despenteado, demasiado comprido, caía-lhe sobre os olhos. Apaixonei-me perdidamente naquele preciso instante. Até hoje. É das raras pessoas que conheço que se manteve fiel à si mesma, sem quaisquer concessões. A única a quem estou ligada por uma linha invisível, que nem o tempo, nem a distância, conseguiu apagar. A este homem devo muito. Por isso, é importante falar nele, agora que me aproximo a passos largos dos 40 anos e estou a acabar de arrumar as minhas gavetas mentais.

O meu ano de intercâmbio na Bélgica foi complicado. Cresci muito. Nunca teria conseguido aguentar sem ele. Quis o destino que calhasse na minha turma. Outsider como eu, num grupo que estava junto desde a primária, num colégio de meninos ricos. Formámos uma simbiose perfeita, completamente à margem daquele cenário idílico que nos rodeava. Uma simbiose feita de espelhos onde se reflectia o melhor e o pior de cada um de nós. Discutíamos muito de forma extremamente violenta. Mas também conseguíamos comunicar sem que fossem precisas palavras. Depressa começámos a explorar os recantos do palacete que nos servia de escola, bem como os bosques que o rodeavam. Descobrimos todos os pontos de fuga possíveis. Escondíamo-nos no cimo das traves do velho pavilhão de Educação Física, a muitos metros do chão. E líamos. O bibliotecário do colégio depressa desistiu de nos fazer fichas de requisição. Devorávamos prateleiras de livros à velocidade da luz. Escrevíamos muito, principalmente peças de teatro e poesia. Os professores começaram a tratar-nos como uma só pessoa. Todos os trabalhos que fazíamos era em conjunto. Os castigos que recebíamos também eram em conjunto. Até que o Prefeito deixou de nos castigar, quando percebeu gostávamos de ficar retidos na escola, às quartas-feiras à tarde.

Aos poucos, começámos a encontrar-nos fora da escola. Ele levou-me a conhecer Liège. Os cafés, os teatros, as salas de espectáculo. Passávamos horas na Fnac, a ler e a ouvir música. Em casa dele, um verdadeiro refúgio para onde me escapava sempre que podia. O essencial era passar o mínimo de tempo possível com a minha primeira família de acolhimento, completamente disfuncional. Um dia, fugimos da escola para irmos à procura da pessoa do programa de intercâmbio encarregue da zona de Liège. Descobrimos onde morava, numa época pré-internet e telemóveis. A senhora ia morrendo de susto, quando aparecemos à sua porta, já noite cerrada. Os contactos dos voluntários eram confidenciais. Mas não havia nada a fazer, eu teria mesmo de aguentar até ao final do ano naquela família. Ele começou a azucrinar a mãe, para me deixar ficar com eles. Mas a senhora, apesar de preocupada e amorosa, recusava-se terminantemente. Dizia que ainda acabávamos na mesma cama e desgraçávamos as nossas vidas. Parecia-nos uma heresia. Nós éramos amigos de sangue, com juras feitas.

Até que a família para quem eu fazia babysitting todas as semanas percebeu que as coisas não estavam bem. E decidiram acolher-me, nos sete meses que faltavam para acabar o ano lectivo. Ainda hoje são a minha “família belga”, a quem devo o mundo. Na manhã seguinte, cheguei atrasada à escola. Sentei-me discretamente na fila de trás e rabisquei a novidade numa folha de papel, que lhe atirei à cabeça mal a professora voltou costas. Nunca vi uma felicidade alheia tão honesta. Levantou-se e atravessou a sala ruidosamente por cima das mesas corridas até chegar a mim. Caímos nos braços um do outro à gargalhada. E, em seguida, fomos falsamente cabisbaixos até ao escritório do Prefeito, para mais um castigo por indisciplina. Daquela vez, escapámos. A escola estava a par da minha situação e ficaram sinceramente aliviados. Começou, então, uma das épocas mais felizes da minha vida.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Perigos da linguagem metafórica


(porque me tinha esquecido de vos contar esta,

que merece ficar para os anais da história familiar)



Na sexta-feira passada, zanguei-me a sério com o Diogo. Não foi nada de muito grave. A semana tinha sido longa. Tinha trabalhado, dado aulas, traduzido… estava exausta. No Verão, anoitece tarde na Bélgica. Estava um dia bonito e quente. Depois do jantar, propus irmos todos dar a volta ao lago. Normalmente, é o nosso momento a dois. Os nossos 2,5 km de sossego. Mas estava a apetecer-me estar com os miúdos, falar, ouvir os risos deles…
Para não variar, o adolescente reagiu mal à proposta. Resmunga sempre que vamos fazer um programa qualquer, um passeio, uma ida ao cinema ou até mesmo ao restaurante. Raça do miúdo só está bem enfiado em casa! Quando o obrigamos, faz aquele ar de juvenil enfado e arrasta os pés. Aos poucos, vai desanuviando e esquece-se de manter a compostura. Deve dar uma trabalheira desgraçada fingir aborrecimento e obrigação durante muito tempo. Acaba sempre a rir, divertido. E, no fim, agradece invariavelmente e admite que fizemos bem em forçá-lo a vir connosco. Já há muito que deixámos de ligar ao arranque tumultuoso, preferindo concentrar-nos na chegada entusiasta.
Na sexta-feira passada, ao anúncio do passeio, seguiu-se o fado habitual. Como não podia deixar de ser. Só que eu estava demasiado cansada para conseguir reagir com a fleuma necessária. E o Diogo arriscou a bater o pezinho no chão, como um miúdo birrento. Foi a gota de água. Gritei-lhe que estava farta daquela atitude malcriada e que já não queria a sua presença no passeio familiar, que se pretendia aprazível para todos. Mandei-o para o quarto de castigo. E acrescentei que, já que só parecia sentir-se bem ali, não podia sair do quarto até terça-feira de manhã, quando voltasse para a escola.
No sábado, foi cada um à sua vida. O Diogo dormia. O meu amor saiu cedo para ir “dronar”. Eu fui com o Vasco ao ballet. Depois, fomos comprar um novo par de ténis… coisa pequena não cresce para cima, mas está a ficar com umas patorras enormes. Entretanto, deu-nos a fome. Cometemos a loucura do mês e fomos comer umas frites, que nos souberam pela vida. Apeteceu-nos ir ao cinema. Fomos espreitar as sessões de Malmedy, nada. Fomos até Stavelot, nada. Desiludidos, decidimos voltar para casa. Chegámos por volta das quatro da tarde. Não se ouvia vivalma. Enfiei os fones e fui traduzir. O Vasco foi brincar lá para cima com o irmão. Perto das seis, veio perguntar-me se podia levar-lhe o DVD do Criminal Minds. E comida… Hein?! Lá me explicou que, como o irmão estava de castigo no quarto até terça-feira, queria ajudá-lo a sentir-se melhor.
Mandei chamar o queixoso para ouvir de sua justiça. Pediu-me desculpa pela malcriação da noite anterior. E explicou-me que tinha levado o castigo muito a sério. Ainda só tinha saído do quarto para comer qualquer coisa à pressa de manhã. “E o almoço?!”  “Não almocei.”  “E foste à casa de banho?!”  “Muito depressa, só quando saí de manhã para comer.”  “Mas és parvo ou quê?!”  “Disseste que não podia sair do quarto até terça-feira…”  “Já ouviste falar em linguagem metafórica?!”  “Não percebi.”  “Queria dizer que ias ficar em casa de castigo durante o fim-de-semana prolongado, porque não voltava a obrigar-te a sair. Estou farta das tuas cenas!”  “Ahhh… mas isso não é bem um castigo, pois não?”  “E tu não achaste que o outro castigo era um bocadinho excessivo?!”  “Mais ou menos.”    “Por acaso ando a educar-te para aceitares as maiores idiotices sem argumentar, mesmo vindas de mim?”  “Não podia argumentar sem sair do quarto…”
Ia morrendo, a sério. Não sabia se havia de rir ou chorar. Este palerma vai fazer 15 anos, mas por vezes mais parecem 5. Se o irmão não decidisse salvá-lo, era capaz de morrer até terça-feira para não desobedecer ao castigo. Nunca vi um espírito contestatário tão mal aplicado, benza-o Deus!




terça-feira, 17 de maio de 2016

Psicologia positiva


(porque isto resulta tão bem que nem é preciso aplicar)




Ontem à noite, vimos um documentário no telejornal sobre psicologia positiva. Mais concretamente, sobre psicologia positiva aplicada às crianças. No final, mostravam o exemplo concreto de uma mãe que andava um bocado perdida e que tinha ido fazer um workshop, para ver se aprendia estratégias educativas mais eficazes do que os gritos. Nesse momento, os olhares centraram-se em mim. Ouvi uns risinhos. Não acusei o toque e continuei a ver a emissão com muitaaaa atenção. Vimos a mãe cansada, depois de um dia de trabalho, a chegar a casa. E o ar enfastiado com que reparou de imediato que as luzes estavam todas acesas, apesar de o sol ainda ir alto. Chamou os filhos, reuniu-os à volta da mesa e começou calmamente a debater estratagemas para resolverem o problema, que ia apontando num papel. “E se eu disser “luz, luz, luz!”, sempre vir a luz acesa?”  “E se pusermos um lembrete por cima do interruptor?”  “E se…” A conversa durou séculos e, sinceramente, os miúdos não pareciam lá muito motivados a mudar o comportamento. Por fim, lá definiram um conjunto de regras. Obviamente, o documentário não mostrou como tinha acabado o conflito familiar, preferindo terminar com a imagem da mãe com um sorriso beático. Não quero ser maldizente, mas algo me diz que mal o efeito do Xanax passar se põe a berrar com a canalha novamente.
Quando a emissão terminou, disse aos rapazes que também ia começar a pôr em prática a tal da psicologia positiva nesta casa. Com efeitos imediatos. Que admitia que tinha tendência para gritar e que tinha mesmo de melhorar. Que, a partir de agora, seria uma mãe muito mais calma e positiva. Claramente pedagógica. Quiseram que lhes desse um exemplo.

- Sempre que o Diogo se voltar a demorar 25 minutos no duche e, depois, se esquecer de abrir a janela, vamos passar outros 25 minutos num longo debate sobre a problemática. Ele exporá as suas ideias e eu, as minhas. No fim, delinearemos possíveis soluções. Poderei passar a dizer “duche, duche, duche” ou pôr um post-it na janela, por exemplo…

- Quando o Vasco perder novamente a lancheira, rasgar as calças, partir as canetas, estragar um jogo ou se esquecer do dinheiro para a piscina, podermos passar meia hora em profundas reflexões para tentarmos democraticamente encontrar a melhor maneira de inverter a situação.

Surpreendentemente, a minha sugestão não lhes agradou. Disseram que preferiam os gritos. Parece que é mais rápido e chateia menos. Anda aqui uma mãe a tentar seguir uma linha educativa extremamente zen e positiva e os tipos preferem a pedagogia do berro e do calduço. Mas não me dei por vencida. Implementar novas medidas nunca foi popular. Mesmo que seja para bem do povo. Portanto, continuei noite fora… “Vasco, se continuas a comer como um porco, no final do jantar vamos ter de fazer uma reunião para perceber de que modo te posso ajudar positivamente a deixares de ser um javardo. Conta com menos 15 minutos de leitura antes de dormir, sim?”  “Diogo, se voltares a descer essas escadas como um elefante enraivecido, acho que se impõe uma longa conversa para tentarmos encontrar estratégias positivas para contrariar isso. Penso que nos conseguiremos despachar em 40 minutos, mas é melhor desligares o telemóvel”. E por aí fora…
Sabem que mais? Resulta mesmo! Quanto à psicologia positiva propriamente dita, não sei se funcionará. Ainda não tive oportunidade de experimentar. Mas a ideia subjacente é tão genial, que nunca chega a ser preciso aplicá-la. Basta ameaçar que vamos ser psicologicamente positivos para o comportamento dos miúdos mudar de imediato. Até agora, estou muito satisfeita com os resultados. Desde ontem que não se ouve um grito nesta casa. Eu ando muito mais calma, mas os rapazes parecem mais enervados. Não percebo porquê, sinceramente. Parece que o positivismo lhes anda a fazer mal. Talvez seja melhor ir buscar uma folha de papel e lápis coloridos para delinearmos em conjunto estratégias motivantes para incrementar a felicidade infantil nesta casa. Temos de pensar em frases motivadoras. Espalhar uns mantras escritos pelas paredes. Tenho de falar urgentemente com eles… urgentemente, não. Lá se me ia o mindfulness para o galheiro! Tenho de falar calmamente com eles.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Uma caixa de gaufres


(onde se faz eco de medos inexplicáveis)



Olho para a caixa cheia de gaufres na bancada da cozinha. E recordo a voz doce de quem a medo me tem tentado telefonar. Atendo sempre e sou agradável, sem qualquer esforço, tenho de admitir. Nunca deixei uma mensagem sem resposta. Mas sinto-me envergonhada. Pela minha atitude de fuga. Pela insistência na negação. Sobretudo, pela minha cobardia. Sem dúvida, resquícios de uma vida passada.

Estou desejosa de que os miúdos comam as gaufres todas o mais depressa possível. Não quero continuar a relembrar os meus medos, cada vez que vou à cozinha e vejo aquela caixa transparente ali pousada. Sou incapaz de lhes tocar. E, no entanto, foram feitos com o coração. São caseiros, têm pouco açúcar. Parece que foram feitos por alguém que me conhece bem. Provavelmente, conhece mesmo. Tal como eu a conheço a ela, sem nunca sequer a ter visto. E lhe tenho, ainda assim, um certo carinho.

Começou por ser um prato de comida. Um prato bonito, antigo. Coberto por uma folha de papel de alumínio. Achei ternurento. Um dia também hei-de mandar um prato assim aos meus filhos. Depois, quando soube da minha existência fugidia, passou a mandar comida para dois. Depressa deve ter sabido que éramos, na realidade, três. E deixou de mandar aqueles seus pratos cuidadosamente preparados. Ele dizia-me que eram restos, mas uma mãe reconhece de imediato o cuidado que outra põe no desvelo aparentemente descuidado com que trata o filho. Eram restos, sim, mas restos de amor. E mal percebeu que havia agora quem se preocupasse em dar alimento – não simples comida – deixou de sentir necessidade de o fazer.

Aos poucos, começaram a vir doces. Frascos de compota caseira. Mel. Bolos, tartes, gaufres. Sempre caseiros. Sempre em quantidade. Sempre a cheirar a infância. Ou, então, rebuçados que vai trazendo das suas viagens. Mas toda a gente sabe que rebuçado é coisa de criança. São para as minhas crianças, portanto. “Os seus meninos”, como uma vez me disse ao telefone com aquela voz doce que parece surpresa, mas não ofendida, pela distância ferozmente imposta.

“Posso telefonar-lhe?”, perguntou-me. “Sempre que precisar”, respondi sem hesitar. Mas mais do que isso tenho medo. Não quero voltar a sentir-me obrigada a gostar de alguém. Muito menos que alguém tenha de gostar de mim e dos meus filhos por obrigação.

O marido é mais directo: “Gostaria muito de ter o prazer de a conhecer pessoalmente.” E eu minto, descaradamente. “Claro que sim. Um dia, quando se proporcionar”. E falamos, falamos, falamos. No fim, diz-me: “Gostei muito de falar consigo. Tem uma visão extremamente lúcida das coisas, isso é raro.” Apesar dos elogios, protejo-me. Protejo os meus rapazes. Do quê, nem eu sei bem.

Às vezes, o filho pequeno ainda pergunta. “Quando vamos conhecer os pais do Pascal?”. O filho grande já há muito que deixou de fazer perguntas. Com os rapazes sou brutalmente sincera: “O amor não deve ser uma obrigação. A nossa família é a única que nos ama e apoia incondicionalmente, aconteça o que acontecer. E na nossa família só entra quem o nosso coração adopta, sem amarras nem imposições.” Acho que não conseguem compreender, mas aceitam. E comem alegremente o que vai chegando. Ontem, foi uma caixa cheia de gaufres.
Mas um dia fiquei triste. Porque também eu sou mãe. “Posso fazer-lhe uma pergunta?” Respondi, com sinceridade. “Tudo o que quiser.” “Entre vós há sentimentos sinceros?” A formulação antiquada e o pudor da pergunta fizeram-me sorrir. Fiquei comovida com a preocupação. Pais de filho único, sem o ser. Pais que carregam a dor profunda da morte de um filho que será eternamente jovem. Pais que sabem que nunca serão avós. Deixei o coração falar. “Nunca amei ninguém como amo o seu filho. Tenho-lhe uma amizade e uma admiração sem fim. É a melhor pessoa que conheço. A mais inteligente. Faz-me rir todos os dias. E não tenho qualquer dúvida de que sou amada como nunca fui. Eu e os meus filhos, com uma meiguice que me comove.” Ouvi um suspiro de alívio. E um sorriso. Ouvi um sorriso. Que me faz sentir culpada até hoje pela minha cobardia.


sexta-feira, 13 de maio de 2016

Mar de Jade

(onde se mostra um bocadinho dos nossos dias passados na costa alemã)





[ à beira-mar, onde não é suposto tomar banho ]

[ a principal diferença entre os 9 e os 14:
um menino a ser criança e um adolescente a adolescer enfadado ]

[ no Norte da Alemanha as casas têm uns belíssimos telhados de palha, que devem ter um nome técnico qualquer... ]

[ uma coisa estranhíssima: a costa alemã estava cheia de autocaravanas.... o que levará esta gente a acampar em frente a praias onde não se pode tomar banho (excepto se forem o Vasco)? ]


[ os meus três homens rumo ao infinito ]


[ adoro estes carrinhos onde a malta leva filhos e cães a reboque nas bicicletas ]

[ da série "mãe babada com a beleza do seu adolescente crescido" ou como arrancar-lhe uma gargalhada com cócegas ]

[ já vi muitas crianças a brincar à beira-mar em vários países diferentes... só muda o cenário, a alegria é exactamente a mesma]

[ as nossas pegadas na areia... perdão, na lama ]

[ ele pensa que se meter o capucho e se afastar, ninguém o confunde connosco ]

[ as casas aqui são tãoooo grandes! ]


[ apaixonámo-nos por este moinho, mas não percebemos bem para que servirão as pás mais pequeninas... será um mecanismo para transportar as sacas de cereais lá para cima? ]

[ a costa alemã tem caminhos planos infindáveis que se podem percorrer de bicicleta  ]


[ portão para impedir o gado de passar para a praia, com  um passadiço no chão com barras de metal espaçadas ]

[ Vasco-pastor ou ovelhas em debandada ]

[ a brincar às escondidas num campo de colza... cheira tão bem! ]

[ a energia eólica está omnipresente na Alemanhã do Norte e os aerogeradores já fazem parte da paisagem ]

[ da série "tenho quase 10 anos e sou um mimado" ]

[ a costa alemã é muito parecida com a Holanda, com água por todo o lado que divide naturalmente o terreno e deixa a terra muito verdinha... o meu amor fica sempre deliciado com os barcos ]

[ diz que era um parque natural, com muitas espécies protegidas, mas nós só vimos gaivotas ]


[ da série "pára de me fotografar!" ]

[ pronto... admito que também sou uma mãe um bocado melada ]

[ nunca vi tantas ovelhas na vida... também havia algumas vacas e cabras, mas a maioria dos campos tinha ovelhas à solta, apenas delimitadas pelos canais de água ]


[ fiquei encantada com estas casinhas de madeira e verga transportáveis que se alugam nas praias, um pouco à imagem das nossas barraquinhas ou toldos ]


[ ei-la aqui aberta, com repousa-pés e tudo! ]


[ estou desconfiada de que o Mar de Jade tem este nome devido ao tom esverdeado da lama que faz as vezes de mar, mas também é possível que lhe tenham dado um nome exótico para atrair turistas palermas à procura de praias paradisíacas... seja como for, a coisa pequena não se importou de andar a chafurdar na lama de cuecas ]


 [ são quilómetros de lama a perder de vista, que a Unesco declarou património mundial graças à sua biodiversidade ]


[ uma espécie de pés sujos de areia do Mar de Jade... que custa muito mais a limpar, mas deixa os pés lisinhos como se tivéssemos saído de um spa ]


[ introspecção juvenil à beira-lama ou "O Pensador" de Rodin ]


[ para quem está habituado a ver tantos campos ao abandono em Portugal, é uma surpresa ver o mais pequeno pedaço de terra cultivado]


 [ cem cães a um osso, que é como quem diz um rebanho inteiro à sombra de um arbusto ]

[ tenho para mim que, se os engenheiros que conceberam estas geringonças tivessem alguma sensibilidade artística, tê-las-iam pintado de azul como o céu ]


[ a tribo, pois claro! ]

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Coisas à Rita


(com final feliz, obviamente)



Fiquei toda contente quando soube que ia ter uma semana de férias. E fiquei ainda mais contente quando soube que a Primavera ia finalmente chegar por estes dias. OK… é o início da Primavera parte II, mas tenhamos esperança que desta seja de vez. Já não posso ver neve.
Seguindo à risca os meus planos, aceitei uma tradução mais longa para esta semana. E comecei a pintar a parede da sala. E um móvel. Entre uma demão e outra, ia traduzindo calmamente. Pensei que estivesse no céu.
Entretanto o Diogo lembrou-me que a partir de 4ª feira também estaria de férias. E o meu paraíso ficou um bocadinho toldado. Tanto mais que se avizinhavam muitoooos trabalhos de grupo com muitoooos colegas barulhentos. Não sei por que diabo têm de vir sempre cá para casa, mas estou desconfiada que tem a ver com os meus bolos. A ver se na próxima vez me esqueço de os alimentar.
Depois, foi a coisa pequena. A escola dele também ia fazer ponte. Duas vezes na mesma semana. A Bélgica deve ser o único país no mundo onde se faz ponte entre um dia de trabalho e um feriado. Mais a ponte verdadeira, por assim dizer, entre o feriado e o fim-de-semana. Ou seja, íamos estar todos de férias uns dias em casa. Aí, admito que o meu idílio se esfumou definitivamente.
Estava eu a tentar traduzir, pintar e pensar no que raio ia fazer com dois miúdos fechados em casa no dia seguinte… quando fui mordida pelo cão da minha vizinha. Como o cão é “pequenino” (sinónimo de esfregona suja pulguenta), a vizinha lembrou-se de soltá-lo no nosso quintal para “brincar” com o D. Fuas. Mas o nosso cão é uma criatura territorial, pouco dada a brincadeiras. Saltou-lhe em cima mal pôs o focinho à porta de nossa casa. O problema é que, depois, não queria largá-lo. E a vizinha também não queria largar o cão dela. E eu não queria largar o meu. Ficámos largos minutos naquilo, todos agarrados uns aos outros. Até que o estupor do rafeiro da vizinha consegue virar a cabeça e abocanhar-me a mão. Mandei um grito. D. Fuas Roupinho largou-lhe rapidamente a orelha, chegou-se atrás e, com uma pontaria certeira, saltou-lhe ao pescoço, sem apelo nem agravo. Felizmente, o meu amor apareceu e conseguiu pôr fim ao imbróglio de cães e vizinhas tudo agarrado uns aos outros. O focinho do Fuas estava cheio de sangue. O do outro cão também. Mas inacreditavelmente nenhum deles estava seriamente ferido. O sangue era meu.
As pinturas ficaram definitivamente para trás e a tradução intermitente. Estou a antibiótico e analgésicos e gelo. Fiquei com uma mão digna de um urso. E o braço contrário dorido com a vacina do tétano que tive de apanhar.
O meu amor decidiu salvar a situação. À sua maneira, pois claro. Decretou que se impunham uns dias fora, já que estávamos todos de férias e eu precisava de repouso. Preferencialmente à beira mar, para aproveitar este calor inesperado. Acho que o meu Belga já apanhou aquele velho hábito português que consiste em pensar que o mar cura tudo. Decidimos espreitar o Airbnb. Depressa percebemos que os franceses, os belgas e os holandeses devem ter tido todos a mesma ideia. Desde Le Havre, em França, até Haia, na Holanda, não havia uma única casa livre. Dentro do nosso orçamento muito limitado, obviamente. Alargámos a pesquisa à costa alemã… e percebemos que aquela malta trabalhadora não decidiu invadir as praias todas do país, contrariamente aos países vizinhos. Marcamos uma casinha jeitosa, a um preço ainda mais jeitoso. Quando recebo as indicações do proprietário, percebo a razão do preço convidativo. No anúncio dizia “apartamento inteiro”, quando na realidade eram apenas dois quartos. Gosto pouco de chico-espertos, mesmo que sejam alemães. Especialmente se forem alemães. Não liguem, acho que também já adoptei as pequenas idiossincrasias belgas. Seja como for, escrevi ao Airbnb a reclamar e a exigir o pagamento do cancelamento. Telefonaram-me quase de imediato lá dos States. Não só me devolveram o pagamento na totalidade, como me ofereceram uma redução generosa num próximo aluguer. O meu amor, que não gosta lá muito de alemães, mas que ainda gosta menos de reclamar, nem queria acreditar na nossa sorte.
Eis-nos, então, daqui a pouco a caminho do norte da Alemanha, rumo à praia. Praticamente na Dinamarca. Logo se vê o que nos espera. A mão está quase boa. A tradução quase entregue. As pinturas quase terminadas. Tudo está bem, quando acaba bem, certo? Mesmo que pelo meio aconteçam aquelas coisas à Rita…

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Verdade, verdadinha


(se fosse em português até parecia uma daquelas citações

do Pedro Chagas Freitas, mas enfim… ih, ih, ih!)