terça-feira, 28 de julho de 2015

Viagem a Marrocos - dias 6 e 7

(onde descobrimos uma cidade labiríntica)

 
 
Depois da experiência com a camioneta, decidimos mudar de transporte público, na esperança de que as seis horas de viagem entre El Jadida e Fez fossem mais agradáveis. Rapidamente percebemos que andar de comboio em Marrocos também é toda uma aventura. Éramos oito num compartimento minúsculo, sem ar condicionado. Mais uma bebé. O problema é que as nossas companheiras de viagem eram todas muito avantajadas e sentavam-se... como dizer? Vá... sentavam-se muito à-vontade nos bancos estreitos. O Diogo e eu, como íamos do lado da janela, ainda nos safámos. Bom, o Diogo não se safou lá muito bem. Parece que os únicos três dentes amarelos da senhora muito vetusta o impressionaram bastante. O meu amor e o Vasco foram uns corajosos. Nunca os ouvi reclamar, embora o meu amor quase levasse a velhota desdentada ao colo e o Vasco estivesse sempre a cair do banco abaixo, empurrado pelas largas ancas da mãe da bebé. Já agora é de referir que esta criatura simpatiquíssima correu os colos todos do compartimento apinhado e acabou por seguir viagem repimpada na mesinha que estava colada à janela. O único problema é que a bebé não devia ter mais de sete meses e, de vez em quando, lá se deixava cair para trás. Era isso e os solavancos frequentes do comboio, que provocavam gritos aflitos no mulherio que corria a deitar a mão à criatura. Acho que não houve ninguém ali dentro que não tenha apanhado a miúda em queda-livre umas cinco vezes. Foi completamente impossível dormir, porque estávamos sempre a ser acordados por esta gritaria. E pela conversa bem-disposta das quatro senhoras que, embora tivessem acabado de se conhecer, falaram durante seis horas sem parar como se fossem velhas amigas.
 
Chegámos a Fez no final do dia exaustos. O calor era sufocante. Tinham estado 46 graus e o chão ainda parecia arder debaixo dos nossos pés. Apanhámos um táxi para a parte velha da cidade, que nos deixou numa das treze portas. A cidadela é tão labiríntica, com ruelas tão estreitinhas e escuras, que é impossível entrarem lá carros. Tivemos de pagar a um rapaz para nos mostrar o caminho até ao hotel. Para nos mostrar o caminho, é como quem diz... fomos totalmente incapazes de o reproduzir depois, quando nos decidimos aventurar sozinhos ao cair da noite, para desmoer o jantar copioso. Subimos, descemos. Virámos à direita e à esquerda. E à direita outra vez. Percorremos ruelas que nos pareciam todas iguais. Um verdadeiro labirinto que, confesso, me assustou um bocadinho. Talvez o facto de estarem constantemente a aparecer indivíduos de aspecto duvidoso não tenha ajudado. Ofereceram droga ao meu amor um cento de vezes, apesar de ele levar a nossa coisa pequena firmemente pela mão.
 
Na manhã seguinte, decidimos não arriscar. Pela primeira vez, contratámos um guia oficial para nos mostrar a parte antiga de Fez. Valeu cada dihram que lhe pagámos. O homem destilava história. Em três horas, vimos museus e souks e mesquitas e madrasas (acho que é assim que se chamam em português as antigas escolas para aprender o Corão). Uma arquitectura lindíssima. Bebemos litros de água, como sempre. Mas devemos ter transpirado o dobro, não sei como. Voltámos para o hotel à tarde como se tivéssemos apanhado uma sova, estafados. E de lá já não saímos até ao dia seguinte. Valeu-nos a simpatia dos empregados, o jantar delicioso que nos prepararam, o terraço com uma vista de tirar o fôlego sobre Fez. Os miúdos deitaram-se cedo. Nós acabámos a noite a namorar naquele terraço, a ver estrelas cadentes. Foi um momento mágico.

sábado, 25 de julho de 2015

Viagem a Marrocos - dias 4 e 5

(onde sofremos um pequeno revés em El Jadida)

 
Foi difícil obter autorização paterna para fazermos esta viagem. Extremamente difícil. Uma das condicionantes a que ficámos obrigados foi limitarmo-nos à rede de transportes públicos existente. A liberdade que o aluguer de um carro oferecia estava fora de questão. O conhecimento do país ficou, portanto, limitado aos principais centros urbanos. Isto se não quiséssemos passar mais horas do que as estritamente necessárias fechados em camionetas apinhadas de gente que servem as terras mais pequenas.
 
O plano inicial era, então, irmos de Marraquexe directamente para Casablanca. Mas sempre que falávamos com alguém aqui sobre o nosso itinerário, invariavelmente ouvíamos: "Casablanca?! O que é que vão vocês fazer a Casablanca?!". Começámos a questionar-nos se seria uma boa ideia... Por outro lado, os miúdos ficaram vidrados num parque aquático em Marraquexe, com preços absurdos mesmo para europeus. Depois, ficámos apaixonados pelas cataratas de Ouzoud, cujo percurso de transportes públicos era um verdadeiro quebra-cabeças. Metermo-nos numa excursão estava completamente fora de questão, temos horror desse tipo de viagem artificial para inglês ver. Bom, talvez os 42 graus sem sombra de vento que se faziam sentir em Marraquexe expliquem esta nossa súbita atracção pela água...
 
Decidimos por isso continuar em direcção à costa, para El Jadida. O mais prático era apanharmos uma camioneta, seguindo os conselhos do "Guide du routard"... que se revelaram bastante mais optimistas do que a realidade. Digamos que foi uma aventura e tanto. Uma aventura que durou quatro longaaaas horas. Mas foi engraçado. E bastante autêntico, se é que me entendem. Bebés chorões com fraldas sujas e vomitados à mistura.
 
Em El Jadida, ficámos numa maison d'hôtes amorosa dentro da antiga cidadela portuguesa. As muralhas defensivas originais percorrem a costa. Ainda se pode visitar a cisterna construída durante a ocupação portuguesa. Ao longe, o mar azul a perder de vista. Uma vez saídos desta redoma histórica, depressa percebemos que tínhamos chegado a uma espécie de Algarve marroquino. Ou seja, uma estância balnear tipicamente marroquina... para marroquinos locais e emigrantes, que regressam ao país no Verão. Sem ser exactamente uma terra bonita, tem um colorido muito próprio. Quanto mais não seja porque, aqui, já quase ninguém fala francês e tivemos de nos desenrascar de outra maneira.
 
Estávamos todos sequiosos de praia, de mar. Os meus homens correram para a água. Eu não. Infelizmente a praia marroquina não deixa de ser uma amostra desta sociedade árabe. Homens e rapazes livres, como se nada fosse, alegremente a tomar banho no mar. Mulheres e meninas vestidas, tapadas, com véus a proteger cabelos e caras. À primeira vista, a alegria de uns e de outras parece a mesma, mas depois percebe-se que não. Senti-me triste.
 
Enquanto o meu amor e os rapazes tomavam banho, passeei longamente pela praia à beira mar. De calções de ganga e t-shirt. Algumas mulheres trocavam sorrisos cúmplices à minha passagem e acenavam com a cabeça, como se me agradecessem. O que não me fez sentir melhor, longe disso. O Diogo perguntou-me se tinha vergonha dos olhares masculinos, um bocadinho mais insistentes desde que nos tínhamos afastado da turística Marraquexe. Tentei explicar-lhes que se tratava de mera solidariedade feminina. Quem era eu para ostentar a minha liberdade de europeia e, deste modo, ser conivente com aquela repressão? Não tenho a certeza de que me tenham compreendido. Lembrei-me da minha pequena crise de consciência por, à última da hora, ter cedido à vaidade e ter ido a correr comprar um biquíni novo na Primark antes da viagem. Senti-me envergonhada por me ter preocupado com coisas afinal tão comezinhas. Às vezes, precisamos mais de um banho de realidade do que de mar...
 
Quando os rapazes se fartaram, foram para as toalhas guardar as nossas coisas para o meu amor e eu podermos ir ao banho. Fui vestida, claro está. A água estava morna, mesmo apetecível. Depois, sentámo-nos a ver as fotos que eu tinha feito na praia, discretamente. Os miúdos voltaram para a água, numa alegria parva. De repente, virei-me... a minha mala tinha desaparecido. A meio metro de nós. Com imensas famílias à volta, que ficaram estarrecidas quando se aperceberam do que tinha acontecido. Ninguém viu nada. Num segundo de distracção, fiquei sem a minha carteira. Sem o telemóvel, com todos os meus contactos portugueses e belgas. Fiquei sem documentos. Fiquei sem dinheiro, nem cartões multibanco. A Polícia perguntou-me por que razão fui com aquilo tudo para a praia. Não sei. Foi uma estupidez. Talvez porque o quarto não me pareceu suficientemente seguro. Porque primeiro fomos almoçar que nem uns reis e eu pensei que pudesse precisar de ir levantar mais dinheiro. Talvez porque era suposto irmos só dar um mergulho rápido à praia antes de irmos dar uma volta de reconhecimento. Não sei.
 
Para me secar as lágrimas, o meu amor lembrou-me que os passaportes e os cartões visa tinham ficado num local seguro, no hotel. Disse-me que só quem nunca viaja é que não tem azares. O chefe da Polícia garantia que o importante era a saúde, tudo o resto era acessório. Os miúdos tentavam processar os acontecimentos. Por eles, decidimos continuar como se nada fosse. Aprender a viajar é também aprender a superar as adversidades que vão surgindo. Desencantar soluções imaginativas. Manter o bom humor e o sorriso, aconteça o que acontecer. A próxima cidade esperava-nos...

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Viagem a Marrocos - dias 2 e 3

(onde nos perdemos alegremente na medina em Marraquexe)

 
O meu amor preparou-nos uma surpresa à chegada a Marraquexe... reservou um quarto num riad, no centro da medina. Nada menos, nada mais do que a suite Royal. Os miúdos pareciam uns maluquinhos, às gargalhadas. O cansaço de um dia inteiro de viagem desapareceu como que por milagre à medida que iam descobrindo o palacete com a piscina interior e os salões tirados das "Mil e uma noites". Os nossos aposentos dignos de uns príncipes. O Vasco, que tinha tido uma pequena crise de choro ao atravessar a praça Jemaa el-Fna e o souk imundados de gente às nove da noite, recuperou num instante a boa-disposição que lhe é característica.
 
Os dois dias seguintes foram passados por aqui mesmo. Fazíamos pequenas excursões e regressávamos ao riad. Perdi a conta aos duches de água fria que tomámos. Aos litros de sumos de fruta, água e chá de menta que bebemos. Estava muitooo calor. Principalmente estava muita confusão. Marraquexe, em plena recta final do Ramadão, é caótica. Uma autêntica explosão de sentidos que requer alguma habituação. Mas, devagarinho, as coisas foram-se fazendo... quase sempre a pé. Visitámos o museu de Marraquexe e o jardim Majorelle. Perdemo-nos vezes sem conta nas ruelas da medina. Explorámos cada recanto do souk. Calcorreámos a Jemaa el-Fna, sentindo a sua pulsação tão diferente segundo a hora do dia. Espreitámos as mesquitas. Dedicámo-nos a fazer coisas gratuitas, apenas para "o prazer dos olhos", como dizem os marroquinos.
 
Excepto comida, bebida, transportes públicos e algumas (muito poucas) entradas, não gastámos dinheiro nenhum. Recusámos educada, mas firmemente, todas as ofertas que nos foram feitas. O Diogo descobriu que as coisas corriam melhor quando agradecia levando a mão ao peito. E descobrimos um novo talento da nossa coisa pequena, que afugentava todos os vendedores da banha da cobra com argumentos imbatíveis.
 
Tenho de confessar uma coisa, correndo o risco de parecer uma mãe babada... os meus rapazes nunca nos pediram para comprar o que quer que fosse. As únicas vezes que nos pediram dinheiro - o deles, não o nosso - foi para dar esmolas e deixar gorjetas. Bastante generosas, diga-se em abono da verdade. O Diogo mostrou-se especialmente sensível à miséria humana que grassa pelas ruas. E à imensa solidariedade que reina na sociedade marroquina. Viajar também é isto...ver como as nossas crianças se comportam noutros contextos. Nós já temos uma certa carapaça, eles ainda não. E reagem com o coração. Talvez nos caiba a nós ensiná-los a endurecer, não sei. Nós não fomos capazes. Limitámo-nos a assistir comovidos. Orgulhosos. E a tentar aprender com eles a ver as coisas com um olhar menos poluído de gente grande.

sábado, 18 de julho de 2015

Viagem a Marrocos - dia 1

(onde se fala de viagens lowcost e de Bosh)

 
  
 
Quando dizia a alguém que íamos passar férias a Marrocos, ouvia invariavelmente um "Ahhhhhh... mas que bem!", que implicava um juízo de valor sobre a nossa capacidade financeira. Ora talvez seja útil referir que já se consegue viajar de modo bastante económico... assim se esteja disposto a fazer as concessões necessárias. Passámos uma tarde (vá, passou o meu amor, que tem muito mais jeito que eu para isso) à frente do computador a fazer simulações de voos em diversas companhias lowcost. Depois de várias tentativas, conseguimos desencantar voos para os rapazes e para mim bastante baratos. E outro para ele, que vinha de Itália. As quatro passagens não chegaram a 400 euros.
 
Começámos por ir de Charleroi a Madrid, muitooo cedo. E, depois, de Madrid a Marraquexe bastanteee tarde. O que podia facilmente ser encarado como uma escala secante de meio dia num qualquer aeroporto sem importância, transformou-se nas nossas mentes curiosas numa aventura. Tínhamos pouco mais de oito horas para conhecermos a capital espanhola. Pronto, o facto de eu já ter estado diversas vezes em Madrid e de falar espanhol, pode ter ajudado. Conseguimos passear, ver o centro e... ir ao Prado! É um dos meus museus preferidos, onde estão os dois quadros que mais amo. Para mim, viajar também é ter oportunidade de dar a respirar cultura aos meus filhos. Quando digo "dar a respirar" é propositado. Porque é muito diferente impingir um museu ou dizer que não posso deixar de aproveitar esta oportunidade para ir namorar os meus quadros favoritos. A curiosidade com que eles estavam à partida era outra... conseguimos entradas gratuitas no Prado, porque os estudantes e os professores não pagam. E fomos até lá a pé, bem entendido. Infelizmente, a "Queda de Ícaro" não estava em exposição, mas ficámos imenso tempo a admirar o "Jardim das Delícias". Eles adoraram. E descobriram novos detalhes que me escapavam. Há lá coisa melhor do que partilhar um encantamento com os nossos filhos?
 
Acabámos o dia estafados, suados, esfaimados. Deixei-os ir ao Burger King para compensar. Estavam mesmo felizes! O voo para Marraquexe fez-se na maior animação, tínhamos passado um dia em grande. o final perfeito foi reencontrar o meu amor no destino final... As férias podem começar!

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Acabaram-se as férias mãe & filhos

(nunca pensei dizer isto, mas souberam a pouco...)


 

Acabam hoje estas nossas férias mãe&filhos, que duraram três semanas. Três longaaaas semanas. É preciso que se diga que eu tinha de trabalhar nos primeiros quinze dias. Mas, como tenho um chefe para lá de bestial, pude ficar em casa na primeira semana e fazer horário completo na segunda. Este país é fantástico a encontrar soluções para quem tem filhos.

O Diogo começou por ir passar uns dias a casa de um amigo e eu pude dedicar-me exclusivamente ao Vasco. Deixei-o dormir na minha cama, que normalmente é território interdito. Fartámo-nos de passear de mãos dadas. Conversámos muito. Fizemos imensos programas a dois: fomos jantar fora, ao cinema, ver uma exposição. Fomos às compras no Luxemburgo, escolher o material escolar para o próximo ano. Calcorreámos algumas vendas de garagem, onde desencantámos bons achados. Ofereci-lhe uma caixa de Legos. Livros para as férias. Acho que lhe fez bem ter a mãe só para ele, os bichos carpinteiros da coisa pequena acalmaram um pouco. Tornou-se ainda mais meiguinho.

Quando o Diogo voltou, trazia o amigo atrás. Já percebi que os adolescentes andam sempre aos pares. Aproveitámos os dias de canícula para irmos a uma praia fluvial de sonho, pertinho de casa. A Bélgica ainda nos consegue encantar, tantos anos depois. Não é bem a praia, mas é quase, quase, como se fosse.

Na segunda semana, voltei ao trabalho decidida a recuperar o tempo perdido que me foi gentilmente oferecido. O Vasco foi para um estágio de equitação, onde aprendeu a tratar de cavalos. Fartou-se de andar a trote levantado sozinho. E de fazer disparates, evidentemente. Voltava todos os dias imundo como nunca vi. O Diogo ficou em casa com um novo amigo flamengo, enteado de uma antiga colega de faculdade. Vinte anos depois, encontrámo-nos finalmente. A vida dá voltas engraçadas. A ideia era o Slaine melhorar o seu francês e o Diogo aprender uns rudimentos de flamengo. Entenderam-se às mil maravilhas… em inglês, pois claro.

Na última semana, o Diogo foi passar uns dias a casa do Slaine, em Antuérpia. Foram os dois sozinhos, de comboio. É muito bom ver o meu adolescente ganhar asas, conquistar liberdades de gente crescida. Divertiu-se à grande, mas a única coisa que aprendeu a dizer em flamengo foi “bom apetite”. O Vasco aproveitou para recuperar alegremente o seu posto de filho único. Fomos buscar o irmão uns dias depois para começarmos a tratar da viagem. Desta vez, disse-lhe que fazia questão de passar uns dias sozinha com ele. Sem idas para casa de amigos, nem amigos cá em casa. Foi difícil, mas consegui. Soube tão bem fazer programas a três com eles. E, quando o pequeno já estava a dormir, aproveitar para ver séries e conversar calmamente com o meu adolescente preferido.

O melhor destas férias foi exactamente isso… as conversas com os meus rapazes. Perceber que gosto muito da companhia deles, de estar com eles, de falar com eles. Saber o que lhes passa pela cabeça, o que pensam sobre vários assuntos. Uns mais filosóficos, outros mais terra-a-terra. Independentemente de serem meus filhos, é importante para mim ver que os aprecio como pessoas. Gosto mesmo destes dois, têm um sentido de humor truculento que eu adoro.

E, no meio disto tudo, as visitas da família e amigos que nos encheram o coração. Patuscadas que também alimentam a alma. Idas a diferentes médicos. Burocracias sem fim. Aquelas coisas chatas que fazem parte da vida comezinha de todos os dias, férias incluídas.
 
Amanhã é outro dia. Amanhã é o dia. Vamos ter com o meu amor a Marraquexe. A aventura espera-nos...

terça-feira, 14 de julho de 2015

Um dia, a ficha cai

(e, afinal, até demorou bem menos do que eu previa)


 

Há um ano atrás, estávamos a viver um verdadeiro inferno nesta casa. A tal ponto que, em plenas férias judiciais, acampei no Palácio de Justiça e só saí de lá depois de ser recebida por um representante do Procurador. Quando os meus filhos partiram para Portugal em Agosto, havia um plano de emergência pronto a ser activado, caso o Diogo não voltasse. Um número de contacto directo que guardei religiosamente. Os raptos parentais na Bélgica são relativamente frequentes e os meus receios foram encarados com seriedade. Estou convencida de que se não tivesse tomado esta atitude – e não tivesse informado quem de direito de que agiria em consequência – o Diogo nunca teria regressado à Bélgica.

Voltou, mas parecia outro. A mudança já se vinha a anunciar há uns tempos. O meu filho crescido estava cada vez mais infeliz. De mal com o mundo, connosco, consigo próprio. Agressivo e mal-educado. Anti-social. Foram tempos muito complicados e a nossa vida familiar, alvo de duras críticas, ressentiu-se. A única coisa que dizia, até à exaustão, era que queria voltar para Portugal. Nunca me conseguiu justificar completamente esta “sua” decisão. Muito menos, explicar-me por que razão se queria separar do irmão, que sempre adorou. Ou de mim. O seu discurso parecia dirigido, comprado, ensaiado. Fechado ao diálogo. Cego, surdo e mudo. Decidi baixar os braços e deixar andar. Entregar para Deus, como dizem os brasileiros. O deus dos ateus, bem entendido.

Iniciámos um novo ano escolar que, segundo o meu amor, seria a solução milagrosa do problema. O quotidiano estruturou-se em função das diferentes actividades extracurriculares dos nossos rapazes. A vida retomou o seu curso habitual. O Diogo estreitou amizade com antigos colegas, que passaram a ser visitas frequentes da casa. Retomámos os nossos passeios de fim-de-semana. Umas vezes, corriam melhor… outras, pior. No cômputo geral, devagarinho, as coisas foram entrando na ordem. Os meses sucederam-se. A vida nesta casa regressou à normalidade. A guerra deslocou-se para sede própria, onde o Diogo foi ouvido pela juíza encarregue do caso. E tenho a certeza de que um peso enorme lhe saiu dos ombros. Foi como se uma sombra se tivesse dissipado, o sol voltou a brilhar. A diferença de comportamento foi imediata.

Na Primavera, recebemos a decisão judicial tão ansiada. O Diogo e o Vasco ficavam comigo, na Bélgica. Com direito a pensão de alimentos e metade das despesas extraordinárias, finalmente. O meu adolescente aceitou esta decisão com uma boa vontade que me surpreendeu. Nunca mais falou no regresso a Portugal, encerrou definitivamente esse capítulo. Empenhou-se na sua vida neste país, como nunca antes o tinha visto fazer. Começou a projectar-se no futuro, a fazer planos a longo prazo. Voltou a ser um miúdo estupidamente feliz. Melado. Com um sentido de humor apurado. Adolesceu de repente. Ganhou maturidade e asas. Principalmente, ganhou espírito crítico e capacidade para compreender certas situações, que eu sempre me esforcei por dissimular.

Infelizmente, há pessoas que não sabem aceitar a derrota e, com um novo ímpeto raivoso, arranjam maneira de continuar a querela em várias frentes. Tive de aceitar que nunca terei paz na vida, por mais que o tempo passe. Tive de aceitar que há quem se julgue acima da lei, que de facto protege os pequenos bandalhos. Tive de aceitar que financeiramente sou eu quem tem de levar o barco a bom porto, nos próximos anos. Custe o que custar. A diferença, agora, é que o Diogo já não aceita ficar à margem da contenda. Faz questão de saber o que se passa, de tomar parte das discussões. Das decisões que lhe dizem respeito. Já não lhe consigo esconder nada, porque ele não se deixa enganar. O santo caiu do seu pedestal. O Diogo, aos 14 anos, decidiu tomar as rédeas da sua vida. E, pela primeira vez, impôs-se. Ganhou coragem. Pediu explicações para os insultos de que sou alvo. Respondeu duramente. Exigiu o que lhe pareceu justo. Lutou sem baixar os braços por aquilo que queria. Foi graças a ele que obtivemos autorização para viajar para Marrocos, nomeadamente. Já percebeu que não consegue resolver tudo, que não se pode meter em tudo, que há muitas coisas que lhe escapam. Mas começou finalmente a perceber aquilo que se passa à sua volta e a pensar pela sua própria cabeça.

Há uns dias, veio cá abaixo desejar-me boa-noite. Falámos um bocadinho. Já ia a subir as escadas, quando me atirou... “Obrigada, mãe.” Perguntei porquê. “Por teres lutado por mim. Por nunca teres desistido. Por teres conseguido que eu ficasse contigo, na Bélgica. Agora, percebo.”

Apesar de saber que vou continuar a perder algumas batalhas, ganhei a guerra.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

O amor também precisa de férias

(onde se mostra como sublimar um fantasma)


 

Nem toda a gente entende esta nossa forma de amar. Normalmente o amor é presença, é união. É comunicação. Para nós, o amor também é feito de distância, de pausas. De silêncios. O amor tem de ser temperado de equilíbrio, caso contrário esgota-se.

Como o Principezinho e a raposa, o nosso amor nasceu devagarinho. Aprendemos a cativar-nos mutuamente. A esperar. A ansiar um pelo outro. E ainda hoje fazemos questão de celebrar essa espera. De sublimá-la. Faltam três dias para nos reencontrarmos e eu estou ansiosa. Sinto um nervoso miudinho que me faz ansiar que estes últimos dias passem muito depressa. Revejo as novidades todas que tenho para lhe contar. As pessoas que encontrei, as conversas que tive, os locais onde fui, as coisas todas que vi. As experiências que vivi e que tenho absolutamente de partilhar com ele. Porque só assim tudo faz sentido.

O nosso amor cresceu entre encontros e reencontros fugidios por essa Europa fora. Eu fui ter com ele a Perugia. Encontrámo-nos os dois em Frankfurt. Ele veio ter comigo a Seaford. E a Bruxelas e a Lisboa. E a cada espera num novo aeroporto, a mesma dúvida… Será que ele vem? Veio sempre. E eu aprendi a gostar de sentir este medo bom. As borboletas.

Não foram tempos fáceis. Era um amor que tinha tudo para não dar certo. Principalmente porque nenhum de nós queria isto, uma relação. Uma prisão. Nenhum de nós queria dar o peito ferido às balas. Prescindir da sua liberdade. Mas algo nos atraía um para o outro. Uma espécie de força telúrica, de movimento perpétuo, que nos atirava para o ponto de partida, geograficamente cambiante. E a cada novo abraço, a certeza de que a nossa casa era ali, no peito um do outro. Nos braços um do outro. E a cada nova despedida, a certeza de que algo estava errado. De que o ar rareava.

Podíamos ter decidido encerrar este capítulo doloroso. Enterrá-lo no buraco negro da memória. Em vez disso, fazemos questão de relembrá-lo uma e outra vez. Infinitamente. Tornou-se o nosso fetiche. Testamos a nossa liberdade e a nossa vontade de estarmos juntos. Afastamo-nos para melhor nos reencontrarmos. Deixamos crescer o desejo. Afastamo-nos e quase não comunicamos. Fazemos por isso. Uma mensagem aqui e ali. Curta, sem grandes explicações ou lamechices. Le langage est source de malentendus, já dizia a raposa. Ele aproveita para respirar, eu fico a curtir os meus filhos. Cada um de nós vive intensamente estes momentos de paz a sós.

Aos poucos, a saudade começa a insinuar-se. O passarinho no meu peito deixa de cantar. E eu começo a pensar nele. No que mais amo. Em todos os pequenos defeitos que detesto individualmente, mas cuja soma me cativa porque faz dele uma pessoa única no mundo. No meu mundo. Daqui por três dias voltamos a encontrar-nos, desta vez em Marraquexe. Será que ele vai lá estar? Eu sei que sim. Acredito que sim. Com aquele sorriso que ele guarda para os nossos reencontros. Com um abraço muito apertado. E uma voz doce que me murmura… “Vês? Estou aqui à tua espera. Eu disse-te que vinha.”

E, cada vez que isto acontece, é como se voltássemos ao início. Ao instante em que nos apaixonámos. Ao primeiro beijo roubado. Podemos ser livres quando quisermos, sabemos que a liberdade está mesmo ali, ao virar da esquina. Ao nosso alcance. Mas escolhemos estar juntos. Um dia de cada vez, como sempre fizemos. Porque, para nós, aquela história do “para sempre” é demasiado tempo. A seguir a este encontro, mais ou menos longo, haverá outro desencontro. E outro encontro, inevitavelmente. O nosso amor vai-se edificando graças a este equilíbrio constante. E da espera que é fonte de felicidade, como tão bem ensinou a raposa.
 
 

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Antítese

(onde se fala dos preparativos para a nossa aventura)


 

Estão a ver aquele post da Pipoca sobre o que levar na mala quando se vai de férias? Sim, aquele patrocinado pela Samsonite… cujo preço da mala mais pequenina deve exceder em muito o que pagámos pelas nossas passagens de avião. O tal onde se enumera uma lista de artigos absolutamente essenciais, como a placa para alisar o cabelo, quatro pares de sapatos, diversas malas e acessórios, muitos conjuntos de roupa, incluindo vestidos de noite e o pijama. Já estão a ver o post em questão? Pronto, agora esqueçam. Não tem nada a ver.

Vamos 15 dias para Marraquexe apenas com a bagagem de mão. Quatro mochilas velhas, para ser mais exacta. Cada um carrega a sua. Vamos com os ténis calçados e umas sandálias na mala. Os bonés na cabeça e os casacos à cintura. Levamos aquelas toalhas de banho/praia da Decathlon que se dobram até caberem num saquinho minúsculo. Um necessaire comum, que cá em casa gostamos de partilhar. Excepto as mini-escovas de dentes, claro. Escolhemos a roupa mais velha que tivermos. A que já estiver mesmo coçada e a deixar de servir, que podemos ir lavando nos hotéis. Cinco ou seis t-shirts, três pares de calções, umas calças de ganga. Um fato de banho deslavado. Alguma roupa interior. Eu levo um ou dois vestidos de algodão. Tudo isto estrategicamente enfiado nas mochilas de modo a sobrar espaço para levar o que é realmente imprescindível nas férias… livros.

Estão a ver os últimos posts da Cocó? Sim, aqueles sobre as férias da família em Marraquexe. Estão a ver o Club Med, com suas as piscinas paradisíacas, as palmeiras frondosas, os desportos à escolha, as festas temáticas à noite? Estão a ver aquela família sorridente, limpinha e nada suada, apesar dos 45º graus à sombra? Estão? Pronto, agora esqueçam. Não tem nada a ver.

Nós vamos atravessar meio Marrocos em 15 dias. 600 quilómetros, no total. Com um orçamento muito restrito, o que nos vai obrigar a ser imaginativos. Todos os meios de locomoção são possíveis. Os hotéis são os que conseguirmos arranjar pelo caminho. Come-se onde calhar, quando a fome apertar. O percurso está mais ou menos decidido. Ou talvez não. Gostamos de aventura. Cultivamos o imprevisto. O Diogo queria ir à praia. O Vasco gostava de ver o deserto. O meu amor sonha com a ascensão do monte Toubkal. Eu só queria dormir num Riad. Ou andar a cavalo. Principalmente, quero estar com eles. Aproveitar ao máximo. Num universo desconhecido, envoltos numa língua estranha. Não sei porquê, mas acho que vão ser umas férias de sonho. Daqui por uma semana estamos lá e tenciono ir dando notícias.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

O segredo

(porque é preciso amadurecer a coragem de ser diferente)


 

O Vasco tem um segredo. Segundo ele, é assim um bocadinho como as vidas duplas dos super-heróis. Agora que penso, é engraçado que a coisa pequena tenha descoberto os super-heróis este ano. Ele que nunca se aventurou muito para além do universo do Star Wars. O mais curioso é que o Vasco não se interessou exactamente pelas histórias típicas dos super-heróis, como seria de esperar. Os livros que ele agora devora são um género de biografia. Falsa biografia, evidentemente. Tipo, “Batman, o super-herói” ou “Superman em construção”. Livros que exploram o nascimento do super-herói, a sua vida dupla. Acho que funcionam mais como material de pesquisa do que como objecto literário.

Seja como for, há quase um ano que o Vasco mantém o seu segredo. Ninguém sabe que ele anda no ballet. Aqui, diz-se dança clássica. Como é evidente, a família e os amigos mais chegados sabem. Mas ele prefere não falar muito sobre o assunto. Faz questão de cultivar esse segredo, essa vida dupla. Em casa, nunca está quieto. Bicho-carpinteiro em acção. Passa a vida a correr, a dançar, a rodopiar, a fazer saltinhos e piruetas. A ensaiar o pas de bourré, o chassé, o coupé… Dá gosto vê-lo fazer pequenos passos, completamente distraído. Alheado do mundo que o rodeia. Nunca faz os esquemas completos, só excertos, vindos do nada. E apenas quando estamos em família. Treina a memória do corpo. Às vezes, mostra-me o que aprendeu. “Olha aqui este novo passo, mãe…” O jeito não é muito, sejamos sinceros. Mas o importante é que ele gosta.

A professora é muito dura com eles. Está sempre a ralhar nas aulas. Principalmente com o Vasco, que começou há menos tempo e não tem a graciosidade da meninada. Nem a mesma capacidade de concentração. Mas ele adora-a. Acha-a engraçada, sabe-se lá porquê. O boletim do Natal não foi extraordinário e ele desmotivou. Nunca tinha recebido más notas na vida, não foi fácil. Voltou a animar com o espectáculo que deram em Março, onde se portou lindamente… apesar de ter tido medo que algum colega da escola pudesse reconhecê-lo em palco. Do pouco que pude ir espreitando das aulas, pareceu-me que estava a melhorar. Além de gostar muito de dar asas ao corpo, o Vasco também aprecia toda a componente física, anatómica, da dança clássica. Às vezes, a professora explica o movimento de uma determinada parte do corpo e eles têm de pôr as mãos naquela zona para sentirem o movimento, de tal forma é imperceptível a olho nu. Têm de aprender a sentir o corpo, a ouvir o corpo, que é uma coisa que os homens fazem pouco na nossa sociedade.

Há pouco tempo, fomos consultar dois ortopedistas, porque o Vasco começou a coxear e a professora de ballet me alertou para rigidez de certos músculos. Depois de um susto inicial e de vários exames, percebeu-se que não era nada de grave. O Vasco dificilmente será um bailarino, mas tem de continuar a fazer dança clássica, porque funciona como uma espécie de fisioterapia localizada. A coisa pequena teve muita dificuldade em admitir que andava no ballet, à frente dos diferentes especialistas que o analisaram. A dada altura, um médico germanófono que falava um francês atabalhoado, explicou que era uma sorte o Vasco gostar de ballet e não de futebol, um desporto que nunca poderia fazer. A coisa pequena percebeu que o médico queria que ele se inscrevesse no futebol e exclamou, aflito. “Futebol?! Mas eu detesto futebol!” Compreendi, então, que esta história do segredo do Vasco tinha outra dimensão. Porque não só ele não diz a ninguém que anda no ballet, como passa os recreios a jogar à bola. E a dar-me cabo dos ténis e das calças. Quando o questionei, respondeu-me que é o que todos os colegas fazem. Tipo efeito de grupo. Que não quer ser diferente. Que não quer que gozem com ele. Lembrei-o da inveja que o Diogo e o amigo tinham sentido quando lhes contou que, durante o espectáculo de ballet, as miúdas todas – da mais nova à mais velha – se tinham despido à sua frente, nos balneários. “Deixa-os crescer mais um pouco e tu vais ver…”, disse-lhe para o animar. Ele fez-me um sorriso cúmplice. “Eu sei, mãe!” É esperto este meu filho pequeno.

Igualmente esperta é uma colega da escola do Vasco, que ainda está na Maternelle. O que só prova que, de facto, as miúdas amadurecem muito mais cedo. A menina em questão também anda no ballet, numa turma anterior à do Vasco. Quando ele entra, está ela a sair. Aqui há uns tempos, a miúda perguntou-lhe no recreio se ele andava na dança clássica. O meu super-herói disse logo que não. Nem pensar nisso. Que disparate. Olha que ideia. A menina não desistiu. Disse que o via todas as terças-feiras a entrar para a aula de ballet. Mas o Vasco já tinha o argumentário preparado e explicou que andava num ATL, na mesma escola. Ela não insistiu, foi-se embora. E o Vasco pensou que estava safo. Parvo, vê-se bem que ainda não conhece os meandros subtis da mente feminina. No último dia de aulas, a professora de dança reuniu as turmas todas para entregar os boletins e encher a criançada de doces. A coleguinha também lá estava, claro. O Vasco decidiu ignorá-la, tornando-se invisível com os seus superpoderes. A miúda entrou no jogo e fingiu que não o via. Para seu azar, a professora estava especialmente bem-disposta e fartou-se de brincar com o Vasco. Meteu-se com ele por causa dos trambolhões e das leggings rasgadas, elogiou-lhe os progressos, fez questão de ler em voz alta o que tinha escrito no boletim sobre a capacidade discursiva do pequeno bailarino… Enfim, o Vasco acabou por ser a estrela da companhia. À saída, a menina veio ter com ele. A coisa pequena encolheu-se, mas não tinha como fugir. E, do alto dos seus cinco anos, a miúda disse-lhe meigamente: “Ainda bem que nenhum de nós anda na dança clássica, não é?!” Algo envergonhado, o Vasco confessou-me depois que achava que o seu segredo estava em boas mãos...

terça-feira, 7 de julho de 2015

Álibi perfeito

(começo a ficar seriamente desconfiada

de que o provincianismo é mesmo universal)



Recebi o programa das festas do meu bairro. Isso mesmo… do meu bairro, apenas e só. É a pomposa “Fête du Quartier de la Gare”. Três dias de festa para celebrar pouco mais de uma dúzia de casas situadas em frente à estação dos comboios. Na minha modesta opinião, isto mete qualquer arraial de santos populares a um canto. Para mim, nada e criada em Lisboa, o arraial de Santo António era o expoente máximo da festa bairrista. Até aterrar nesta terra, à beira do lago plantada, e passar a fazer parte do quarteirão da estação. Vá… do quartier de la gare, que isto em francês sempre parece mais fino.

Já percebi que a data escolhida não é o mais importante. O que interessa é unir a malta, confraternizar. À falta de um santo padroeiro para abençoar o bairro, escolhe-se o fim-de-semana anterior à festa municipal. Que coincide com a festa nacional. No dia 21 de Julho, enquanto o resto da Bélgica festeja a independência, Vielsalm festeja o dia do mirtilo e das bruxas típicas da nossa região, as Macralles. Onde o meu bairro também participa, claro está. Feitas as contas por alto, os meus vizinhos vão andar quase uma semana em festa. São uns foliões.

O programa da “Fête du Quartier de la Gare” apareceu na caixa do correio há uns dias atrás. A vizinhança apressou-se a colar os cartazes nos vidros traseiros dos carros. Se me dissessem que era o programa das festas anuais de Moimenta da Beira eu teria acreditado. As festividades abrem com um karaoke, na sexta-feira à noite. No sábado, há uma demonstração de perícia de camiões, seguida de uma demonstração de Wrestling. O serão promete ser longo com um baile animado pelo duo Roby & Caroline. No dia seguinte, às 11h da manhã já estão a servir o aperitivo para acompanhar o mui reputado almoço do bairro da estação.

Como me fiz de desentendida, voltaram a pôr-me mais um cartaz na caixa do correio... não fosse o outro ter-se extraviado por artes mágicas, nunca se sabe. Obviamente, este também acabou no caixote do lixo. Mas parece que o bairro da estação é composto por gente de fibra. Gente que não baixa os braços e vai à luta. A minha vizinha estranhou a falta de entusiasmo e, ontem à noite, foi lá a casa entregar mais um programa. Desta vez, bastante detalhado… “para abrir o apetite”, segundo me explicou sorridente. Mostrei-me mortificada. Nessas datas, vamos estar em Marrocos. É uma pena. Uiiii… o que eu queria ver os camiões do Choffray! Ou dançar ao som das músicas românticas do Roby e da Caroline! Mas, não… não dá mesmo. Quem sabe para o ano? Hummm...

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Recebi uma notificação do tribunal

(onde se sente uma tristeza profunda

pelo estado do país que nos viu nascer)


 

Recebi uma notificação do Tribunal Judicial Comarca de Lisboa Norte que rezava assim:

Fica V. Exª notificada, na qualidade de Arguida, para no prazo de 10 dias, informar os autos se concorda com uma eventual suspensão provisória do processo pelo período de 4 meses, mediante o cumprimento da injunção de entregar a quantia de € 300,00 à “Associação Ajuda de Berço”.

Liguei de imediato para o tribunal a perguntar de que processo era eu Arguida (assim mesmo, com maiúscula), já que ninguém se tinha dado ao trabalho de me explicar na dita notificação. Fui tratada com desprezo... “Mas a senhora de certeza que já foi ouvida no âmbito deste processo de agressão!” Voltei a perguntar delicadamente de que processo se tratava. Fui, então, informada de que se tratava do processo em que o meu ex-marido me acusou de ofensa à integridade física de um menor. Vá… de espancar o meu filho Diogo publicamente. Lembram-se daquele calduço que se transformou numa queixa por coups et blessures punível com uma pena de prisão de um ano? Pois… eu já me tinha esquecido, apesar de ser um dos posts mais lidos deste blog.

Fui ouvida, sim, senhora. Eu e o meu filho Diogo, na Polícia de Vielsalm. Ambos negámos todas as acusações, no Verão passado. Mas, pelos vistos, o procurador acha que talvez haja matéria para ir a julgamento. Dois anos e meio depois da queixa inicial. Depois de o tribunal belga ter reconfirmado a decisão inicial de deixar ambas as crianças viverem comigo, na Bélgica.

Perguntei que história era aquela de pagar 300€ à Ajuda de Berço para suspender provisoriamente o processo. Ah, é muito simples… se eu concordar em pagar essa verba, o processo fica provisoriamente suspenso. Fico “apenas” com uma “nota” no meu registo. Mas o processo é arquivado, ad aeternum, ao que parece.

E, aqui, a minha alma ficou parva. A sério. Não queria acreditar no que aquela funcionária do tribunal me estava a explicar, com a voz mais calma do mundo. Como se aquilo fosse normalíssimo. Só me ocorreu perguntar-lhe se estava tudo doido naquele país. Se tinham enlouquecido todos de vez.

“É só uma proposta, a senhora pode dizer que não aceita e preferir ir a julgamento, se for caso disso”, respondeu-me impávida e serena a funcionária. Eu não agredi o meu filho, recuso-me a ver arquivada uma queixa desta maneira infame. Prefiro de longe bater-me pela justiça em tribunal. Só não sei se a Justiça em Portugal ainda terá uma venda ou se ficou definitivamente cega.

Quer dizer, se de facto eu fosse uma mãe abusiva, se de facto eu tivesse espancado o meu filho de 12 anos, dois anos e meio depois do ocorrido, a queixa poderia simplesmente ser arquivada mediante o pagamento de uns míseros 300€ à... à… Ajuda de Berço, uma instituição de acolhimento de crianças em risco?!!!

Pela mesma ordem de ideias, um marido suspeito de agredir a mulher poderá ver o seu processo arquivado mediante o pagamento de 300€ à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, certo?! Ou uma pessoa que espanque um cão poderá pagar 300€ à União Zoófila, é isso?

Não sei para onde caminha Portugal, mas sei que vai a passos largos. Deixei de me rever no meu país há muitos anos. Nas políticas, nas instituições... Sinto vergonha. Sinto uma tristeza profunda. Hoje não sou emigrante, hoje sou exilada.

Construir novas memórias

(porque afinal as férias também servem para isto)


 

Hoje, com um sorriso perverso, o filho grande recordou-me que a última vez que tínhamos estado na praia eu ainda lhe conseguia fazer amonas. Agora, era capaz de ser um bocadinho mais complicado…

E, de repente, a realidade apanhou-me. Ali, no meio do lago. Voltou a apanhar-me. Às vezes, ainda me acontece isto. Ficar momentaneamente parada no limbo da memória. Ter a percepção exacta do tempo que passa. Construir esta nova vida tem exigido tanto de mim que nem sempre consigo traduzir as nossas vivências em semanas, meses, anos. O Diogo já tem mais 20 cm do que eu. E faz questão de os mostrar. Aquele filho que os meus olhos passaram o dia à procura no areal já tem tamanho de homem. Há três anos que não íamos à praia juntos, no Verão. Estávamos a precisar de actualizar as nossas memórias à imagem do nosso tamanho real.

No outro dia, passou-se o mesmo no meio do trânsito. Estávamos parados num sinal e o Vasco começou a fazer-me perguntas sobre os nossos primeiros tempos aqui, na Bélgica. Já não se lembrava de tanta coisa! E novamente aquele choque de confronto com a realidade. Quando deixámos Portugal, o meu filho pequeno tinha apenas cinco anos. Era um bebé grande. Agora, vai para o quarto ano. É um rapazinho crescido. Tem oito anos de memórias maioritariamente construídas neste país, nesta nossa nova vida… cujos primórdios sente necessidade de recordar.

As férias também servem para isto. Para recordar o passado e cristalizá-lo numa determinada fase da nossa história de vida. Para dar sentido e arquivar recordações. Para encerrar capítulos e começar novas histórias. Para construir novas memórias. Para nos forjarmos enquanto família. A mãe e os seus filhos. Uma mãe que amadureceu, dois filhos que cresceram imenso. Todos nós precisávamos de novas memórias, novas fotografias para ilustrar a nossa vida presentemente.
 
 




 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Esta não estava no programa

(mas acho que nem me estou a sair nada mal…)


 

Há pessoas que crescem tardiamente, ainda que isso não se manifeste em centímetros ganhos. Pior, há pessoas que ganham juízo tardiamente. Parece que é o meu caso. Tenho os dentes do siso a nascer. A nascer não é bem assim... A ver se nascem. Só agora compreendo o choro intensivo do meu filho Vasco, quando aqueles dentes decidiram vir todos cá para fora ao mesmo tempo. Quer dizer, a verdade é que a criatura desdentada chorou com igual desespero nos seus primeiros meses de vida. Suponho que se há pessoas que crescem tardiamente, outras precisam de mais tempo para perceber que isto não é um sítio mau de todo para se viver.

O problema deste meu crescimento fora de prazo – para além das dores lancinantes – é que um dos sisos decidiu nascer torto. Suponho que isso quererá dizer que tenho o juízo um bocadinho retorcido. A única solução foi mesmo tirá-lo. Eu ia cheia de medo, que sou assumidamente uma mariquinhas. Felizmente, a dentista já me conhece. Com a quantidade de anestesia que levei, até me podia ter tirado os olhos que eu não teria sentido nada. A coisa correu bem… até começar a sentir novamente as minhas orelhas. Aí, com franqueza, só tive vontade de trepar pelas paredes. E fazer desaparecer os meus filhos por umas horas. Vá… por uns dias.

A dentista  disse a brincar que isto ainda me ia fazer bem à linha, porque tinha de ficar a líquidos uns dias. (Fui apanhada a ler uma revista de dietas, quando me foi buscar à sala de espera.) Fiz-lhe um sorriso tão amarelo quanto a anestesia para cavalos me permitiu. E, na realidade, tenho estado a líquidos (e a Voltaren), mas não me cheira que sejam os que ela tinha em mente… É melhor não subestimar a imaginação de uma criatura com fome, quando lhe tiram um pedacinho de juízo: gelado de speculoos, iogurte grego de maracujá, papas de banana e pêssego, massa de bolo de iogurte, o interior dos pastéis de nata morninhos. Não tenho culpa se o Vasco atacou a minha reserva de gelatinas zero e a canja. Ou se o Diogo devora os queijinhos frescos que desencantei no Luxemburgo. Contra a minha vontade, a dieta prescrita pelo cabeleireiro-vidente, corroborada pelo médico mais giro do planeta e confirmada agora pela dentista-anestesista, está em standby até ver.

 

[ Para vosso governo, ficam a saber que ainda caibo perfeitamente dentro das minhas calças de ganga preferidas. E dos calções do Verão passado. Não… é impossível serem do Verão passado. Esteve um frio polar por estes lados, no ano passado. Ainda caibo nos calções que comprei sabe Deus quando, que voltei a usar agora graças à vaga de calor que anda a dizimar os belgas e que nos tem sabido a pato... pronto, a batido de pato, no meu caso. Isto tudo para vos dizer que estou seriamente a pensar patentear esta dieta mágica. Chamar-lhe-ei “Dieta Imaginativa do Siso”. ]