quinta-feira, 31 de julho de 2014

Pena de prisão de um ano

(posso perdoar muita coisa, mas isto nunca)


Incorro numa pena de prisão de um ano. E o que fiz eu, para merecer tal condenação? Dei um calduço ao meu filho Diogo, quando o ouvi chamar “filho da puta” a alguém pela primeira vez na vida. E obriguei-o a pedir desculpa, claro. Suponho que terei feito o que qualquer mãe de um adolescente faria.

“De um calduço, faz-se um par de estalos”, pensei eu, quando soube que tinham feito queixa de mim à Polícia. Arrolando várias testemunhas. Não. Um simples calduço transformou-se em várias chapadas, que terei continuado violentamente a desferir, mesmo depois de um homem de quase um metro e oitenta me ter agarrado para defender o filho. De um simples calduço faz-se uma queixa por ofensa à integridade física de um menor, punida com um ano de prisão. Coups et blessures”, diz-se em francês. Coups et blessures”… palavras que não me saem da cabeça.

Eis-me, então, intimada a ir ao posto da Polícia de Vielsalm prestar declarações. Eu e o Diogo, claro. Ser oficialmente ouvida porque me acusam de espancar o meu próprio filho foi humilhante. Mas ver o Diogo ser levado por um polícia para prestar declarações foi dilacerante. Porque ele só tinha duas hipóteses e qualquer uma dela implicava acusar um dos pais. E isto parece-me demasiado cruel para um miúdo que acabou agora de fazer 13 anos. Se dissesse a verdade e explicasse que eu lhe dei apenas um calduço, o Diogo estaria a admitir que o pai é mentiroso e que prestou falsas declarações. Se confirmasse a acusação que me era feita, o Diogo estaria a admitir que eu era uma mãe violenta. Em qualquer dos casos, um dos pais estaria a mentir sobre um assunto muito grave e cabia-lhe a ele – e apenas a ele – dizer qual deles era.

O Diogo disse não ter visto o pai a agredir-me, nem ter ouvido todas as ofensas que proferiu. O Diogo disse não ter visto a minha cara cheia de vidros, quando o pai partiu o vidro da frente do Jeep do meu companheiro com um murro. Defendeu o pai como conseguiu, porque é um filho excepcional. Mas não foi capaz de mentir. Contou com palavras dele que ofendeu o “padrasto” e que eu lhe dei um simples toque com a mão na nuca para o forçar a pedir desculpa. Que não o espanquei. Que não o magoei. Que não o feri. Que não se sente lesado.

E embora seja a mais pura das verdades, não deve ter sido simples de admitir. Não há vingança que justifique obrigar um filho a passar por isto. O Diogo quer regressar a Portugal e sabe que bastava concordar com a acusação que me era feita para o seu desejo ser satisfeito de imediato. O Diogo idolatra o pai e sabe que essa imagem idealizada ficou para sempre destruída. Porque quando um polícia nos lê uma acusação completamente falsa, cujas consequências podem ser gravíssimas, não há maneira de desculpar o indesculpável. E quando uma mentira cai, fica muito mais difícil continuar a desculpar tantas outras.

O Diogo entrou naquele posto de Polícia com 13 anos e saiu de lá adulto. Ter a coragem que ele teve, sem vacilar, sem se sentir culpado, sem ter medo das consequências da sua lealdade para comigo, é de homem. E eu tenho muito orgulho no homem em que este meu filho se está a tornar. Não é fácil, temos dias muito complicados. A adolescência põe a nu o nosso lado mais negro, mais sombrio. É preciso ter uma força incrível para continuar a lutar por um ser que nos mostra toda a raiva que sente contra o mundo, contra as injustiças, contra tudo o que se opõe às suas mínimas vontades egocêntricas, contra mim. Mas o meu amor é inabalável. Eu sei que à fase de conflito típica desta idade se junta toda uma manipulação maniqueísta que ultrapassa o Diogo. Nem sempre é evidente, mas consigo não misturar as coisas. E o Diogo também conseguiu, quando pôs a verdade à frente dos seus desejos imediatos e de um amor endeusado.

Não sei se o processo será arquivado depois das nossas declarações, espero que sim. Eu tenho a minha consciência tranquila. O polícia pediu-me muitas vezes desculpa, que em 31 anos de serviço nunca tinha visto um disparate tamanho fazer 2500 km para aterrar na secretária dele. Acompanhou-nos à porta e disse-me que tivesse coragem com uma doçura que destoava com o seu corpanzil. É verdade que entrei lá de coração partido e os olhos inchados de tanto chorar. Com meu amor, rochedo sólido ao meu lado. Com um miúdo a arrastar os pés atrás de mim. Mas saímos de bem com a vida. Nós que nos tínhamos zangado na noite anterior, unimo-nos naquela manhã quando fomos apanhados de surpresa. Depois de uma tarde bem passada no mini-golfe, acabámos a noite enroscados uns nos outros a ver televisão. A dar miminho, sem saber onde acabava um e começavam os outros. A mãe a lamber as suas crias.

 

[ Um obrigada especial ao meu pai e à mulher dele que ficaram na retaguarda a guardar o forte. O Vasco ficou em pânico quando viu a Polícia à minha porta logo pela manhã. Pensou que me vinham prender. Enervou-se muito com tudo isto. Mas a segurança, a calma e a firmeza da família são sempre o melhor antídoto. ]

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Podia ter sido aí, mas foi aqui

(porque há coisas universais)


Domingo à tarde. Um hospital de subúrbio. Uma sala de espera apinhada, sem cadeiras livres. O ruído de fundo de um programa desportivo qualquer que ninguém está a ver. A televisão está demasiado longe e o volume demasiado baixo. O ar irrespirável e as pessoas a queixarem-se do calor sufocante. E do tempo de espera. Das suas mazelas e misérias várias.

Um tipo enorme cheio de tatuagens, peludo como um urso, a cortar as unhas com os dentes e a cuspi-las para o chão. Uma mãe obesa com uma enxaqueca insuportável concentrada a jogar no telemóvel. Ao lado, a filha gordinha brinca com um portátil infantil estridente. Depois de emborcar uma coca-cola, um saco de gomas e um pacote de batatas-fritas, choraminga: “Mãe, tenho fome!”. O homem-urso tenta fuzilá-la com o olhar, mas não funciona.

Um senhor todo aprumado, pólo Lacoste impecável, bermudas de linho e mocassins. A mãe velhota dormita numa cadeira de rodas. De repente, ouve-se uma música do Bob Marley. A velhota moribunda ressuscita. “Gosto muito do teu novo toque do teu telemóvel!”, diz-lhe a rir.

Uma família numerosa espera pela ordem de internamento de um tio. A mala já está à porta. Grande como se o doente fosse lá passar as férias de Verão. Trazem o farnel e fazem a festa. Contam histórias de família antigas. Riem muito. O benjamim da família, querubim de caracóis loiros, faz gracinhas que arrancam gargalhadas. Dá um empurrão na cadeira de rodas da velhota e bate à porta das urgências. Pregam-lhe um estalo.

Um casal discreto fala para passar o tempo. De vez em quando, ela pede-lhe desculpa por não ter conseguido ajudá-lo. Vê-se que está envergonhada por ter vomitado. Mas aliviada por ter aguentado a cena sem desmaiar. Parece que esteve quase-quase. Ele diz que não faz mal. Que ela tinha razão. Invadir o consultório do pai para tentar coser o próprio pulso aberto não tinha sido uma boa ideia. Que devia ter ido logo às urgências. Ela olha para o relógio e para a ligadura dele empapada de sangue. “Já passaram três horas! Parece que estamos em Portugal!”, comenta exasperada. “Schiuuu, não é grave…”, murmura ele fazendo-lhe festinhas.

Duas antigas colegas reencontram-se. Põem as novidades em dia. A mais nova conta que não dormiu nada. Esteve a noite toda na internet à procura de casa. Está aflita. E cheia de sono, mas primeiro está a filha, que mal consegue abrir um olho. “Fizeste bem em vir, amiga. Os filhos só podem contar connosco. Os homens nunca estão lá quando são precisos.”, diz a mais velha. A mais nova acena que sim e continua a narrar as suas desventuras. No final do mês, vai ser despejada. Um acidente impediu-a de trabalhar durante três meses e as contas acumularam-se. Não, já não está a fazer limpezas. Agora, trabalha num restaurante. Ganha-se mais. Está sozinha com os filhos. O ex-marido não paga a pensão. Não ajuda em nada. Está sempre a dizer mal dela e da vida miserável que oferece aos filhos. Mas comprou um carro ao filho, para irem restaurando aos poucos. O miúdo tem 14 anos. “Comprou o carro com o dinheiro que não me paga! Conseguiu seduzi-lo. Comprou-o. Agora já quer viver com o pai…”, diz entristecida. “Os homens são todos iguais! Canalhas de merda!”, atira a mais velha.

O homem-urso encolhe-se. O casal discreto troca um olhar e sorri. “Parece que estou a ouvir a tua história.”, diz ele baixinho. Ela concorda. A velhota moribunda também.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

A madrasta

(porque há pessoas que não partilham os nossos genes,

apenas o coração)


A história da minha família é daquelas que dava um livro. Tipo saga familiar imbricada no contexto histórico e político cambiante do país. Quando os meus pais se conheceram, cada um deles tinha uma filha pequena de um primeiro casamento. Os meus pais partiram para Angola, os pais das minhas irmãs juntaram-se. As minhas irmãs – que não são irmãs – são mais irmãs uma da outra do que minhas. Os meus pais separaram-se, mas ficaram a viver na mesma rua. Eu saltitava de casa em casa. O meu pai teve mais um filho com outra mulher, com quem vivi desde que me lembro de ser gente até à adolescência. Entretanto – e porque há gajos que demoram imenso tempo a achar a pessoa certa, mas nunca desistem – o meu pai voltou a separar-se. Não teve mais filhos. Vive há mais de 20 anos com a mesma mulher.

Em nossa casa, não havia madrastas, nem padrastos. Excepto nos contos de fadas. Cada um tinha o seu lugar e nunca houve atropelos. Um dia, a Lena chegou a casa a rir. Uma colega minha da Primária encontrou-a no café e perguntou-lhe descarada: “Você é que é a madrasta da Rita, não é?”. Na altura, ainda não havia muitos divórcios em Portugal e eu era um bicho raro. O termo ficou, por brincadeira. A Lena passou a ser a minha “madrasta” e assim se manteve mesmo depois de se ter separado do meu pai. Aliás, chamo-lhe muitas vezes “Bruxa”. Ao que ela responde “Parva”. Entre nós é só amor, como se pode ver.

A minha madrasta não é minha madrasta, mas eu não me importo. É a pessoa mais bruta que conheço. Mas é também a mais sensata. Diz as verdades todas na cara e às vezes dói. Magoa. Não chora, nem é pessoa de grandes mimos. Passou anos a dizer que me estava a meter num buraco sem saída, apesar de eu não a compreender. Não aprovou a pessoa que escolhi e deixou-o sempre bem claro. Recebeu com desagrado cada uma das minhas gravidezes. Olhou com desprezo para a vida que fui construindo e que ela via que não me deixava feliz. Que era uma armadilha. Mas esteve sempre presente. Do primeiro ao último momento. Quando tudo se desmoronou, foi em casa dela que me refugiei. Disse-me “eu bem te avisei” muitas vezes. Demasiadas vezes. Mas, depois, também me disse que estava na altura de andar para a frente, de fazer alguma coisa da minha vida. Tenho a certeza que ficou de coração partido quando vim para a Bélgica com os miúdos, ela que já tinha visto o filho emigrar para a Holanda. A ambos nos disse que era a melhor solução possível.

A avó preferida dos meus filhos não é avó deles, mas eles não se importam. Foi a primeira pessoa a quem chamaram “avó”, ainda antes de completarem um ano. Dá-lhes os mimos todos que nunca a vi dar a ninguém. Em casa dela podem fazer tudo o que estão proibidos de fazer nos outros sítios. Dá-lhes prendas e pizzas e gelados. E cinema. Deixa-os alugar os filmes mais idiotas e enrosca-se com eles a vê-los no sofá. Faz os programas mais absurdos. Deixa-os deitarem-se às tantas. Foi a pessoa que mais vezes nos veio visitar. Com a mala sempre cheia de guloseimas e papa Cerelac. Conheceu a casinha de Malempré quase vazia e, agora, o novo palácio onde já pode fumar no quintal. O sorriso foi sempre o mesmo.

A minha madrasta é a prova viva de que as madrastas são más e rabugentas. Que estão sempre a lançar-nos à cara todos os nossos defeitos. Os disparates da infância e as histórias escabrosas da adolescência. Que dizem que somos más mães e que só fazemos disparates. Que nunca aprovam o que fazemos. Mas que têm uma confiança cega de que os nossos filhos estão melhor connosco do que com qualquer outra pessoa. E de que havemos de nos safar, de uma forma ou de outra. Que o caminho se faz andando, sempre para a frente, sem olhar para trás. Que as saudades não matam ninguém.

A minha madrasta nunca se fez de boazinha para ser amada, bem pelo contrário. E também nunca disse mal da minha mãe. São amores complementares, feitos de anos de convivência, de memórias e histórias passadas. É ser família sem dizer que somos, sem impor. É partilhar o nosso coração, mas não os genes. É estar presente, sempre, mesmo que ao longe.


(os três da vida airada, há uma eternidade atrás)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Pedir desejos

(à falta de estrelas cadentes…)


 
No dia 21 de Julho de 2013, estava com a minha madrasta e os meus filhos a assistir ao fogo-de-artifício mais bonito que alguma vez vi na vida, em La Roche-en-Ardenne. Era o dia da festa nacional belga. Forçava sorrisos e boa disposição, apesar do buraco no coração. O meu amor tinha acabado de partir para Itália, sem data de regresso. Nessa noite, quando o céu começou a encher-se de luzes e no relvado à nossa volta só se ouviam interjeições de espanto, fechei os olhos e pedi um desejo. Que no ano seguinte pudesse estar nos braços do meu amor a assistir aos fogos-de-artifício. Com a minha madrasta e os meus filhos.

No dia 21 de Julho de 2014, além da festa nacional, em Vielsalm celebrou-se a o “Sabat des Macralles” e a Festa dos Mirtilos. Foram dois dias de festa, com concertos, desfiles de carros alegóricos, barraquinhas de feira, carrosséis e muitos doces. Algodão doce de violeta, uma delícia. Bruxas a passearem pelas ruas a assustar quem passava. E vendedores de tartes de mirtilos por toda a parte, claro. À noite houve fogo-de-artifício. Os meus filhos a rir. E os braços do meu amor.

Agora, vou sair para ir buscar a minha madrasta. O meu sonho está completo. À falta de estrelas cadentes, o fogo-de-artifício funciona na perfeição.
 


 

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Um beijinho, Dr. Sauvage!

(onde se vê que o esforço – para não dizer sofrimento – compensa!!!)


O meu amor, o meu filho grande e eu a cavalo. Finalmente. O regresso a Malempré, num dia quente de Verão. Um longo passeio pelos bosques. Um galope a três.










 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Das coisas que vou percebendo

(o meu work in progress)


 
Vou sentir sempre falta da luz de Lisboa, das ondas do mar azul, do calor morno das noites de Verão. Vivo com a saudade colada ao corpo.
 
Gosto mais de percorrer os corredores do Brico Marché do que os da Zara. E sou infinitamente mais feliz quando compro uma ferramenta nova do que uma peça de roupa.
 
Se fechar os olhos quando falo com os meus amigos de sempre, consigo recuar no tempo. E, por breves momentos, sou outra vez aquela Rita que vivia de tostas de queijo e tinha mau perder quando jogava à sueca na faculdade.
 
Intimidade não é ir à casa de banho de porta aberta, é guardarem o caroço do pêssego porque sabem que adoramos ficar horas a roê-lo.
 
Há pessoas que me odeiam profundamente, mas isso não é um problema meu.
 
Os anos passam, mas continuo a ter uma ligação especial com o meu filho Diogo. O meu primeiro filho. O meu primeiro amor. Assistir ao seu crescimento é um privilégio. Ver para além do adolescente desengonçado e respondão é exactamente a mesma coisa que saber que as cólicas dos recém-nascidos acabam por desaparecer milagrosamente um belo dia.
 
Gosto muito de voltar atrás no passado e, juntamente com o meu amor, recordarmos infâncias e adolescências. E perceber que fomos tão felizes. E estúpidos, às vezes. Mas aprendi a perdoar o que de errado fiz. E a agradecer a educação que recebi, que me permite ser hoje quem sou, sem vacilar.
 
Continuo a adorar animais, como quando era criança. O meu sonho de ter um cavalo está cada dia mais perto. Finalmente, tenho um quintal e posso viver rodeada de bichos. Só assim sou feliz, pé descalço na terra.
 
Há memórias de família que gostaria de ter deixado aos meus filhos, mas foram vendidas sem que eu soubesse. Embora saiba que nunca mais recuperarei esses objectos, posso construir novas heranças.
 
As saudades que sinto dos meus avós nunca se atenuarão.
 
Os amigos que se fazem na idade adulta não são iguais aos amigos que fizemos noutros tempos.
 
Não vale a pena tentar ser quem não sou. Gosto de ter apenas uns ténis que deito fora quando estão velhos e compro uns novos. Saltos altos e outros artifícios não são para mim.
 
Custa-me horrores dizer “os nossos filhos”, mas sinto um prazer inesperado quando digo “les garçons”.
 
A vida em Portugal continua sem mim, a minha família e amigos já se habituaram à minha ausência. Sei que sou uma lembrança longínqua e que já não faço parte das suas vidas quotidianas.
 
Custa-me saber que a minha mãe está a envelhecer longe de mim, agora que sinto tanto a falta dela.

Tenho de aprender a ser amada. A deixar que cuidem de mim, sem sentir que estou a dar parte fraca. 


Aceitar que quem me faz muito mal, também está a fazer-me bem por portas travessas. Está a ajudar a talhar a pessoa que sou.
 
Se daqui por umas semanas descobrir que tenho de ser operada e que nunca mais poderei ter filhos, não faz mal. Estou preparada para isso. É uma nova etapa da vida que começa.
 
Sinto que mudei muito nos últimos dois anos e que as pessoas que sempre me conheceram não fazem ideia. É assim uma espécie de actualização do software interno que mais ninguém fez a não ser eu.
 
A minha paixão pelos cavalos nunca desaparecerá, por mais que me doam os ombros. Faz parte daquilo que sou.
 
Adoro meter-me no carro a caminho de casa, no final do dia, e saber que tenho os meus três homens (mais um cão) à minha espera.
 
Nunca ninguém me dará melhores boas-vindas do que o D. Fuas. É possível amar um animal de que não se gosta.
 
Sou feliz com o que tenho, não preciso de mais. Gosto de comprar coisas em segunda mão. De recuperar objectos velhos. De aproveitar promoções. Odeio desperdiçar.
 
Já não entro em pânico quando vejo a conta bancária a diminuir assustadoramente a meio do mês. Agora sei que sou capaz de sustentar sozinha os meus filhos e dar-lhes tudo o que precisam. Escola, música, desporto, lazer, viagens, cultura, médicos. De uma maneira ou de outra, as coisas vão-se fazendo.
 
Adoro madeira. O cheiro, a textura, as formas. Redescobrir o prazer simples que sinto a trabalhar a madeira foi das melhores coisas que esta nova vida me trouxe.
 
Aprendi a rir à gargalhada. Nunca me lembro de me rir como me rio agora, até me doer a barriga. O meu amor faz-me rir todos os dias.
 
Já não tenho medo da mudança. Sei que posso estar no olho do furação e sobreviver. Agora sou forte e quero experimentar coisas novas. Esta minha nova vida não é o fim, é apenas mais uma passagem para outra coisa qualquer que ainda não sei bem o que será. E ainda bem que assim é.
 
Tenho pouco mais de metro e meio e sempre fui gordinha. Excepto quando andava na faculdade e vivia de tostas de queijo. Mas gosto de mim tal como sou, não mudava nada. Gosto das marcas que o tempo deixou no meu corpo.
 
Adoro o meu filho Vasco de uma paixão que se renova todos os dias. Acho-o lindo e inteligente. Para lá de saudável. Imensamente feliz. Mas, principalmente, acho-o especial. O Vasco tem um brilho mágico que faz borboletas na barriga.
 
Estou profundamente grata por ter encontrado uma pessoa que vê o Vasco exactamente com os mesmo olhos que eu. E que cultiva essa estranheza, em vez de tentar normalizá-lo, como todos os outros. Nada me enche mais o coração do que vê-los enrolados em bola, num mundo só deles. Feito de mitologia, construção de sites na internet, filmes, piadas privadas, canções pirosas, adivinhas, ciências e bicharada.
 
Gosto da pessoa em que me tornei. Vejo os quarenta anos a aproximarem-se com uma tranquilidade que nunca senti antes na vida. Uma paz. Uma sabedoria. 
 
Não sou cristã, nunca fui. Mas se fosse não pedia, agradecia sempre. É a primeira coisa que faço de manhã, quando acordo com a luz do sol. Olho para o meu amor e sorrio. Sinto-me imensamente grata por tudo o que vivi, o que conquistei, o que ainda almejo. Ter sonhos. Sinto-me grata por, apesar de tudo, ainda ter sonhos. Como quando era menina.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Vida de cão

(porque afinal os patos voam, o melhor é caçar ovelhas)


Há cães que nasceram para sofrer. Cães que sofrem os horrores da tentação da carne. Literalmente da carne. Cães que vivem em desassossego por causa dos gatos que ousam passear dengosos pelos seus novos domínios. Cães que sabem que atrás da porta da casinha no quintal se escondem impunemente o coelho, o porquinho-da-índia e o hamster. Cães que têm de se deparar com patos a nadar tranquilamente no lago quando passeiam. Cães que, dia após dia, convivem o melhor que podem com a tentação ambulante. Tentação com patas. Tentação com penas, pêlo… e lã. Como se esta provação não fosse suficiente, há cães que assistem impotentes ao desembarcar de um rebanho de ovelhas mesmo à frente do seu território. E que as ouvem balir todo o santo dia. A gozar com ele. A provocá-lo. A atiçá-lo.

Ninguém compreende estes cães. A única solução é serem pacientes. Têm de esperar por um momento de distracção humana para poderem fugir por um buraco discreto. Cães que mal acreditam nos seus olhos, quando avistam o rebanho protegido por uma simples cerca. Cães que percebem tarde demais que a dita cerca está electrificada. Com uma voltagem ajustada para animais com mais 150 quilos do que eles. Cães destemidos que, após um choque fortíssimo, insistem corajosamente em correr atrás do rebanho. A ganir, com a língua de fora e a perna maluca aos saltos. Cães que finalmente conseguem isolar e arrebanhar um bicho oito vezes o seu tamanho. Que fazem o seu trabalho. E que – cúmulo dos cúmulos – sabe-se lá porquê, ainda têm de suportar os gritos histéricos dos donos e os insultos. Cães fortes, que não se deixam intimidar nem influenciar por nada, nem por ninguém. Cães com personalidade. Carisma. Que preferem ser arrastados novamente até à cerca maldita a largar a presa que tanto trabalho deu a apanhar. Há cães que ficam colados à cerca a tremer com espasmos até um ser humano furioso, mas apiedado, lhes deitar a mão. Há cães que depois de um esforço inimaginável são forçados a largar a presa e a serem trazidos ao colo para casa. A humilhação suprema.

Há cães que nasceram para sofrer, condenados a passar ao lado de uma grande carreira de caçadores. Cães incompreendidos. Cães infelizes.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Férias de Verão sem mar

(mas onde se apanham conchas)


Recomecei hoje a trabalhar. Felizmente está um dia frio, cinzento e chuvoso. Como os quinze dias anteriores, diga-se em abono da verdade. Não se pode dizer que tenham sido umas férias de sonho, mas fartei-me de fazer coisas que se andavam a amontoar desde a mudança de casa. Coisas úteis, entenda-se. Coisas que, não sendo “tipicamente de férias”, me deixam uma sensação de dever cumprido. Tipo fazer a declaração de impostos. Quatro dias antes do prazo limite, antecipação nunca antes vista por estas bandas. Fazer cortinas para os nossos quartos. Percorrer lojas de velharias e feiras da ladra para desencantar verdadeiros achados. Passar dias inteiros a recuperar móveis, no meio do cheiro das tintas que eu adoro.

Estas férias foram marcadas pela clivagem crescente entre os meus filhos. O pequeno a brincar feliz no quintal com um sabre de luz, a fazer amigos, a aprender a jogar xadrez, a passar horas no quarto a brincar com os Legos, a dar passeios de mão dada connosco, a ver os animais. O grande trancado no quarto a ouvir música… hum… ruidosa. A devorar livros e séries. E quilos impressionantes de comida. A fugir de passeios familiares. A fazer programas com os amigos no Facebook. A ir pela primeira vez de férias sozinho para o estrangeiro. Foi estranho passar estes dias de férias em casa a vê-lo crescer mais um bocadinho diariamente, a tornar-se borbulhoso e resmungão. Respondão. Mas quando me faz um sorriso ternurento e me pede num tom melado: “Mãe, beijinho…”, percebo que o amor que nos une serve de alicerce sólido para este tumulto juvenil. E quando o apanho deitado na cama do Vasco a atazanar-lhe o juízo, compreendo aliviada que, por mais que cresçam, não conseguem viver um sem o outro. Os irmãos.

E, no meio de tudo isto, o tempo a dois. Roubado discretamente ao tempo passado a quatro. Um tempo de ternura e cumplicidade. De acordar com calma e muitos beijos. De conversas intermináveis noite dentro. Passeios de mão dada. Um tempo de gratidão por esta presença sólida e constante nas nossas vidas, que me impede de vacilar. Que me faz rir à gargalhada. E me ensina todos os dias mais alguma coisa. Que me diz tantas palavras bonitas. “Sou a tua concha”, sussurrou-me o meu amor uma manhã. “A concha que sofre o primeiro embate e o ampara para te proteger.” Sim, estas férias apanhei uma concha sem sequer ter visto o mar.

sábado, 12 de julho de 2014

Um jantar em três tempos

(e um post scriptum)


 
Introdução:
Um jantar com a nossa “família belga” para inaugurar oficialmente a nova casa. E, de permeio, festejar com atraso os anos do Diogo e os do meu “pai”.

Desenvolvimento:
Dividimos as tropas, de modo a aproveitar o melhor de cada um de nós. O Diogo aspira; o Vasco limpa o pó da sala; eu faço o prato para os vegetarianos e uma sobremesa; o meu amor faz o prato principal e uma entrada.

Conclusão:
O Diogo não aspira metade da casa que está, na sua opinião avisada, impecável. O Vasco limpa o pó da televisão e das roseiras, os seus únicos centros de interesse na sala. Eu faço alho francês à Braz em 10 minutos e um pudim de laranja de pacote. O meu amor faz uma entrada de pera abacate com salada de camarões e, para os vegetarianos, espargos salteados com cogumelos. Em seguida, serve dois frangos estufados com recheio de castanhas, acompanhados de batatas duchesse e pêssegos em calda com arandos vermelhos. Para finalizar a repasto, apresenta um sortido de pastelarias várias.

Post scriptum:
Eu sou altamente elogiada pelo banquete, porque não passa pela cabeça de ninguém que o oficial da marinha de serviço tenha tais dotes culinários. Viver numa sociedade machista afinal tem os seus aspectos positivos…

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O menino e os bichos


(das coisas que me emocionam)


 
Nunca fui muito de procurar parecenças entre mim e os meus filhos. Nunca me agradou a ideia de andar a criar “mini-eus”. Faz-me uma certa confusão, admito. Cultivo a singularidade de cada um deles. Aquilo que os torna únicos. As pequenas idiossincrasias. Mas, por vezes, olho para o Vasco e não consigo deixar de recuar no tempo. De me lembrar de mim, quando era criança. Somos bastante parecidos, ao ponto de o Vasco já nos ter confundido em várias fotografias. E sem dúvida que também temos personalidades semelhantes. Por isso, sorrio quando o vejo rodeado de bicharada. Eu que sempre adorei animais e que nunca pude dar azo a este amor, porque vivia no centro de Lisboa. O Vasco tem um jeito especial para os animais. Sempre teve. Não tem medo nenhum, por maior ou mais selvagem que seja o bicho. Faz as coisas mais improváveis e escapa sempre ileso. Passa por baixo dos cavalos. Pega em minhocas peludas. Faz festas ao cisne do lago. Deixa uma família de caracoletas subirem por ele acima. Dá beijinhos a tudo quanto mexe. E emociona-se.














[ Sim, sim… estão a ver bem! Aquela coisa preta enormeeee ao colo do Vasco é mesmo o nosso porquinho-da-índia, o Dó Ré Mi. Continua feioso e mariquinhas, mas cresceu desmesuradamente. Ah... e dizer que o Peanuts é um coelho-anão também é um eufemismo. ]

segunda-feira, 7 de julho de 2014

A geringonça

(história de um esquecimento que deu asas

para o meu adolescente voar)


Amigo maior veio passar uns dias cá a casa para mimar os sobrinhos e, como é distraído, esqueceu-se da geringonça para a apneia que tem de pôr na cara para deixar os outros dormir.
Amigo maior decretou que não podia tirar mais férias para vir buscar o capacete de oxigénio absolutamente indispensável.
Amigo maior lembrou-se de comprar passagens de comboio para o adolescente ir visitá-lo a Frankfurt e, de permeio, levar a malinha de executivo que contém o material explosivo.
Amigo maior achou que o adolescente, que heroicamente tinha feito a sua primeira viagem ao estrangeiro sozinho com o engenho salvador, merecia uma recompensa.
Amigo maior, afinal, decidiu tirar uns dias de férias para mimar o adolescente corajoso.
Amigo maior achou por bem compensar também a nervosa mãe do adolescente, enviando-lhe bens alimentares portugueses de primeira necessidade.
Amigo maior acaba de mandar um sms a dizer que meteu o adolescente no comboio de regresso e admite que está completamente exausto, que isto de tomar conta de adolescentes é tarefa para deitar qualquer um abaixo.
Amigo maior aguarda ansiosamente telefonema da mãe nervosa a dizer que recuperou o seu adolescente para meter mais uns dias de férias para um merecido descanso.

 
 

quinta-feira, 3 de julho de 2014

"Deux jours, une nuit"

(onde se fica a conhecer a comissão de protecção dos filmes intimistas)


Sexta-feira, no final do dia, uma colega telefona à Sandra para lhe dizer que tem de ir imediatamente ter com ela à fábrica para falarem com o patrão. De baixa por depressão há meses, a operária preparava-se para voltar ao trabalho, quando é confrontada com a decisão do patrão de que a crise o obriga a optar entre o posto de trabalho dela e o prémio anual dos 17 colegas. É impossível pagar ambos e o pessoal foi chamado a votar: optaram pelo despedimento da Sandra. Dado que o contramestre da fábrica tinha andado a manipular o pessoal, o patrão aceita que a decisão vá novamente a voto na segunda-feira seguinte. 

Sandra tem, então, dois dias e uma noite para falar pessoalmente com todos os colegas e tentar convencê-los a desistir do prémio de mil euros para poder manter o seu posto de trabalho. A quantia parece irrisória, mas ganha outra dimensão aos olhos de pessoas confrontadas com filhos a estudar na faculdade, o desemprego do outro membro do casal, uma doença, um novo bebé, obras em casa… 

Marion Cotillard desempenha um papel fantástico neste filme dos irmãos Dardenne. Um filme belga, inteiramente filmado em Seraing, nos arredores de Liège. Gostámos, muito, muito… 

 

[ Apesar de o senhor que estava no bar (e na bilheteira e no vestiário e à entrada das salas) se ter recusado a vender-me pipocas, porque se tratava de um “filme intimista” e que as pessoas não gostavam de ser incomodadas com o barulho neste tipo de filmes. Mas podia vender-me um saquinho de amendoins ou um gelado. Pipocas é que não. Também podia escolher outro filme, obviamente “não intimista”, onde podia comer pipocas à vontade. Ficámos a pensar se um filme pornográfico seria considerado “intimista” e se o barulho das pipocas perturbaria o bom desenrolar do mesmo… ]
 
 

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Vasco, a espalhar alegria desde 2006

(onde um momento comezinho do quotidiano me enche o coração)


Ontem à noite, entro na casa de banho e dou com o Vasco sentado no banquinho, muito concentrado. Acabado de sair do banho. Secador numa mão, cotonete na outra. À minha pergunta muda, responde:

“Estou a limpar a porcaria que tenho no meio dos dedos dos pés. E a secar o cabelo. Não se vê? Uma pessoa tem de cuidar do seu corpo. E eu já tenho idade para tomar conta de mim.”

E é só isto, que foi tanto. Porque pode o mundo desabar à sua volta, o meu filho Vasco continua a espalhar alegria. A fazer magia. É daquelas raras pessoas especiais que têm a capacidade de nos encantar. De nos arrancar uma gargalhada nos momentos mais inesperados. De nos espantar. Desde que nasceu, não há dia que não me sinta absolutamente apaixonada por este meu filho. Palhaço do circo. Músico. Poeta. Criatura de outro mundo que por sorte aterrou no meu e o mudou para todo o sempre
 


 [ Pai, se calhar foi aqui que tudo começou, com o teu nariz de palhaço...]

terça-feira, 1 de julho de 2014

D. Fuas Roupinho, o caçador de patos

(onde se narra a história dessa estranha personagem indómita)


Acho que nunca aqui contei a história de D. Fuas Roupinho. Dois anos depois da morte do nosso primeiro cão, um dálmata doido chamado Miró, dei o luto por terminado. Mas os tempos tinham mudado, já havia facebook com fotografias de cães abandonados nos canis por esse país afora. Ir buscar um cachorro a um criador, parecia-me absurdo. Andava a matutar nisto, quando vi um anúncio de um caçador reformado a dar os seus cães. Escolhemos um teckel de pêlo duro com 3 anos. 

Quando lá chegámos, o cão recusou-se a sair do canil. Mas o filho de 9 meses veio a correr direito a mim todo contente. Andámos a ver os outros cães, a passear por ali… e o cão obedientemente colado aos meus calcanhares. Aquele súbito amor comoveu-me e decidi que ficava com ele, não com o outro bicho mortiço. O caçador não ficou lá muito satisfeito. Aquele cão era promissor, já caçava bastante bem. Aquele tinha valor, custava dinheiro. Mas eu queria lá saber, estava apaixonada. E o homem era uma besta. Como não sabia que cão eu ia levar, não tinha dado de comer durante o dia a nenhum dos seus 17 animais. Uma besta. Pagámos e lá veio o D. Fuas a tremer de medo, dentro de um caixote, ao meu colo. Quando chegou a casa, andava por cima das mesas e do fogão. Não sabia brincar com uma bola. Não obedecia ao antigo nome. Recusava-se a ir à rua. Era um pobre desgraçado. 

Infelizmente a desgraça passou-lhe depressa. Revelou-se um cão fujão, nada leal a quem o tinha resgatado de uma vida de misérias. Nunca aprendeu a andar à trela, mas domina na perfeição a arte de aproveitar todas as brechas para fugir rapidamente. E, uma vez em fuga, é imune à nossa voz… sedutora, suplicante, zangada, ameaçadora. Um castigo ou uma recompensa, quando finalmente o conseguimos apanhar, têm o mesmo efeito. Ou uma palmada. Mas se faz asneira em casa e o meu amor lhe grita, faz chichi no chão com o susto. Morre de medo de homens cinquentões com colete, perante outros animais é intrépido como só ele. Para nossa desgraça, nunca perdeu o instinto de caça. Os gatos transformaram-se rapidamente em substitutos citadinos dos coelhos. Quando chegou a Malempré, descobriu novas presas… burros, cavalos, vacas, cabras, ovelhas, galinhas. Cortadores automáticos de relva, o cúmulo da provocação dentro de todo o reino animal. 

Em casa, continua colado aos meus calcanhares. Segue-me para todo o lado com um ar de adoração. Sempre que páro um bocadinho, sinto uma cabeça pousar de mansinho em cima dos meus pés. Quando traduzo, quando leio, quando lavo a loiça. Morde os tornozelos dos miúdos quando ralho e ladra sempre que o meu amor me beija. Aqui há uns tempos, fiquei completamente knockout com um novo medicamento. O meu amor entrou um bocado em pânico, o D. Fuas não arredou pata enquanto não voltei a mim. O focinho dele sempre colado à minha mão inerte. Por isso, quando levanto os olhos e dou com ele a dormir… patas no ar, cabeça tombada, língua de fora. Feio como tudo. Fujão. Mijão. Caçador de tudo quanto mexa. Por isso – dizia – quando levanto os olhos e dou com ele a dormir, sinto uma ternura imensa. Que já foi posta à prova...

Pouco depois de chegar à Bélgica, o D. Fuas foi atacado por um american staff que apareceu no meio da neve vindo do nada. Durante segundos que me pareceram eternos, foi sacudido no ar. Gania como nunca ouvi ganir. Quando tentei agarrar na fera, atirou-se a mim. Felizmente tinha botas e luvas de neve, que ficaram completamente destruídas. Às tantas, pensei que ficávamos lá os dois. Até que por fim apareceu um vizinho e, com dois pontapés bem assentes no lombo, conseguiu afugentar o outro. D. Fuas jazia no meio da neve, o sangue corria. As entranhas de fora. Tentei pegar-lhe e ele só rosnava, assustado, sem me reconhecer. O meu vizinho, com uma desenvoltura de agricultor, empurrou tudo lá para dentro, tripas e neve à mistura, atirou-lhe um casaco para cima e meteu-o no jipe, enquanto ligava à veterinária para abrir o consultório de madrugada. Quando viu a extensão da ferida, perguntou-me: “Ele deve perder o uso de uma pata… O que faço? Salvo-o?”. E eu, que tantas vezes maldisse o dia em que o trouxe para casa, disse que sim. Não me passava pela cabeça perder o D. Fuas, indómito companheiro de aventuras. “Se há raça que tem hipóteses de se safar, é esta. São cães indestrutíveis”, acrescentou. 

Seguiu-se um mês terrível. Vários internamentos e uma ferida que teimava em abrir. Agrafos, pontos, agrafos e pontos. Nada resultava. Na clínica, estavam a dar em doidos com as correrias do D. Fuas, de lampião à volta da cabeça, que não obedecia a uma palavra de francês. (É preciso que se diga que, mesmo em português, obedece a muito poucas.) Até que a professora de equitação dos miúdos me falou de uma pomada para cavalos. A infecção desapareceu, a cicatriz sarou. No final do dia 24 de Dezembro de 2013, a veterinária declarou que estava salvo. No meu primeiro Natal sem os meus filhos, vim para casa com ele ao colo e senti-me feliz. D. Fuas ficou para sempre com uma pata maluca, que às vezes ganha vida própria. Mas o medo é coisa que não lhe assiste. É indestrutível. Cheira-me que há-de infernizar-me a vida nos próximos 20 anos. 

Desde que mudámos para Vielsalm, já fugiu não sei quantas vezes. Pelo quintal e pela porta da frente, que dá para a estrada. Um movimento rápido e lá vai ele pela rua fora à velocidade da luz com as orelhas enormes a abanar e a pata maluca aos saltos. Nas primeiras vezes, a vizinhança ainda se ofereceu para ir à procura dele, agora já ninguém liga. Excepto nós, que o detestamos de um amor incompreensível. Ontem à tardinha voltou a fazer das suas e eu pensei que era desta que o perdíamos de vez. Já temos a nossa primeira rotina, nesta nova vida. Depois do jantar, vamos dar a volta completa ao lago. Cão a correr à frente, a puxar a trela como um doido. A tentar apanhar os patos. O cisne, os gansos ou os castores. A saltitar à borda da água. A meter as patas na água. A mandar um súbito puxão e a lançar-se à água, atrás dos patos... O meu amor perdeu o equilíbrio e largou a trela. Cinco metros de trela a desenrolarem-se. E nós a chamar por ele, em pânico. Mas descobrimos que o D. Fuas nada tão bem como corre. Nós com os pés dentro de água. Aos gritos. E um terço do lago já percorrido a nado. Até que os patos se fartaram da perseguição e levantaram voo. D. Fuas Roupinho, caçador indomável de patos, deu finalmente meia volta e pôs-se a caminho da margem com a trela atrás. Já o meu amor estava a tirar o casaco para se lançar à água. Desta vez, ninguém conseguiu ralhar-lhe. A este bicho inquebrável que transforma o mais calmo fim de tarde numa aventura para contar aos netos.