quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A maçã com bicho

(e o meu pomar)



Li no outro dia um comentário sobre as praxes, onde se defendia que só o espírito submisso dos portugueses poderia permitir esta alarvidade. Ora isto é não ter noção nenhuma do fenómeno geral das praxes. A praxe não é uma coisa moderna, nem é tipicamente portuguesa. A praxe não é uma coisa que meia dúzia de universitários cosmopolitas iluminados se lembraram de fazer a uns pobres caloiros acabados de chegar de Freixo de Espada à Cinta. A praxe é um fenómeno mundial que vai para lá das fronteiras da universidade.
 
A praxe é chegar ao picadeiro e, ao encontrar a box do nosso cavalo preferido vazia, ouvir dizer que é mesmo assim, que aquele bicho já não prestava, que não nos podemos afeiçoar aos animais, que bem nos avisaram. A praxe é passar meses enfiada nas catacumbas da Biblioteca Nacional a fazer pesquisa para um professor caquético e ouvir dizer que é mesmo assim, que fazer parte de um trabalho que não assinamos é uma honra, que ninguém faz uma tese de mestrado sem passar por essa experiência altamente enriquecedora. A praxe é estar a chorar de dores durante o trabalho de parto e a enfermeira dizer-nos que é mesmo assim, que não é só fazê-los, que é preciso sofrer, que aquilo é só o início de todas as dores que nos esperam. A praxe é começar a trabalhar na secção da livraria de uma grande superfície e dizerem-nos que é mesmo assim, que é normal trabalhar 14 horas de seguida, que os filhos também se criam se não estivermos presentes, que vender livros não é a mesma coisa que lê-los e que agora é que vamos ver o que é a vida.

Entrar num universo novo e iniciar um processo de pertença implica sempre uma espécie de rito iniciático. Para fazer parte do grupo é preciso sofrer. Nem que seja só um bocadinho, nem que não seja por mal, nem que seja para nosso bem, nem que seja para finalmente conseguirmos perceber o que nos andavam a dizer há tanto tempo e nós, burros, inocentes, imaturos, ainda não tínhamos compreendido.

As chamadas praxes académicas são apenas o início de todas as outras provas de endurance que nos esperam. São o expoente máximo da estupidez humana com a qual teremos de nos confrontar pela vida fora. São a prova de que uma série de ilegalidades feita em conjunto se tornam não só legais, como factor de crescimento e de integração na nossa sociedade.

Felizmente, nunca fui praxada, nem nunca praxei. Embora as praxes da Faculdade de Letras da Clássica fossem uma brincadeira de criança, quando comparadas com outras. O  ar de miúda no alto do meu metro e meio, o rabo-de-cavalo a baloiçar, a mochila pesada às costas e os All Star coloridos, permitiram-me escapar ilesa. A única vez que fui interpelada, disse que não era caloira, que vinha da escola ter com a minha mãe que trabalhava na Faculdade, mas que estava mortinha por passar por isso. “Ainda vais ter de esperar uns anos, miúda!”, foi a resposta. Confesso que durante uns segundos até fiquei ofendida.

Já o meu amor não teve a mesma sorte. A milhares de quilómetros de Portugal, mais ou menos na mesma época, as praxes do curso de Medicina Veterinária na Universidade de Liège eram uma condição sine qua non para se poder prosseguir os estudos. Ele recusou-se a entrar no jogo e declarou-se anti-praxe. E lá foi fazendo o curso, completamente ostracizado, com sebentas desviadas, salas de exames alteradas, informações boicotadas e todo o tipo de mesquinhez que lhe pudesse complicar a vida. Até que chegou ao último ano e precisou mesmo de passar pela Associação de Estudantes que atribuía as horas de consultas práticas. E não lhe foram facultadas. Era impossível tirar a licenciatura sem as práticas. A solução foi mudar de curso, mudar de universidade, mudar de cidade. E começar tudo de novo. Mantendo a dignidade.

Duas décadas depois, as coisas não mudaram. Houve um escândalo este ano na Universidade de Liège, durante o período de praxes de Medicina Veterinária em Setembro. E, tal como em Portugal, não foi durante as praxes propriamente ditas que o incidente aconteceu. Foi durante um fim-de-semana nas Ardenas, organizado pelos padrinhos/madrinhas para darem a conhecer a região aos caloiros.

Uma miúda francesa recusou-se a beber álcool e foi obrigada a ingerir litros de água em pouquíssimo tempo. Quase vinte litros. Quando disse que se sentia mal e que queria parar, foi-lhe explicado que poderia fazê-lo se renunciasse à praxe. Ou seja, se renunciasse ao curso para o qual tinha acabado de entrar. A miúda decidiu continuar. E entrou em coma com um edema cerebral. Afinal, o líquido elementar também pode ser mortal. Esta história teve um final feliz, porque a miúda acabou por acordar uns dias depois. Mas ficaram sequelas. Físicas e psicológicas. Para sempre.

Como diria o Sérgio Godinho, “Maçã com bicho, acho eu da praxe”.

Não se vai conseguir proibir as praxes em todos os cursos, em todas as universidades, em todo o mundo. Aliás, a proibição nunca é solução para nada. Nem se vai conseguir acabar com as praxes que, em maior ou menor grau, vamos sofrendo pela vida fora para nos conseguirmos encaixar na sociedade em que vivemos. A meu ver, a solução para este problema é a mesma de sempre. Se a praxe é a “maçã com bicho” que vai contaminar a fruta toda, a única coisa a fazer é cada um cuidar do seu pomar. Tento educar os meus rapazes para serem pessoas dignas, seguras de si. Para recusarem ser maltratados por quem está acima deles e recusarem humilhar quem está abaixo deles. Porque a praxe é tortura e submissão. E este é um dos ingredientes base para os regimes autoritários emergentes. É a “maçã com bicho”...


quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Porque nada nos une, escolhemos estar juntos

(…)


Porque nada nos une, escolhemos estar juntos. Assim, simplesmente. Por opção. Por amor.

Não estamos amarrados a nenhuma convenção social. Não são os filhos que nos unem. Não estamos presos a nenhum empréstimo bancário. Nem estamos juntos porque dá jeito. Ou por hábito. As nossas famílias não se juntam no almoço de Domingo. Aliás, vimos de universos completamente diferentes. Não partilhamos o local e os colegas de trabalho. Nem frequentamos o mesmo grupo de amigos. As nossas referências não são as mesmas. Bem vistas as coisas, não temos a mesma nacionalidade, não falamos a mesma língua, não moramos no mesmo país. Há um mundo que nos separa, literalmente.

Mas tomámos uma decisão. Estarmos juntos, mesmo que tudo nos separe. Estarmos juntos, apesar de tudo. Sem laços, nem amarras impostas. Exactamente porque nada nos obriga. Excepto a nossa vontade. A nossa liberdade. O nosso amor.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Descubra as diferenças

(onde se mostra que uma mesma situação

pode suscitar reacções opostas)


Ontem foi dia de exame de solfejo. Fui buscar o Diogo à escola mais cedo. Que estava muito nervoso, maldisposto, com falta de ar, afónico. Apesar da overdose de pastilhas para a garganta. Fui o caminho todo a dizer-lhe que tinha de se acalmar, que ia correr tudo bem.

Depois, fomos buscar o Vasco. Vinha na boa. Aos saltinhos e a cantarolar, como sempre. A falar pelos cotovelos. Fui o caminho todo a dizer-lhe que tinha de se acalmar, senão as coisas podiam não correr bem.

Passámos por casa para lanchar rapidamente. O Diogo aproveitou para se agarrar ao piano e estudar mais um bocado. O Vasco enfiou-se na casa de banho com um “Tio Patinhas” debaixo do braço.

Durante o trajecto, o Diogo estudava as partituras. O Vasco lia o “Tio Patinhas”.

Chegámos. O Diogo continuava a estudar. O Vasco continuava a ler.

A coisa pequena foi a primeira a entrar. Anunciou logo em alto e bom som (tão alto que se ouviu cá fora…) que tinha decorado a partitura para impressionar o Director e que não precisava de a ler. A seguir, cantou afinadinho em alto e bom som (tão alto que se ouviu cá fora…). Quando acabou, continuou a falar. Que continuava a tocar violino, mas que também gostava muito do violoncelo. Que não sabia bem porquê só gostava de instrumentos de cordas. Que tinha entrado para o coro e que estava a adorar. Etc., etc., etc... Saiu de lá aos pulinhos juntamente com um colega, que arrastava os pés. Afinal, os exames eram feitos a dois. O outro nem o ouvi, coitado.

Depois, entrou o Diogo com uma colega. A suar em bica. Branco como a cal. Ele bem tinha esperança que fosse a desafinada da turma… calhou-lhe a bonitinha, afinada. Este exame era mais complexo, mais demorado, com uma leitura improvisada e outra preparada. O Diogo teve alguma dificuldade em colocar a sua nova voz de gente grande. Mas cantou afinadinho. Saiu de lá corado, aliviado, a rir.

E, pronto, por agora estamos despachados. O resultado logo se verá... De qualquer modo, as notas parecem-me bem menos importantes do que a reacção oposta dos meus rapazes a uma situação idêntica.



segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Porque hoje é dia de Educação Física

(onde se mostra o equipamento de Educação Física do Vasco

e se vê que fazer desporto em Malempré não é bem a mesma coisa)

 
Quando chegou, no ano passado, o Diogo vinha em excelente forma física graças aos três treinos semanais de hóquei em patins (mais os jogos aos fins-de-semana, os torneios, os estágios, o dar uma perninha na equipa a seguir só para desenrascar porque o outro guarda-redes estava doente…). Farto desta vida de desportista de competição para a qual não foi talhado, federado desde os 6 anos, o Diogo decidiu tirar uma licença sabática sem fim à vista. Até ter a primeira aula de Educação Física na escola primária de Malempré. E chegar a casa completamente derreado. Morto. É que a professora não brinca em serviço. As aulas são mesmo a doer.

A escola é pequenina e não tem ginásio. Mas isso só seria um problema se não houvesse quilómetros de bosques aqui à volta. O que não falta é espaço. Faça chuva, faça sol, as aulas de Educação Física são muito simples: a professora pega na rapaziada toda e põe-na a correr durante 1 hora. Sem parar. É assim uma espécie de trekking a toque de caixa. A subir, a descer, a saltar riachos e pedregulhos, a evitar buracos e troncos caídos. No Inverno, é muito mais divertido, porque a tudo isto junta-se… a neve! Substituem-se os fatos de treino e os ténis por fatos e botas de neve, gorros, cachecóis e luvas. Quentinhos e a correr é que eles estão bem. E cansados.

O Diogo esforçava-se imenso por dar o exemplo e manter o ritmo, concentrado em liderar o pelotão, já que era o mais crescido da escola. Acabava as aulas com o sentimento do dever cumprido, mas morto de cansaço. O Vasco nem sequer tentava acompanhar a trupe, que aquilo via-se logo que era demasiado esforço e pouco divertimento. Giro, giro, era aproveitar o passeio pelos bosques para apanhar paus e lutar com os ogres que saíam subitamente detrás de uma árvore. Por vezes, também conseguia afastar monstros com uma saraivada de calhaus. A professora começou por tentar incentivar o Vasco a seguir o ritmo da turma e correr. Depois, tentou que, pelo menos, desse uma corridinha de vez em quando para não ficar muito atrás. Às tantas, já só esperava por ele em pontos estratégicos para ter a certeza que não o perdia de vez. No final do ano, o Vasco tinha autorização para defender a retaguarda de todo o tipo de inimigos imaginários, enquanto o irmão conduzia a turma.

Hoje é dia de Educação Física. E o Vasco, apesar de já não ter o irmão a marcar o ritmo da corrida, continua calmamente a caminhar atrás do grupo. Fiel ao seu desígnio de guardião dos bosques de Malempré.
 

[ Este ano, a professora pediu-me encarecidamente que comprasse um fato de neve um bocadinho mais escuro para conseguir mantê-lo debaixo de olho… ]


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Um pedido de amizade no Facebook e um post antigo

(porque às vezes faz bem olhar para trás e ver o caminho percorrido)

 
Há uns dias atrás, aceitei um pedido de amizade no Facebook de uma velha amiga do meu pai, que mostra aquela doçura própria de quem me conheceu em criança e me vê, agora, já adulta e com filhos. Como é normal, percorreu o meu mural e deparou-se com um post escrito em 2011. Foi um texto que escrevi para o Diogo, na madrugada de 10 de Junho, por ocasião do seu décimo aniversário.

Não lia este texto há muito tempo e senti um choque quando o reli. A vida era outra, naquela altura. Estava prestes a celebrar 13 anos de casamento, com dois filhos maravilhosos. Estava em pleno processo de adopção de uma pré-adolescente por quem estávamos completamente enamorados. Trabalhava noite dentro a fazer tradução e legendagem, para poder dedicar o dia à família. Tínhamos uma vida simples, desafogada. Nada faria prever o desmoronamento que aí vinha. Mas, como canta o Sérgio Godinho, “Um dia – há sempre um dia – moeda ao ar, a cara e a coroa viram a sorte mudar”…

Passaram-se dois anos e meio. Tudo mudou. A nossa vida mudou. Eu mudei. Há apenas duas coisas que não mudaram. O Diogo continua o mesmo miúdo e eu continuo a mesma mãe. Mas mais felizes. Muito mais felizes e realizados. Ele porque encontrou finalmente um ambiente escolar que respeita e estimula a sua inteligência, com tantos amigos que já me perco nos nomes. Eu porque tirei a venda que tinha nos olhos e hoje encaro a vida de forma diferente. Porque cresci. Aqueles tempos foram felizes, sim, mas era uma “felicidadezinha”. Uma coisa poucochinha feita do ram-ram quotidiano e de ambições igualmente pequeninas. Eu tinha-me acomodado a uma “espécie de felicidade”. E era incapaz de ver que aquela não era a vida que eu queria de facto viver.

Reler este texto foi importante para mim por outro motivo. No momento em que a minha capacidade como mãe é posta em causa de maneira tão violenta, no momento em que o meu suposto desequilíbrio psicológico é usado como argumento para me ameaçar e amedrontar, eu leio um texto dessa época e continuo a rever-me nele. Tenho a certeza absoluta de que fui, sou e sempre serei a mesma mãe. O mais importante na minha vida são os meus filhos. Até que um dia tenham asas para voar e eu dê o meu trabalho por terminado. Tudo à minha volta pode mudar: o objectivo de vida, o país, o emprego, a estabilidade económica, o lazer, o coração… eu continuo a ser a mesma mãe. Não sou a melhor mãe do mundo. Não sou certamente a mãe que sonhava ser um dia. Sou a mãe que posso ser. Que sei ser. Mas mais feliz. Muito mais feliz e realizada.

 



 

 Eis o texto em causa:

O Diogo nasceu há 10 anos… há 10 anos?! Há 10 anos! Sinto que foi ontem. Nasceu quase sem batimentos cardíacos e não chorou. Quando o encostaram a mim, abriu muito aqueles olhos enormes e eu chorei. Senti que era Natal. Ainda hoje sinto quando olho para ele. Minutos mais tarde, ao ouvir a voz do pai pela primeira vez, o Diogo virou-se e fixou-o com uma expressão de reconhecimento. E nesse momento, juro, vi o amor acontecer.

O Diogo fez-me acreditar no transcendente. Há algo nele que está para além do meu entendimento. A forma como encara o mundo não pára de me surpreender. Tem um altruísmo, uma capacidade de empatia, uma inteligência para ver mais além. E uma resistência, uma resistência feroz. Tem 10 anos, mas tem a coragem de ser ateu. E sabe explicar porquê. É ateu após anos de visitas assíduas a igrejas onde mantinha grandes conversas com Deus, para nosso desespero que só queríamos fazer turismo.

Um não para o Diogo nunca é um não, nunca é definitivo. Nunca é uma porta que se fecha, é uma janela que ele tenta forçar. Um não tem de ser explicado, justificado, escamoteado, negociado até à exaustão. É a este lado negro da força que o Diogo vai buscar a sua energia. Consegue adquirir competências para fazer o que decide que deve fazer, no momento exacto em que decide que tem de ser feito. Começou a falar com 7 meses para dizer olá a quem passava por ele. Aprendeu a ler nos lábios sem dizer nada a ninguém, quando perdeu a audição aos 3 anos. Após o nascimento do irmão, aprendeu a ler sozinho porque percebeu que ninguém tinha tempo para lhe ler histórias e que a primária ainda estava longe.

Nunca disse mal da escola, apesar de ter apanhado mais professoras imbecis do que muita gente durante todo o seu percurso escolar, apesar de nunca terem respeitado a sua inteligência, apesar de ter sido obrigado a mudar de escola no último ano. Ao fim de meses seguidos de bullying, estranhámos vê-lo entrar na escola todos os dias com um sorriso. “Tenho sempre esperança que o novo dia seja diferente”, respondeu. Tinha um único amigo. Nesse dia, senti pela primeira vez na vida instintos assassinos.

Aprendeu a fazer amigos noutros sítios, em qualquer sítio. Anda no hóquei, na natação, no trompete. Gostava de tocar guitarra. Deixou agora os trampolins porque o tempo não é elástico. Porque para o Diogo o tempo é um conceito estranho, mutável. É capaz de demorar meia hora a calçar os sapatos e ainda diz que se despachou. Vai passear o cão de trela na mão e esquece-se de o levar. Mas nunca esquece um caminho.

Tem um saber livresco. Quando lhe pergunto “Sabias que…”, na maior parte das vezes já sabia. E ainda me ensina qualquer coisa de permeio. Lê três livros ao mesmo tempo a uma velocidade alucinante. Sempre à cata do erro, da incongruência. Anda com a “Mensagem” na mochila da escola. Escreve poemas e BD, apesar de desenhar muito mal. Ora quer ser cientista, ora historiador, ora educador de infância, ora arqueólogo. Professor e médico, nunca. Mas tem uma vantagem que a minha geração ainda não tinha: a cada nova profissão que surge, pergunta sempre primeiro se é rentável.

É um cinéfilo inveterado que só gosta de filmes para gente grande. E que não tem vergonha de chorar no escuro. Quando começou a falar de mulheres, levei-o a ver um documentário francês sobre o nascimento. Viu mulheres a parir durante hora e meia e só desviou o olhar quando sacrificaram uma cabra. Não conheço muitos homens que aguentassem. A conversa abrandou durante uns tempos, mas não há nada a fazer. O Diogo é um apaixonado por natureza. Espero sinceramente que ninguém lhe parta o coração.

Nos seus 10 anos de vida, já viu muitas crianças sem família invadirem a sua casa, brincarem com os seus brinquedos, usurparem o colo dos seus pais… nunca lhe ouvi uma palavra que fosse de desagrado. Nunca. É o mais entusiasta defensor da adopção que eu conheço. Embora deseje ardentemente ter mais um irmão bebé e saiba que ambos os projectos são incompatíveis. Porque o Diogo adora bebés e tem muito jeito. É verdade que adora o irmão mas odeia ser idolatrado, copiado, imitado. Nesta vida, em que todos somos tão iguais, há que manter a originalidade. E o Diogo é, de facto, único.

Este é o meu filho. O filho a quem dou os parabéns pelos 10 anos feitos hoje. O filho do meu tamanho, que entrou na idade em que os braços e as pernas ganham vida própria, mas que continua a pedir colo e mimo. E a dizer que me ama. O filho que entrou na idade em que tudo muda, mas que continua lindo. Os pais não costumam dizer estas coisas aos filhos, andam tão ocupados a tentar educá-los que se esquecem de os amar simplesmente. E eu sei que ralho, grito, castigo e até dou palmadas, mas eu não me canso de lhe dizer que o amo e que tenho um orgulho imenso em ser mãe dele. Dou-lhe os parabéns porque em 10 anos de vida se transformou numa pessoa maravilhosa.

 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Um e-mail delicioso

(a ler em voz alta com uma boa dose de imaginação)


bonjour mesieur le pirate!
vous etes de bonumeur? es ce que vous vous amuses??? je croua que oui an italie. es ce que vous avez ma carte postale du colisé romin?
hier j'eté au luxembour dans un magasin portugais. tu me manque.
de vasco à pascal desire josef
au revoir.
je taime.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Passeios de fim-de-semana – Clervaux, Luxemburgo

(onde se percebe que ir só ali beber um café

implica atravessar uma fronteira e mudar completamente de clima)


Nesta família não imperam as regras imutáveis, inquestionáveis. Contudo há uma que se sobrepõe a todas as outras. Digamos que é a nossa “Regra Número 1”. Sempre que está sol – mesmo que seja só uma nesguinha – largamos tudo o que estamos a fazer e aproveitamos. Nem sempre está mau tempo aqui, mas os dias de sol são raros. Felizmente, ontem foi um desses dias. Portanto, nada de limpezas, trabalhos de casa, consolas ou televisão. Fomos passear, um bocadinho à aventura, como de costume.

Há uns tempos atrás, estivemos em Trier, na Alemanha, e atravessámos o Luxemburgo. Uma cidadezinha ficou-me gravada na memória, porque me pareceu ter uma série de coisas portuguesas: Clervaux, a uns 40 minutos daqui. E como ontem estava capaz de matar por uma bica, decidi ir até lá. Não vi nenhum café português… mas descobri uma mercearia! Foi como entrar noutra dimensão, onde toda a gente falava português e as prateleiras só tinham produtos da nossa terra. Comemos pães com chouriço e pastéis de nata, com sumo de manga da Compal, que nos souberam pela vida. Deixámo-nos levar pela loucura e enchemos um carrinho de compras com as coisas de que temos mais saudades: Nestum, rebuçados do Dr. Bayard, enchidos e queijos, arroz carolino, conservas, broa de milho, grelos, massa de pimentão, etc. Ainda por cima, pareceu-me que os preços seriam semelhantes aos praticados em Portugal.

E, depois, passeámos. Ouve-se falar português em todo o lado, parece que estamos em casa. Clervaux é uma  cidadezinha muito bonita, vale a pena a viagem. Tem um castelo fora do vulgar e uma igreja enorme lindíssima. Imensas ruas e ruelas quase sem trânsito, com casinhas muito engraçadas. De vez em quando, vê-se uma mais garrida e desconfio logo que ali vivem portugueses. Um museu sobre a Batalha das Ardenas que merece uma espreitadela... é o terceiro que visitamos, estamos a ficar uns especialistas! E outro sobre os castelos e brasões no Luxemburgo, com muitas maquetes pequeninas que fizeram as delícias do Vasco. Já sabemos qual será o nosso próximo destino, porque nos apaixonámos por um castelo igual aos dos contos de fadas…

[ Bom, para sermos completamente, honestos… o sol radiante da Bélgica desapareceu mal entrámos no Luxemburgo. E acabei por não beber uma bica. Mas não faz mal, o imprevisto faz parte dos nossos passeios de fim-de-semana. Digamos que é a nossa “Regra Número 2”. ]










quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Uma entrevista…

(onde se percebe que não é fácil para um emigrante qualificado

arranjar emprego, embora não seja impossível)



Este ano lectivo, tive a sorte de ser colocada logo em Setembro, na mesma escola onde o Diogo anda, não muito longe de casa. Dou aulas de Espanhol I a adultos, em horário pós-laboral. E divirto-me à grande, que isto de dar aulas a quem estuda por gosto é completamente diferente. O problema é que são poucas horas semanais. Portanto, nos últimos meses, tivemos de aprender a viver com bastante menos, mesmo recebendo o escalão máximo do abono de família (que eu até tenho vergonha de dizer quanto é, tendo em conta o salário mínimo em Portugal).

Para equilibrar as contas, vou fazendo umas traduções aqui e ali. Embora cada dia se torne mais urgente arranjar outro trabalho. Qualquer trabalho. Mas deparei-me com diferentes tipos de problema…

1)    Ensino – Sabe Deus porquê, este Inverno tem sido anormalmente doce. Os professores vendem saúde e ainda não começaram a meter baixa. Portanto, é difícil arranjar mais umas horas ou uma simples substituição.
2)    Tradução – Parece que, neste país, todos os tradutores têm de dominar o neerlandês, mesmo que seja para traduzir posologias em chinês. Ou, então, viver em Bruxelas.
3)    Outras áreas profissionais – O ensino obrigatório belga vai até ao 12º ano. Quem tem pouca ou nenhuma apetência para estudar é encaminhado para o ensino profissional ou técnico e, quando sai da escola, tem obrigatoriamente uma “profissão”. Para se lavar pratos ou escadas, tomar conta de velhotes ou de bebés, vender cafés ou t-shirts… é preciso um diploma específico.
4)    Salários – Os ordenados são calculados com base no número de anos de estudo e de experiência, independentemente da área profissional. Obviamente, uma pessoa com 19 anos de estudos e 14 anos de profissão, não interessa lá muito. Tem qualificações a mais e fica demasiado cara ao empregador.
5)    Localização geográfica – Os belgas demoram 3 horas a atravessar o país de uma ponta à outra, logo, quem vive a 45 minutos do trabalho está longíssimo. Ora a maior parte dos empregos prevê ajudas de custo para a deslocação, por isso, convém viver perto do trabalho.
6)    Disponibilidade – O mundo não foi feito a pensar nas mães solteiras (bah, detesto este termo!). Nestes últimos tempos, tive duas ofertas de emprego, para dar formação de línguas em empresas. Mas o que ia ganhar mal pagava a baby-sitter e a gasolina. Para além de ser incompatível com os horários das actividades dos meninos. Tive de desistir.
7)    Nacionalismo – Em tempos de crise, o proteccionismo nacionalista emerge e os emigrantes são remetidos para o fim da fila.

Apesar disso, todos os dias de manhã consulto o site do centro de emprego e de diferentes agências de trabalho temporário, na Bélgica e no Luxemburgo. Por mais descabido que seja o anúncio, se tiver remotamente a ver com línguas, respondo logo. Tenho diferentes cartas de apresentação e currículos preparados, a dar mais destaque a um ou outro aspecto, segundo o trabalho a que me candidato. Fiz da procura de emprego o meu part-time, no período da manhã. Infelizmente, em seis meses de procura intensa, ainda nunca tinha tido a oportunidade de ir a uma entrevista (excepto nas tais escolas de línguas que tive de desistir).

Há uns tempos, respondi a um anúncio para bibliotecária da Unité de Documentation et Communication de l'Association de personnes porteuses d'une trisomie 21, de leurs parents et des professionnels qui les entourent. Foi mais um daqueles anúncios a que respondi por descargo de consciência, porque não tenho curso de bibliotecária. Mas, quando estava na faculdade, trabalhei na biblioteca da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, portanto, achei que até tinha qualificações para me candidatar. Começaram por dizer que tinham recebido muitos currículos, que iam demorar a tomar uma decisão. Semanas depois, avisaram-me que fazia parte das candidaturas seleccionadas que iam ser analisadas pela direcção. Decorridas mais umas semanas, convidaram-me para uma entrevista com o director da associação e o presidente do conselho científico.

Nessa altura, comecei finalmente acreditar que podia ter uma hipótese. Na verdade, tinha uma hipótese em três, pois tinham escolhido apenas três pessoas para entrevistar. Decidi arregaçar as mangas e ir à luta. Era a minha primeira oportunidade a sério em tantos meses, tinha de estar bem preparada. A primeira coisa que fiz foi bisbilhotar o site da associação para tentar perceber quais as diferentes valências. Fui parar ao blog do centro de documentação, que li de uma ponta à outra. Consultei a lista de livros disponíveis na biblioteca e descobri que também tinham uma colecção impressionante de literatura infantil. Desencantei o jornal trimestral da associação e li os últimos números. Analisei o relatório de contas de 2012 e vi quais os projectos que tinham merecido maiores subsídios. Em seguida, fiz uma pesquisa na Net para descobrir quem eram os dois entrevistadores: qual a universidade onde davam aulas, áreas de especialização, últimos artigos publicados, principais ideias defendidas. Por fim, pesquisei os últimos avanços científicos em relação à trissomia 21, em várias línguas.

Na noite anterior, não consegui dormir grande coisa. Andei às voltas, a tentar perceber por que motivo o meu currículo tinha despertado interesse e o que seria importante ressaltar durante a entrevista, com base em tudo o que tinha analisado antes. Não gosto muito de fazer este exercício, mas passei algum tempo a pensar nas qualidades que faziam com que fosse a pessoa ideal para aquele lugar e cheguei à conclusão que tenho experiência, quer como bibliotecária, quer na escrita de artigos, sou curiosa por natureza, domino as principais ferramentas informáticas (incluindo as redes sociais), posso fazer pesquisa em quatro línguas diferentes e compilar os resultados em francês, a minha especialidade é a literatura infantil, mais concretamente o desenvolvimento do leitor infantil, que poderá facilmente ser aplicado ao caso específico da trissomia 21. Portanto, pareceu-me que não estava mal de todo…

No meio de tanta pesquisa, ia esquecendo o visual! O meu filho crescido insistiu para eu comprar umas botas novas. E o pequeno para eu cortar o cabelo. Não é por nada, mas acho que estes meus rapazes vão ser um bocadinho metrossexuais… A escolha da roupa ficou a cargo da minha amiga Christine, bem como a maquilhagem. Quer dizer, não me parece que se possa propriamente falar de “escolha” no que diz respeito ao meu guarda-roupa, mas enfim.
 
Saí com muito tempo de antecedência porque estava a nevar. E fui nas calmas a ouvir música. Não ia nervosa, bem pelo contrário. Tinha aquela sensação boa, como quando ia fazer um exame que tinha preparado bem. Quando lá cheguei, as entrevistas ainda não tinham começado. O que quer dizer que, a dada altura, estávamos as três "finalistas" a olhar umas para as outras com um certo desconforto na sala de espera. Eu fui a segunda. Durante uns bons trinta minutos, falaram sem parar da associação e do trabalho na biblioteca do centro de documentação. Com esforço, lá consegui mostrar que tinha feito o trabalho de casa. Acho que conquistei um dos entrevistadores quando lhe disse que tinha ficado espantada com os avanços farmacológicos no tratamento da trissomia 21, que ele tinha descrito no último artigo publicado no jornal da associação. Conquistei o outro quando lhe falei no Dr. Miguel Palha, cujo trabalho ele conhecia perfeitamente. Havia mais um entrevistador que não estava previsto e que eu não fazia a mínima ideia de quem seria. A esse dediquei os meus sorrisos mais rasgados, à falta de melhor.

Saí de lá esperançada, sinceramente. Nessa noite também pouco dormi, em ânsias para saber a resposta. O senhor dos sorrisos telefonou-me logo de manhã, bem cedinho, a dizer que tinha uma boa notícia. Quando me saiu um “Oh, não imagina como estou feliz!”, desatou a rir. Mas é mesmo verdade. Estou feliz e não tenho vergonha nenhuma. E fiquei ainda mais feliz quando liguei ao meu amor a dar a notícia e ele me disse que tinha muito orgulho em mim. Que eles é que estavam cheios de sorte por me terem escolhido. Acho que nunca ninguém me tinha dito isto.

Estes últimos meses foram complicados financeiramente. Houve momentos em que me questionei seriamente se conseguiria levar o barco para a frente. Sem a ajuda da minha família teria sido muito difícil. Sem o apoio incondicional e o optimismo contagiante do meu amor teria sido impossível. E, agora, finalmente uma luz ao fundo do túnel. Esta conquista é minha e de todos nós. Já merecíamos, caraças! Um emprego em part-time, relativamente perto de casa, tal como eu queria. Com a perspectiva de ficar logo efectiva, mal acabe o período experimental. Que me permite continuar a dar aulas à noite. Que me permite continuar a acompanhar os meus filhos nas suas actividades à tarde. A ser a mãe que sempre sonhei e que eles merecem ter. Que me permite continuar a ter tempo para mim, para escrever, para ler… para fazer o que me dá prazer, que foi algo que me esqueci de fazer nos últimos anos e que ando aos poucos a reaprender. Sou eu que vou fazer o meu horário e gerir o meu tempo. Quem sabe se daqui por uns tempos não poderei começar a pensar num doutoramento?

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A melhor técnica de engate do mundo

(mas à prova de Vasco…)


 
Estava eu num centro comercial apinhado em dia de saldos – com o Diogo que odeia multidões a transpirar depois de uma passagem pela Primark e o Vasco no estado de sobre-excitação que se imagina – quando me lembrei que tinha mesmo de passar pelo supermercado. Não havia volta a dar, íamos jantar a casa de uma amiga e eu tinha ficado de levar a sobremesa. Assim que entrei, deparei-me com filas monumentais nas caixas e passei ao plano B. Deixei os miúdos a marcar lugar numa fila para pagar e fui a correr buscar o que precisava.

Quando voltei, o senhor que estava à nossa frente começa a tentar meter conversa. “Minha senhora, tenho de lhe dar os meus parabéns. Tem aqui uns rapazes muito bem-educados e sossegados. Principalmente este…”. E apontou para o Vasco. Ouvi um riso abafado. O casal atrás de mim ria disfarçadamente. Percebi que o Vasco devia ter feito das suas… O Diogo incrédulo dizia-me em português: “Ó Mãe, o tipo está a engatar-te! O Vasco não parou quieto um minuto!”. Não me contive e larguei à gargalhada.

E ali ficámos mais uns 10 minutos na fila, que avançava a passo de caracol. A coisa pequena estava no seu melhor. Falou, lutou contra inimigos imaginários, falou, mandou um carrinho para cima do senhor, falou, atirou coisas ao chão… O tipo acabou por admitir a derrota. Depois de pagar, deu-me uma pancadinha no braço e disse-me à laia de despedida: “Coragem!”.

Vasco, a afastar pretendentes desde 2006.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O falso príncipe encantado

(quando a amizade se sobrepõe à vontade de dizer “Eu bem te avisei”)



Pouco depois de chegar a Malempré, bateu-me à porta uma vizinha com um prato de gnocchi na mão para nos dar as boas-vindas. Passados uns dias, retribuí com uma travessa de bacalhau com natas. E nunca mais nos largámos. Tornámo-nos amigas inseparáveis, apesar de os nossos filhos nem sempre se darem bem. A Christine fez mais por nós do que qualquer outra pessoa já tinha feito na minha vida. Tirou cobertores da cama dos filhos para dar aos meus, que não estavam habituados a estes invernos rigorosos. Sinceramente, não sei se eu seria capaz de semelhante gesto.

É daquelas pessoas que dá sem pedir nada em troca. E até se esquece. Hoje estava a fazer torradas e pus-me a jeito para apanhar o pão no ar. Diz-me ela a rir: “Olha, também tive uma torradeira dessas que mandava torradas para a lua!”. Eu respondi que aquela era a torradeira dela. Já não se lembrava. Tal como já não se deve lembrar de ter andado a bisbilhotar os meus armários a ver o que nos faltava, de mandar roupa e calçado para o Diogo, de ter desencantado um aspirador sabe Deus onde, de todas as vezes que apareceu aqui em casa de surpresa, quando eles estavam em Portugal, para me obrigar a sair da cama e comer, e das muitas horas que perdeu a tratar de burocracias comigo. Somos amigas há apenas um ano e meio, mas sinto que a conheço desde sempre. Estive ao lado dela nas dores crónicas, numa operação delicada à coluna, na recuperação, numa separação dolorosa, na procura de emprego e no início de um novo amor. Por isso, quando o príncipe encantado finalmente apareceu, mostrei-me desconfiada. E quando se revelou um pulha da pior espécie, tive vontade de matá-lo.

Tudo começou no dia do desfile de Halloween. À tarde, a Christine mandou-me uma mensagem a perguntar se a podia levar ao hospital, porque não se estava a sentir bem. Quando me estava a preparar para sair, manda-me uma nova mensagem a dizer que, afinal, o colega que andava atrás dela há semanas já estava a caminho. Levou-a ao hospital, trouxe-a de volta, ajudou os filhos dela a fazerem os trabalhos de casa, fez-lhes o jantar e nunca mais se foi embora. Aliás, foi… para ir buscar os seus parcos pertences e assentar arraiais definitivamente.

Os tempos seguintes foram de ramboia como nunca se viu naquela casa: saídas, restaurantes, festas, passeios, bailaricos, idas ao cinema e às compras. Tudo acompanhado por uma constante boa-disposição e gargalhadas. Os miúdos andavam absolutamente encantados com o “padrasto”, que os cobria de prendas. Que ia buscá-los à escola, ajudava a estudar e ainda jogava Playstation nos tempos livres. A Christine andava nas nuvens, qual princesa. Não podia pôr os olhos em cima de nada, que ele oferecia-lhe de imediato. Os seus desejos eram ordens. O mínimo suspiro era satisfeito. Além disso, o príncipe encantado também era uma verdadeira fada do lar multifacetada: trocava as pastilhas do carro, cozinhava, dava um jeito na torneira que pingava, aspirava a casa… Não era o cúmulo da sapiência – nem da beleza, diga-se em abono da verdade – mas compensava isso com uma ternura imensa na forma como a tratava, na dedicação aos miúdos, na ajuda sempre pronta e no riso fácil. E, apesar da minha desconfiança inicial nunca ter desaparecido, comecei a pensar que o homem estava mesmo apaixonado.

Dada a nossa amizade tão estreita, é evidente que esta alegre personagem me entrou pela vida adentro sem pedir licença. Tentei descrevê-lo ao meu amor por e-mail, apontado aspectos negativos e positivos. Fiz um esforço para ser simpática. Deixei antever a minha satisfação por ver a Christine tão feliz e a dúvida insidiosa de que talvez aquilo estivesse a avançar depressa demais. Pelos vistos, fui mesmo simpática na descrição. Uns tempos depois, o meu amor teve oportunidade de conhecer o príncipe encantado e ficou de boca aberta. Literalmente de boca aberta. Eu estava perdida de riso. Quando o vendaval passou – ou seja, quando o alegre casalinho se foi embora – o meu amor disse ter descoberto um aspecto escondido da minha personalidade: eu era extremamente meiga a descrever energúmenos.

A verdade é que mantive o meu cepticismo para mim até a coisa descambar completamente. Em pouco mais de um mês, já o príncipe encantado tinha pedido a minha amiga em casamento. Pior, já lhe tinha pedido para terem um filho. Para ontem. E, como se isso não fosse suficiente, eu fui convidada para madrinha. Intimada a desencantar um vestido e sapatos de salto alto até ao Verão. Confesso que a cena do vestido de cerimónia (ela frisava bem “de cerimónia”…) foi a gota de água que fez transbordar o meu copo.

Um dia, depois de termos estado a ver 196 vestidos de noiva na Net, comecei a expor as minhas dúvidas. Docemente. Como quem não quer a coisa. Com muitooo tacto. Tentando não dizer algo que ela não estava preparada para ouvir, sob risco de comprometer todo o meu discurso. Nunca pus em causa a veracidade dos sentimentos ou um possível compromisso futuro. Pus a tónica na rapidez com que a relação estava a evoluir. Na precipitação. Explicando que, uma vez passada aquela paixão toda inicial, talvez ela descobrisse outro homem. Que não se conhece uma pessoa em meia dúzia de meses. Que aquele período de paixão não ligava lá muito bem com um novo bebé. Que voltar às fraldas e às noites mal dormidas exigia uma relação de aço e não um amor de adolescente. Enfim… falei, falei, falei. A Christine percebeu de imediato onde eu queria chegar e virou a questão ao contrário: Ao fim de 18 anos ao lado do meu namorado do liceu, eu tinha ou não tinha descoberto um perfeito estranho? Fui obrigada a calar-me. E a engolir as minhas dúvidas. O amor é um acto de fé. Se a Christine tinha essa fé para se lançar, não seria eu que lhe ia cortar as asas. Na secreta esperança de que ela não fosse como Ícaro...

E estávamos neste ponto, com data do casamento marcada e a viver um verdadeiro idílio amoroso, quando fui passar o Natal a Inglaterra. Felizmente, os filhos da Christine passaram o Natal com o pai e ela estava sozinha quando o mundo desabou. Gaja que é gaja tem um sexto sentido apurado (só comigo é que a coisa não funcionou, mas isso é outra história). A Christine andava desconfiada com o facto de o príncipe encantado deixar sempre o telemóvel no carro. Até que decidiu ir bisbilhotar. E descobriu o que não queria. Ligou para o número da flausina que lhe enchia o telemóvel com mensagens inflamadas e ficou a saber a extensão da sacanice. Parece que o príncipe encantado tinha conseguido fazer as pazes com a antiga companheira e engravidá-la…durante as primeiras semanas de namoro com a Christine. Como se não bastasse, decidiu manter as duas relações. E ter mais um filho.

Passou uns dias a negar a verdade a ambas… a mandar as mesmas mensagens de desculpas a ambas… a oferecer as mesmas prendas a ambas… até que foi apanhado com a boca na botija e teve mesmo de admitir a paixão a duplicar. A ambas, pois claro. Ficou por explicar como raio pretendia manter esta situação de vida dupla quando as duas crianças nascessem… A estupidez era tanta que acabou por sair de casa da Christine na véspera de Natal, para bater com o nariz na porta da outra. Agora, nem uma nem outra o querem. Nem os pais, velhotes, que ficaram a saber da filha da putice. Um dos bebés não chegou a ser feito, o outro não era viável. As coisas também correram mal no trabalho. O príncipe encantado caído em desgraça acabou por perder o emprego. Neste momento, vive no carro, numa praça em Bastogne. Continua a mandar mensagens várias vezes por dia a ambas. Não, esperem… continua a mandar exactamente as mesmas mensagens a uma e a outra. Um perfeito anormal, é o que é.

Hoje, apesar do frio, decidimos aproveitar o sol que é tão raro por estas bandas. Pegámos nos miúdos todos e no cão, enfiámos umas galochas e fomos dar um longo passeio pelos bosques de Malempré. Passámos horas a dizer disparates e a rir. Falámos de coisas sérias e de parvoíces. Comentámos a roupa que eu devia usar na entrevista que tenho na 3ª feira e combinámos a que horas íamos pôr o carro dela no mecânico. Os príncipes encantados vão e vêm. E um dia tudo há-de ficar bem. Mas enquanto a minha amiga estiver a sofrer, eu rezo para aquele idiota não ter o azar de passar à frente do meu carro. Ou por trás. Que eu sou pessoa para me enganar sem querer nos pedais...

sábado, 11 de janeiro de 2014

O tempo

(uma prenda de Natal atrasada)


No último ano e meio, os meus filhos têm sido submersos por uma avalanche de prendas caríssimas, sem que eu tenha uma palavra a dizer. Desconfio que devem ser as crianças mais tecnologicamente avançadas aqui do burgo. Ele é tablettes, iphones, computadores portáteis, Playsations e Nintendos, smartphones, máquinas fotográficas com milhões de megapixéis… Infelizmente, há pessoas que não sabem amar de outra maneira.

Como é evidente, esta não é a educação que eu lhes quero dar. Está nos antípodas do estilo de vida que levamos. Vai contra tudo o que acredito. Mas a verdade é que eu sou apenas parte da equação. Metade, para ser mais exacta. Sei que tenho a minha família na retaguarda, mas o seu peso é cada vez menor à medida que as relações se deterioram e o acesso aos meus filhos restrito.

Apesar de tudo, vou tentando lutar contra este materialismo que abomino. Contraponho a frieza dos ecrãs à beleza da natureza que nos rodeia, o mundo virtual aos risos dos amigos, a alienação dos videojogos à evasão que a leitura de um bom livro nos proporciona. A simplicidade da vida real à falsidade da vida fictícia, idealizada, sonhada. Tento fazer-lhes ver que o dinheiro tem a importância que nós lhe atribuímos. E apenas essa. Que amar não é dar, é dar-se. E isso é muito mais importante do que os bens materiais.

O meu amor, lá longe, acabou de dar o seu contributo para esta batalha. Mais um, a juntar a tantos outros. E por isso ser-lhe-ei eternamente grata. Como prenda de Natal, ofereceu ao Diogo e ao Vasco bilhetes de avião para irem a Portugal nas férias do Carnaval. Com o único objectivo de estarem com a minha família. Porque, como ele diz, há outro tipo de prenda igualmente importante: o tempo. O tempo que passamos com as pessoas que amamos. O tempo em que nos damos aos outros. O tempo que, por oposição à cascata de prendas tecnológicas, ganha outra dimensão. Muito mais humana. E isto, sim, é o essencial.



[ Merci, du fond du coeur. Ta Renarde. ]

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Educar para a Autonomia

(onde se explicam as premissas da educação para o desenrascanço

e uma mãe se vê seriamente enrascada)


 
Se quisesse ser pedagogicamente correcta, diria que a minha principal prioridade em termos educativos é a autonomia. Mas a verdade é que, na correria do dia-a-dia, não há cá tempo para grandes teorias pedagógicas. Educo os meus filhos o melhor que posso, na esperança de que se tornem uns gajos desenrascados. E felizes, claro. Mas como nunca conheci ninguém que fosse feliz e enrascado, primeiro vem o desenrascanço. Nesta casa é cada um por si e Deus por todos. Sendo que eu sou Deus. Traduzido na prática, eles são obrigados a desenrascarem-se sozinhos, mas faço-me omnipresente para controlar os danos colaterais. Quando é possível. Quando chego a tempo. O que nem sempre é o caso, como se verá mais à frente.

Às vezes, dou por mim a pensar que devo ser maluca, porque dá muito mais trabalho obrigá-los a fazer as coisas do que fazê-las por eles. Parecendo que não, dá uma trabalheira desgraçada dar o exemplo, explicar, incentivar, motivar, adoçar o ego. Servir de rede de segurança, quando as coisas correm menos bem. Estou seriamente desconfiada que deve ser mais fácil ser mãe de dois totós do que de dois miúdos desenrascados. Mas, depois, faço um esforço enorme para me convencer que afinal nesta casa até há um fio educativo condutor. Que sou adepta da “educação para a autonomia”. Pronto, dito assim até fica bonitinho, não é verdade? E espero que, a longo prazo, possa colher os frutos da minha loucura.

Fiel a esta teoria, de manhã limito-me a verificar que o Diogo acordou com o despertador, mas deixo-o gerir o tempo como quiser. Sendo certo que, se perder o autocarro, sabe que não há outro meio de transporte disponível. E nem sequer lhe faço o farnel para o almoço. Até porque tenho a certeza de que não estaria à altura do seu paladar apurado. Sim, que o meu filho tem a mania de fazer sandes gourmet com queijo derretido, um fio de azeite e ervas aromáticas. Cá sandochas mistas com manteiga é coisa de gente com gostos pouco refinados. Ora acontece que, no outro dia, atrasou-se entre a franja que não baixava, o cinto que não aparecia, a camisola de gola alta que picava e não sei mais o quê… Resultado: ficou sem tempo para preparar o repasto. Mas ele não se atrapalhou. Agarrou em seis fatias de pão, numa faca e no pâté de atum e enfiou tudo na mochila às pressas, antes de desatar a correr para apanhar o autocarro. E eu, que ia seguindo a cena ainda estremunhada, pensei cheia de orgulho que, afinal, no meio da lufa-lufa lá vou conseguindo desenrascar uma educação de jeito.

Mas hoje lixei-me. Com o Vasco, claro. Desde que ouviu o coro infantil, na festa de Natal da academia de música, que não me larga. Tentei fingir-me de morta, que já tenho o meu horário de motorista completamente preenchido. Nem me passou pela cabeça que a coisa pequena tentasse resolver o problema sozinha. Esta tarde, quando estávamos à espera do professor de violino, diz-me que ia até à secretaria perguntar se o tinham visto. Como estava em pulgas para mostrar o novo violino, achei normal o entusiasmo e deixei-o ir. Uns minutos depois, o meu alarme de mãe soou e decidi ir atrás dele. Demasiado tarde. O Vasco já se tinha informado dos diferentes pólos da academia onde havia coro. E dos horários. E preços. E qual o mais perto de casa. Quando entrei na secretaria, deparei-me com três senhoras muito solícitas a rir. Disseram-me logo que tenho um filho muito despachado. Hum, hum… Que iam avisar a professora de canto que o Vasco ia fazer uma aula na 6ª feira à experiência. Ainda tentei brincar com a situação… “Ó filho, então queres entrar para o coro, é? Podias ter dito à mãe…” Ele não se fez rogado e disse que andava há semanas a pedir para eu o inscrever. Lá se me foi o sorriso falso. Infelizmente, o director andava por ali. E como é fã do Vasco, a mascote da academia por ser o aluno mais novo na classe de instrumento, aprovou a escolha. Nem é preciso pagar nada.

Resumindo: Na próxima 6ª feira, vou fazer mais 40 km para levar o menino ao coro. O Vasco está todo ufano por ter resolvido o assunto sozinho. O Diogo está nas nuvens com a perspectiva de ficar duas horas sozinho em casa. E eu… eu só tenho a dizer que a educação para a autonomia é uma merda, é o que é.
 
[ Mas admito que deve ter a sua quota-parte na construção da auto-estima da coisa pequena. Já no carro, comentava que bom, bom, era entrar para o coro de Harzé, só para adolescentes e adultos, porque seria a única criança. E que ser único era especial. ]
 


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Foi em Janeiro que tudo começou

(onde se mostra que a matemática dos dias nem sempre é exacta)


Foi em Janeiro que tudo começou. Há um ano atrás, portanto. Mudei-me para cá no final de Agosto, mas os meses seguintes não contaram, porque eu ainda estava em modo de sobrevivência. Foi uma época muito dura, feita de incertezas, choro, medo. Uma dor surda. E saudades, numa moinha constante. Três meses foi o tempo que demorei a pôr esta nova vida a andar para a frente.

Quando entrei em 2013, senti o impacto do que tinha feito, pela primeira vez. Longe dos meus filhos, entre amigos e vizinhos a assistir aos fogos-de-artifício improvisados de Malempré. A olhar para o céu, no meio da neve. Pensei: “Pronto, não há dúvida… conseguiste! Sabe-se lá como, conseguiste desenrascar uma nova vida. Agora, tens de a viver.” Senti assim uma espécie de vertigem, quando percebi que o mais difícil estava feito. Uma euforia, seguida de um ligeiro ataque de pânico. E agora, que desculpa é que eu tinha para continuar a não viver? Tinha passado meses concentrada no objectivo, sem olhar à minha volta. A viver com e para os meus filhos apenas. E percebi que isso não chegava. Sobreviver apenas, já não era suficiente. Tinha de começar a viver. Tinha de começar a viver uma vida. A minha vida.

Portanto, foi em Janeiro que tudo começou. O ano de 2013 foi vivido a sério. Não foi apenas mais um ano que passou, foi o ano que mudou as nossas vidas e, principalmente, a nossa forma de estar na vida. Foi um ano que nos mudou a todos, inexoravelmente.

Mudei de país. Aprendi a estar sozinha, a valer-me sozinha, a tomar decisões e assumir responsabilidades. Aluguei a minha primeira casa. Fiz amigos e estreitei laços com outra família. Aprendi a viver numa aldeia, num huis clos, que nos recebeu de braços abertos. Ajudei os meus filhos a começarem a falar uma nova língua, a adaptarem-se a uma nova realidade. Recomecei a trabalhar fora de casa, a dar aulas. Geri prioridades, horários, actividades, necessidades várias. Fui melhor mãe, mais feliz, mais presente e disponível. Visitei nove países diferentes, quase sempre de carro. Apaixonei-me. Decidi viver esse amor, para a qual não estava minimamente preparada. Escolhi uma escola secundária para o meu filho mais velho, após meses de indecisão. Comprei um carro sozinha. Traduzi livros e um festival de cinema. Voltei a montar a cavalo, juntamente com os meus filhos. Dei um longo passeio de muitos quilómetros com o meu amor. Vi um filho entrar na adolescência com um espanto enternecido. Aprendi a viver com (muito) menos quando fiquei com um horário reduzido este ano, na nova escola. Ganhei uma batalha judicial pela guarda dos meus filhos, mas não tive a paz esperada. Percebi que vou trazer sempre no coração uma saudade do país, da família e dos amigos, do sol que ficou para trás. Fiz uma promessa de amor selada com cuspo, sem papéis assinados, testemunhas ou ilusões de amor eterno. Comecei um blog onde tento passar a escrito todas estas experiências.

Os meus desejos para 2014? Saúde, para os meus e para mim. Trabalho, muito. Duas crianças felizes. O meu amor junto de mim. Paz, finalmente paz. Acho que esta fotografia resume isso tudo…




[ Este blog tem quase três meses e tantas visitas! Quer dizer, não faço ideia dos "valores médios" destas coisas. Mas, para mim, que comecei isto sem qualquer expectativa, só para a família e amigos que estão lá longe, parece-me imenso. E comove-me ver que as nossas aventuras e desventuras tocam alguém. O mundo é muito grande. É possível ser feliz em qualquer lado, desde que se queira. E nós queremos, muito. Desejo-vos um ano novo repleto de coragem para concretizarem os vossos sonhos. ]