sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A caminho de Frankfurt...

(porque depois de 6 semanas de imobilidade forçada,

 o Vasco merece uma prenda de anos em grande)


Pode parecer paradoxal, mas a coisa que mais gosto na Bélgica é mesmo a rapidez com que se consegue sair daqui. Holanda, Alemanha, Luxemburgo e França ficam a pouco mais de uma hora de Malempré. Quer dizer, o Luxemburgo fica apenas a 20 minutos (e a gasolina é muito mais barata). É uma sensação de liberdade enorme. Parece que vivemos no centro do mundo. Adoro este cosmopolitismo! Não há nada melhor do que, de vez em quando, perdermo-nos no anonimato de uma grande cidade, para contrabalançar a  vida pacata de aldeia onde todos nos conhecem.

O meu amor fica sempre surpreendido quando os miúdos desatam a bater palmas, depois de passarmos uma fronteira. Já lhe tentei explicar que é uma coisa de Tuga, que vive aconchegado no cantinho da Europa. Num ano, conseguimos visitar uma série de países, a dois e a quatro (mais o cão). Só escolhemos cidades onde haja amigos ou família. Deste modo, matamos saudades, poupamos o dinheiro da estadia e podemos cozinhar. Em último caso, levamos farnel, arrancamos cedo no sábado e voltamos tarde no domingo, dormindo em hotéis Formule 1, a 30 euros/noite. Para além das muitas cidades que já visitámos na Bélgica, fomos a Amesterdão, Maastricht, Aachen, Trier, Monschau, Boulogne-sur–Mer, Mont Saint-Michel, Reims, Paris, cidade do Luxemburgo... Na Páscoa, também fomos a Portugal de carro. Adorámos Bilbau!
 
Este fim-de-semana, vamos a Frankfurt visitar o “tio” Rui, um amigo muito querido que sobreviveu ao liceu, à universidade e aos muitos anos a viver na Irlanda. Agora que estamos tão pertinho um do outro, nunca mais nos largámos. O Vasco nem imagina o que o espera! Na mala levo prendas, jogos, doces, bandeirolas, balões, velas mágicas, postais da família… E tenho outra surpresa na manga: o meu amor vai lá ter connosco. O tio Rui que se prepare, porque vão ser uns dias de festa... :)



quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Hoje fazes sete anos e eu pergunto-me como é possível

(onde se percebe que crescer para o Vasco

 sempre foi uma coisa estranha)



Comecei a desconfiar que eras especial, ainda estavas tu na minha barriga. Pequena criatura estranha e assustadiça, que só reagia à voz do irmão. Quiseste nascer depressa, numa noite de tempestade. Mas o teu coração parou. Nasceste roxo, sem chorar. Os minutos eternizaram-se. Quando finalmente começaste a chorar, nunca mais te calaste. Durante 6 meses ininterruptos.

Não se podia olhar para ti, falar-te e tocar-te ao mesmo tempo que te desregulavas todo. Parecias um animal selvagem. Primeiro, aproximava-me de mansinho. Punha-te uma mão na barriga docemente. Falava contigo baixinho. Depois podia pegar-te, com mil cuidados. E só quando te sentisses confortável e em segurança, é que te podia olhar nos olhos. Procurei muitas vezes o teu olhar, em vão. Tentei acalmar choros e birras e fúrias, em vão. Passei horas a tentar adormecer-te, em vão.

Aprendeste depressa a manipular-me. Quando te enervavas, deixavas de respirar. Durante muito tempo. E eu aprendi a evitar que te enervasses. Às vezes resultava, outras não. Um dia, quando estavas hospitalizado na Estefânia – aí, sim, com um grave problema respiratório – fizeste-me um sorriso rasgado… todo tu eras tubos, agulhas, máquinas e apitos. Percebi que tínhamos ali um guerreiro.
 
Aos 7 meses e meio disseste-me “Olá!”. Senti que o pior já tinha passado. No dia em que, sozinho, te puseste em pé pela primeira vez, começaste a tentar andar. Caías, levantavas-te, caías, levantavas-te. Passaste a ter a testa sempre negra. Aos 12 meses corrias a casa. O Miró, o nosso dálmata que morreu pouco depois, acompanhava-te de perto, ainda mais assustado que eu.

A partir do momento em que descobriste a liberdade, começaste a testá-la: atiravas-te do berço abaixo e descias as escadas do quintal de cabeça. Estavas sempre a tentar largar a minha mão para fugir. Perdi-te muitas vezes em sítios públicos porque te tornaste um especialista da fuga. Minutos de puro terror. Até que uma vez, já tu tinhas quatro anos, além de te perder, perdi também a cabeça. E quando te encontrei, a andar calmamente de mão dada com uma desconhecida, dei-te as primeiras palmadas da tua vida e avisei-te que nunca mais voltavas a fugir. Aguentaste uns meses.

Entraste para a escola pouco antes de fazeres dois anos. Passaste as primeiras semanas a chorar a um canto, de braços esticados para ninguém te conseguir tocar. Cá fora, do outro lado da estrada, eu conseguia ouvir-te: “A minha mãe… a minha mãe… a minha mãe…”. E ficava a fazer tempo para te ir buscar, dentro do carro, a chorar também.

Quando fizeste dois anos, passámos o dia no Jardim Zoológico. Sempre gostaste de animais. No aquário das focas, engraçaste com uma foca. Passaste a barreira e ficaste colado ao vidro. Começaram a brincar. Corrias para um lado e ela seguia-te. Corrias para o outro e ela ia atrás. Estiveram muito tempo nisto. E eu pensei que aquilo devia ser a felicidade.

Até começares a tocar violino, nunca brincaste com um brinquedo. Nem com legos, carrinhos ou bonecos. Nunca quiseste ver um desenho animado ou ler um livro. As únicas prendas que apreciavas eram coisas que fizessem barulho, instrumentos musicais, microfones e DVD’s da Mariza. E do Sérgio Godinho. Sabias as músicas de cor. Conhecias cada gesto. Mal chegavas da escola, corrias para o DVD.

Aos dois anos e meio, decretaste que querias aprender a tocar violoncelo, graças ao Jaques Morelenbaum. O instrumento mais pequeno era maior do que tu. Convenci-te a mudar para o violino. Foste à primeira aula de chucha na boca e ó-ó na mão. Tinhas acabado de largar as fraldas. Adoravas a tua primeira professora. Hoje, três violinos e quase cinco anos depois, continuas a tocar. De vez em quando, ainda dizes que também queres aprender violoncelo. E eu sei que é só uma questão de tempo.

Quando tinhas três anos, tentei mais uma vez fugir à tradução e comecei a trabalhar fora de casa. Foram os piores seis meses da nossa vida. Chorávamos os dois com saudades um do outro. Quando finalmente desisti, passaste semanas aflito atrás de mim. Seguias-me para todo o lado como um patinho e entravas em pânico quando ia tomar banho. Volta e meia, abrias a cortina do duche e espreitavas… “A mãe está aqui, Vasco”, dizia-te eu para te acalmar. “Eu sei”, respondias. Sabias, mas não tinhas a certeza.

Foi mais ou menos por essa altura que tiveste uma paixão assolapada pelas princesas da Disney. Passeavas-te na rua de tiara cor-de-rosa na cabeça, ignorando risos e gozos. Trocaste a Mariza pela Pequena Sereia. O teu amor pelo cor-de-rosa e o tule ainda durou uns meses para desespero familiar. Eu sempre achei que devias ser quem eras. Sempre soubeste ser fiel a ti mesmo, contra tudo e todos.

Mal fizeste quatro anos, decidiste que estava na hora de passar para a piscina dos grandes, apesar de ainda não teres pé. Fiquei muito triste. Desde bebé que íamos juntos às aulas de natação e eu não estava preparada para te ver continuar sozinho. Mas tu sempre foste muito independente. Quando entraste para a sala dos quatro anos, os meninos levantaram-se todos para te aplaudir. Parecias uma estrela! Foi a primeira vez que tive um vislumbre do meu palhaço do circo. Às vezes, escapavas-te da tua sala para ir dar uma volta pela quinta pedagógica e ver os bichos. Adoravas trabalhar na terra e espalhar pozinhos de perlimpimpim para fazer as sementes crescer.

Aos cinco anos a tua vida desabou, sem que nada o fizesse prever. E tudo mudou. Deixámos o nosso país, família e amigos. E mudámo-nos 2500 km para Norte. Só nós, os três da vida airada. Tornámo-nos ainda mais unidos. Um dia depois de chegares à Bélgica, começaste as aulas na escola primária de Malempré. Não sabias dizer uma palavra, não conhecias ninguém. Agarraste-te ao teu irmão, não para fazer dele escudo protector… mas para o defenderes dos outros miúdos, da vida, das dificuldades. A única vez que bateste num colega foi para defender o teu irmão, que adoras.

Aos seis anos deixaste de ser o menino mais novo na sala e a professora deixou de andar contigo atrelado pela mão para conseguir dar aulas. Tens de fazer contas mais depressa e já ninguém te desculpa a letra imperceptível. Começaste a ter aulas de solfejo, numa turma com meninos muito mais crescidos do que tu, e levas a professora ao desespero. Mas cantas como um rouxinol. As aulas de violino já não requerem a minha presença e duram uma hora. Sais de lá estafado. Fazes um esforço imenso para pôr esses dedos miudinhos no sítio certo à velocidade que agora te é exigida. Ao mesmo tempo que lês a pauta, porque o professor já não te deixa aprender as músicas de cor. Este ano é a valer, não há margem para brincadeiras, e está a custar-te crescer.

Olhas para o teu irmão e procuras em ti os mesmos sinais de crescimento. Se te obrigam a crescer tanto, porque continuas com pouco mais de um metro? Se as dores de crescimento são tão grandes, porque não podes barbear-te e pôr desodorizante? Segue-lo para todo o lado, queres imitar brincadeiras, conversas, jogos. Queres dar longos passeios a cavalo como ele. E galopar. Fazes perguntas sobre os amigos. Pedes-lhe que repita as piadas que dizem. Anseias pela mesma liberdade. E pela conta do facebook, o telemóvel e o iPod.

Hoje fazes sete anos e eu pergunto-me como é possível. Crescer é uma coisa estranha, Vasco. Não tenhas pressa. Não te deixes apanhar pelo fato e gravata. E os sapatos engraxados. Não te tranques num escritório. Não vivas das 9h às 17h. Não percas a emoção e a alegria que pões em tudo o que fazes. Nunca deixes de te sentar nas escadas da igreja, alheado do frio e das pessoas que te rodeiam, a ouvir os sinos tocar. E se ainda te apetecer chorar, não faz mal. Os homens a sério também choram.





Let it snow, let it snow, let it snow...

(há dias em que me pergunto que diabo fazemos aqui… hoje é um deles)



quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A minha vizinha maluca e o hamster assassino

(onde se apresenta o mais novo habitante desta casa)

 

Tenho uma vizinha de quem gosto muito. É meia maluca. Muito boa pessoa, sempre disponível para ajudar… mas é meia maluca, pronto. Digamos que é uma miúda de 15 anos encarcerada num corpo de 35. Podem imaginar o conflito interior. O pior é que ela tem imenso tempo livre para fazer maluquices. Os quatro filhos adoram a loucura da mãe e o marido vive para lhe satisfazer os caprichos infantis. Ah… e mora a dois passos de nossa casa.

Na sala, tem três gatos, duas chinchilas, dois coelhos, quatro hamsters, um aquário cheio de peixes e duas gaiolas enormes com passarinhos com nomes exóticos. E um lama, que só ficou na rua porque não cabia na porta. Isto era ontem, porque hoje já não se sabe. Esta minha vizinha adora animais. Volta e meia, apaixona-se por uma nova espécie. Lê tudo o que encontra na Net, compra uns quantos exemplares e a tralha toda requerida. Passado uns tempos, farta-se. É uma espécie de tédio que se lhe dá. Nessa altura, desfaz-se da bicharada toda e arruma a tralha no sótão. Houve a fase dos furões, dos porquinhos-da-Índia, dos cães, dos ratinhos anões, dos mandarins, etc.

Já estão a ver onde raio fui desencantar o coelho selvagem que assombra as nossas noites. O tal que, só depois de já estar cá em casa, soubemos que vivia em liberdade e que, portanto, tem um ódio visceral a qualquer tipo de prisão. É que a minha vizinha gosta de oferecer os animais quando o amor acaba. Às vezes, é um bocadinho difícil impingi-los. Não é que ela minta, mas não diz logo toda a verdade aos novos proprietários. Em Malempré, já não engana ninguém. Excepto aqui a parva de serviço, claro.

No outro dia, mandou-me uma mensagem a perguntar se não queria um porquinho-da-índia porque, afinal, não achava lá muita piada ao bicho. Agradeci, mas disse que a gaiola do Peanuts e do Dó Ré Mi era demasiado pequena. Respondeu que me podia dar uma gaiola maior. Agradeci mais uma vez, mas expliquei que o quarto dos miúdos não tinha espaço para uma gaiola maior e que não podia ficar no andar de baixo por causa do Fuas. Sem mais argumentos, acabou por desistir.

Ontem, passei por casa dela para lhe dar um saco de roupa que deixou de servir aos miúdos. Enquanto bebíamos um café, pergunta-me se não quero um hamster amoroso… que estava todo mordido, que não se dava bem com os outros, que ainda acabava por morrer. Disse-lhe que não tinha gaiola e que não podia estar a fazer mais despesas este mês porque tinha os anos do Vasco. Respondeu logo que oferecia o hamster ao Vasco, juntamente com a gaiola. Agradeci muito a oferta, mas expliquei que os hamsters fazem barulho à noite e que os meninos não iam conseguir dormir com ele no quarto a roer as grades. Ela levantou-se e foi buscar uma gaiola daquelas todas modernas, tipo aquário, sem grades. Desta vez, fui eu que fiquei sem argumentos e desisti. Saí de lá com uma mesa, um aspirador, dois alhos franceses e um hamster (mais a respectiva gaiola, bebedouro, comedouro, casinha, roda para brincar e mais mil e uma porcarias que não faço ideia para que servem).

À noite, a minha vizinha meia maluca fez-nos uma visita para ver como passava o hamster. O Vasco estava nas nuvens com a prenda de anos antecipada. Decidiu chamar-lhe “Robin des Bois”. A minha vizinha olhou para o hamster, que estava todo enroladinho nas mãos do Diogo, e deixou escapar, como quem não quer a coisa: “Daqui por uns dias, se notarem que a barriga está maior, é melhor deixarem de lhe pegar porque pode estar grávida…”  “Grávida?! Mas não era um macho?”  “Não, é uma fêmea, o macho morreu. Ela arrancou-lhe a cabeça.”  “Como?!”  “Elas normalmente fazem isso quando estão grávidas, para proteger os filhos.” HEIN?!?!

Esta tarde fomos espreitá-la, preocupados. Desde ontem que a bicha só dormia. Acordámo-la meigamente. E descobrimos horrorizados que guincha. Mas é que guincha que se farta. Numa casa onde imperam os espécimes masculinos, finalmente há outra gaja… assassina, grávida e histérica. Está certinho.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Amor é... andar aos caixotes

(o que uma pessoa é capaz de fazer para poupar 125 euros)



No Verão passado, o Vasco perguntou se podia ter uma mochila da Kipling quando entrasse para o 2º ano. Eu devia estar em piloto automático porque disse que sim, embora não fizesse a mínima ideia do que isso fosse. Quando fomos aos saldos, ele lembrou-se da promessa e fomos à procura das ditas mochilas. A mim escapou-me um “F***-**!”, ao Diogo um “Porra!”. E largámos os dois a rir à gargalhada. As Kipling rondavam os 125 euros… em promoção. Houve suspiros, houve choro, houve drama, houve “Mas tu disseste que sim…”. Expliquei-lhe que me recusava a dar um balúrdio daqueles por uma simples mochila, tanto mais que no 1º ano ele tinha conseguido destruir três. E peguei numa mochila horrorosa do Pooh com reflectores e protecções, que custava a módica quantia de 2.50 euros. Dois calduços depois, até o irmão gabava o achado. Mas o Vasco estava profundamente triste. E desiludido comigo.
 
Decidida a arranjar uma Kipling, fosse como fosse, deitei de imediato mãos à obra. Comecei pelos sites de coisas em segunda mão. Só encontrei duas, mas custavam perto de 50 euros. No ebay ainda era pior. Estava fora de questão pagar mais por uma coisa usada do que sou capaz de dar por uma nova. Voltei-me para as vendas de garagem, as feiras de artigos de criança usados, as lojas em segunda mão… Passei o Verão a vasculhar quinquilharia, com um Vasco esperançoso atrás. As poucas mochilas que encontrámos, não tinham o gorila. Sim… fui rapidamente informada que a Kipling perde todo o seu valor sem a merda do peluche minúsculo pendurado, tipo porta-chaves. Mudei de estratégia: primeiro tinha de encontrar um gorila qualquer da Kipling que pudesse meter numa mochila usada. Ah… mas o gorila tinha de ser da mesma cor da mochila, senão não servia. Por esta altura, já eu tinha repetido o impropério inicial um cento de vezes…
 
No início de Setembro, arrastei um ofendido Vasco até à escola, com a lindíssima mochila do Pooh às costas. Quando chegámos, recebi um olhar fulminante: os miúdos todos tinham mochilas da Kipling. Fiquei com náuseas só de ver os malfadados gorilas a balouçar. Assim de relance, calculei que devia haver uns milhares de euros naquele recreio. Raios partam! Que diabo de mãe dá 125 euros (se for precavida e comprar o material nos saldos, como eu) por uma porcaria de uma mochila de uma só cor, sem gracinha nenhuma?!?! Sim, porque os últimos modelos coloridos da Kipling custam mais de 165 euros! Inquiri as outras mães e fiquei a saber que: a) as Kipling têm garantia, b) custam aquele preço, mas compensa porque duram uma vida, c) quando um fecho se estraga ou uma peça se parte – o que nunca acontece, de qualquer modo – a marca faz a reparação de graça (se calhar até dão uma mochila de substituição), d) podem ser lavadas as vezes que se quiser, que nunca perdem a cor, o tecido não esmiúça, continuam como novas. Resumindo, o mundo divide-se entre os pais inteligentes que compram duas Kipling que acompanham os filhos durante os 6 anos da primária e os pais burros que compram 3 mochilas rascas por ano.

Depois desta instrutiva conversa com as outras mães à porta da escola, já não se tratava apenas de cumprir uma promessa feita sem pensar para fazer o meu filho feliz… a questão tornou-se pessoal. E eu não sou pessoa de virar costas a um desafio: o Vasco havia de ter uma Kipling e havia de dar cabo dela em menos de um nada, como faz com tudo o resto onde põe a mão, os joelhos, os pés… Tinha de provar a esta gente que as abençoadas Kipling não são à prova de Vasco. Eis-me, portanto, de novo à caça de um gorila e de uma mochila em segunda mão. Sim, porque eu gosto de uma boa luta, mas continuava a recusar-me a dar 125 euros por uma simples mochila! Uma vizinha acolita da Kipling com três filhos (façam as contas…), apiedou-se de mim e ofereceu-me um gorila ranhoso que andava lá por casa desde que as mochilas da pré-primária tinham sido substituídas por outras maiores (e beeeeem mais caras). Iupi, já não faltava tudo!
 
Este sábado, aproveitámos não estar a chover para ir ao centro de reciclagem fazer a triagem do lixo. E… o Vasco descobriu uma Kipling no contentor dos encombrants! Eis o diálogo que se seguiu:
 
Eu: É mesmo uma Kipling?! Vou lá ver…
Diogo: Ó mãe, não te vais meter ali dentro para ir buscar a mochila, pois não?
Vasco: Vai, mãe, vai!
Eu: Ai não que não vou!
Diogo: É ilegal, não podes levar o lixo que as pessoas depositam aqui.
Vasco: Vai, mãe, vai!
Eu: O lixo de uns é o tesouro de outros. Uns deitam fora, outros aproveitam.
Diogo: Oh… para estar no lixo, aposto que está estragada.
Vasco: Vai, mãe, vai!
Eu: As Kipling não se estragam, são à prova de tudo… menos do Vasco.
Diogo: Mas deve estar suja…
Vasco: Vai, mãe, vai!
Eu: Lava-se! Vá lá, ajuda-me aqui a descer…
Diogo: Ó mãe, por favor, não vais andar aos caixotes que eu tenho vergonha…
Vasco: Vai, mãe, vai!
Eu: Tecnicamente não é um caixote do lixo, é um contentor. Ajuda-me a entrar, anda lá…
Diogo: Vou esperar no carro. Que vergonha! Não vos conheço…
Vasco: Vai, mãe, vai!
Eu: Vê lá se está aí alguém a ver, Vasco…
Vasco: Não está ninguém a ver, mãe, podes ir! Quer dizer, acho que há câmaras…
Eu: Já cá canta! É mesmo uma Kipling! Ih, ih, ih! Depressa, mete-te no carro!
Vasco: Espera aí, mãe, não posso correr depressa… tenho o pé partido!
Eu: Não querias uma Kipling?! Cala-te e corre, pá!

Bom… infelizmente, o Diogo tinha razão num aspecto. A mochila não estava estragada, mas estava toda manchada de tinta na bolsa da frente. Caraças, tinha finalmente o gorila e a mochila, alguma coisa se havia de arranjar! Duas máquinas a 60º graus depois, percebi que isto ia exigir medidas mais duras. A parte boa é que tanto a mochila como o gorila tinham ficado com uma cor de burro quando foge muito semelhante. Cortei o forro de uma das 1001 bolsas interiores e cosi a abertura para não poder voltar a ser utilizada. Descosi o símbolo e forrei a bolsa da frente. Voltei a coser o símbolo. Passei o Domingo a cortar, a descoser, a coser… Tenho os dedos cheios de feridas porque, verdade seja dita, a porcaria da mochila é sólida e o tecido resistente. Mas fiquei orgulhosa do meu trabalho de costura, ninguém diria que a mochila não acabou de sair da loja (excepto pela cor um bocadinho estranha). Pendurámos o gorila. Trocámos as coisas da belíssima mochila do Pooh (que já estava rasgada, de qualquer modo). E eis um Vasco feliz, finalmente.
 
Agora… let the games begin! Veremos quanto tempo vai durar a caríssima mochila maravilha nas mãos do Vasco!

 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

E a coisa pequena, perguntam vocês?

(mãe e professores à beira de um ataque de nervos)

 
Acusação:

·         O Vasco não consegue estar quieto um minuto. Não tem bichos-carpinteiros… todo ele é um bicho-carpinteiro. Mesmo engessado até ao joelho continua a correr, a saltar, a jogar à bola.
 
·         Está constantemente a falar. Quer a professora e os colegas estejam a ouvir ou não. Quando isolado de todos, num canto, o Vasco continua a falar consigo próprio. Em voz alta. Diz que às vezes também canta.
 
·         Está sempre a cair (da cama, do sofá, da cadeira da escola, etc.).
 
·         As coisas que o Vasco tem na mão estão sempre a cair (os lápis, as canetas, os cadernos, etc.). Também pode acontecer saltarem-lhe das mãos, normalmente para cima de algum desgraçado.
 
·         Não tem qualquer destreza manual. Quando pega na tesoura, todos se afastam. Gasta um tubo de cola inteiro para colar um simples recorte. Quando começa a pintar, não pára nas linhas e continua pela secretária a fora, mãos, folha do colega do lado…
 
·         É desleixado e badalhoco. Não lhe faz confusão nenhuma entregar um trabalho de casa amachucado, pisado, rasgado, escrito-apagado-reescrito-apagado-re-reescrito. O conteúdo é mais importante que a forma.
 
·         É preguiçoso. Demora tanto tempo a escrever um A maiúsculo como uma criança chinesa a escrever 25 caracteres.
 
·         Não tem qualquer noção do tempo, do stress, da pressa.
 
·         Por sistema, é contra a lei, a ordem, as obrigações, as regras.
 
·         É completamente imune a ralhetes, ameaças e castigos. O medo é coisa que não lhe assiste.
 

Contraditório:

·         O Vasco tem 6 anos, é o menino mais novo no 2º ano. E na aula de solfejo. E na aula de violino.
 
·         É muito bom aluno. Detesta ter más notas. Um 6/10 é coisa para o deixar a chorar uma tarde inteira.
 
·         Tem uma memória de elefante. E uma esperteza de rato.
 
·         Salta do português para o francês e vice-versa a uma velocidade estonteante. E fala igualmente bem as duas línguas. Tem um excelente ouvido e já diz alguma frases em inglês, muito úteis: "May the force be with you", "You shall not pass!"... 
 
·         É uma criança naturalmente feliz, de riso fácil.
 
·         É muito meiguinho.
 
·         Tem sempre uma última palavra a dizer, uma resposta pronta, uma tirada que não lembra ao diabo. Consegue arrancar gargalhadas a um mimo. E, para mal dos nossos pecados, este último ponto tem o poder de anular todos os outros.
 


 
 
[Quando cheguei da reunião na escola, perguntou se podia comer um doce. O irmão respondeu por mim: "Achas que é a melhor altura para pedires doces?! A mãe acabou de falar com a tua professora, Vasco...". Virou-se para mim todo dengoso, abraçou-me e pôs-me as mãos na testa: "Estás tão quentinha, mãe! Acho que tens febre. Coitadinha!" Hum, hum... obviamente, o problema é meu, não dele.]


terça-feira, 12 de novembro de 2013

Armistício

(onde se mostra que a História em Malempré é revivida todos os anos)

 
Ontem foi feriado do 11 de Novembro, dia do Armistício. Uma semana antes, os miúdos da escola de Malempré vão a casa das pessoas mais idosas da aldeia convidá-las para uma pequena celebração. Recebem sempre um doce e uma festinha emocionada na cabeça quando se vão embora. E, à hora marcada, lá estão os velhotes todos aperaltados a acompanhar as crianças.

Normalmente, a cerimónia faz-se em frente à igreja, onde há uma placa comemorativa do final da primeira e da segunda Guerra Mundial, a assinalar as datas em que a aldeia foi libertada. Este ano, por causa das obras, decidiram fazer a celebração no local onde foram fuzilados dois irmãos por soldados alemães. Na sexta-feira, os miúdos mais pequeninos depositaram flores e os mais crescidos leram uma composição que escreveram sobre a guerra. Em seguida, a professora leu um breve texto, onde explicou que a única maneira de lutar contra o esquecimento é lembrando.

E, na região das Ardenas onde vivemos, o que não faltam são lembranças… museus, placas comemorativas, tanques, canhões, grandes metralhadoras esquecidas nos seus suportes. Um pouco por todo o lado, há um arsenal antigo de guerra cristalizado, como se fosse o palácio da Bela Adormecida, que acabou por ser aglutinado na paisagem. Na fachada da nossa casa, há uma placa onde se pode ler: “Ici a été arrêté et déporté Voz Jules”, lembrando-nos diariamente que esta aldeia sofreu muito com as duas grandes guerras. Dada a sua posição estrategicamente protegida no vale, a população teve um papel importante na Resistência. E pagou por isso.

Talvez seja por esse motivo que a singela homenagem que as crianças da aldeia fazem, todos os anos, juntamente com os velhotes, seja um momento especialmente emotivo. No final, as vozes tremidas dos antigos e dos novos juntam-se para cantar o hino. A primeira vez que ouvi o meu filho Vasco cantar a “Brabançonne”, admito que senti uma espécie de comichão na alma. Mas, ao ver aqueles velhotes limparem as lágrimas furtivas e os miúdos tão solenes, percebi que provavelmente terá mais sentido associar o hino de um país a uma memória universal do que a um mero jogo de futebol...
  




 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Sinto uma coisa estranha cá dentro, que não sei bem explicar

(e suponho que isso exija um post muito grande…)


Juntamente com o boletim das notas do Diogo, recebi uma convocatória para a primeira reunião de pais na escola nova (e uma factura avultada, mas isso são outros quinhentos). Assinalei os professores com quem queria falar e mandei por e-mail para os Educateurs. Depois, o Diogo trouxe-me o “meu horário da reunião”, com as horas e as salas onde os professores estariam à minha espera. Tudo muito organizadinho.

Bastante experiente nas artes de ouvir dizer mal do primogénito pelos vários professores que lhe foram calhando na rifa, ao longo dos anos, naquele distante país à beira-mar plantado, levei uma ordem de trabalhos muitíssimo bem preparada:

18h00 Prof. de Religião Católica
[Só para explicar que o Diogo é ateu, mas que gosta muito de mitologia. Vá… e que se não quer ser desacreditada publicamente, é melhor não dizer assim de chofre que foi Deus que criou o mundo. Trata-se de um homem da ciência; o livre de poche do momento é “Einstein e a Física Quântica explicada aos Jovens” (eu devo ser velha, porque não consegui passar da primeira página). Não é para assustar ninguém, mas ele é capaz de ter um ou dois argumentos na manga, portanto, é favor mandá-lo dar uma voltinha no recreio caso se torne muito incomodativo. E não levar a mal, que não é nada pessoal.]

18h20 Prof de Latim
[Para lhe perguntar que rambóia é aquela… onde raio andam as declinações e a conjugação?! Era a minha hipótese de brilhar como mãe e ela está a destruir tudo com a porcaria da história da Guerra de Troia. Toda a gente sabe que a única coisa interessante a dizer sobre o assunto diz respeito à prestação do Brad Pitt no filme, por isso, vamos lá às coisas sérias e toca a dar matéria à moda antiga, que os meninos não vão morrer.]

18h40 Prof. de Ciências
[Quero deixar bem claro que ele é, efectivamente, um homem comprometido com a ciência… mas na teoria. A observação de caracóis ainda vai, mas quando passarem à dissecação dos ratos, é melhor manter um olhinho no Diogo, que ele é rapaz para me desmaiar para cima das pobres criaturas. E se pelo caminho rachar a cabeça, ela vai ter de se ver comigo. Não é por nada, mas já passei pela experiência de estar com ele histérico, no hospital, rodeado de enfermeiras a segurarem-no enquanto cosiam a cabeça (do Vasco, não dele). E não foi agradável. Fora isso, parece ser uma excelente disciplina, ele está a gostar muito.]

19h00 Prof. de Matemática
[Esta deve ser a mais difícil, dada a minha natural aversão ao bicho propriamente dito. Mas, pronto, mãe que é mãe dá o corpo às balas. E eu tenho mesmo de pedir à senhora que, por todos os santinhos, me poupe à humilhação diária de admitir que não percebo um boi daquilo, que sou tão estúpida que nem consigo saber por que ponta hei-de começar (ie, googlar), portanto, se quer mandar trabalhos de casa, faça lá o obséquio de explicar primeiro como é que aquilo se faz. Muito agradecida.]

19h20 Prof. de Francês
[Só para controlar a cena geral, dado que é a directora de turma. E para explicar que não deve ficar ofendida por ele não andar muito motivado. Mas o livro interessantíssimo que acabaram de analisar na aula, o rapaz já tinha lido… com oito anos… sozinho. Agora, se ela quiser enveredar pela ficção científica, pelo fantástico e pelo policial de autor, tem ali um amigo para a vida.]
 
Este era o plano de ataque inicial. Mas, em hora e meia, o mulherio trocou-me as voltas todas.

18h00 Prof. de Religião Católica
[O Diogo tem uma vasta cultura geral. É interessado e interessante. Muito educado, já lhe tinha explicado que era ateu mas que respeitava todos os credos. Vê-se que é um miúdo feliz, está sempre bem-disposto, não consegue parar quieto no lugar, tem sempre algo a acrescentar ao que a professora diz. E fala muito na mãe. (Ih, ih, ih… ó para mim a babar!) ]

18h10 Prof de Latim
[Sim, senhora, é verdade que ainda não atingiram a velocidade de cruzeiro, mas há miúdos que têm dificuldade em seguir a matéria. (O quê?!) Não é o caso do Diogo, o seu melhor aluno. E o Latim, no primeiro ano, é suposto ser apenas um complemento do Francês e ajudar a consolidar conceitos gramaticais. Mas o Diogo já percebeu o esquema todo gramatical das declinações e já traduz frases. Que estava muito contente por eu ter pedido para falar com ela, porque gostava de ter a minha autorização para lhe mandar trabalho suplementar. (Ih, ih, ih… agora é que vou brilhar!) ]

18h20 Prof. de Ciências
[Os caracóis são animais um bocado parados para o ritmo frenético do Diogo. Mas o que ela gosta do Diogo! Que o rapaz não consegue estar sossegado, quer acabar tudo o mais depressa possível e, às vezes, não responde tão bem como podia. Daí ter tido apenas 16/20. Mas o que ela gosta do Diogo! Que lamentava muito, porque vê-se que tem um conhecimento muito avançado sobre ciências. Mas o que ela gosta do Diogo! Que não tencionava dissecar ratos, talvez corações… se conseguir arranjá-los. Parece que é difícil. (A sério?!) Mas que não me preocupasse, que prometia manter o rapaz debaixo de olho. E o que ela gosta do Diogo? E das histórias que ele conta sobre o namorado da mãe que é oceanógrafo? (Ih, ih, ih… Como?!?! Sacana do puto, estou farta de lhe dizer para não contar a minha vida toda pá!) ]

Estive meia-hora perdida às voltas na escola. Desce escadas, sobe escadas, atravessa corredores desertos. E vai de tirar uma bolachinha das mesas com comida que estavam em cada esquina. Já percebi para onde vai o dinheiro da porcaria da factura… Desce escadas, sobe escadas. Entra por uma porta, sai por outra. Até que desisti e me atasquei a um marmanjo que estava numa mesa a servir as ditas bolachas e um líquido-supostamente-cor-de-café, e lhe pedi que me levasse, por amor de Deus, à sala G018 antes que eu tivesse uma congestão com tanta bolacha enfardada no percurso.

19h00 Prof. de Matemática
[É verdade que o estudo da Matemática mudou muito desde o nosso tempo. (Não sou assim tão velha, o problema é a Matemática) Mas que está tudo explicado no livro: noções teóricas, exercícios, soluções. Que basta seguir o que lá está e vou perceber tudo. (Que parte de “o problema é a Matemática” é que ela não percebeu?!) Que o Diogo é um miúdo aplicadíssimo, vê-se que estuda imenso em casa. (É exactamente isso que eu gostaria de evitar) Que se fizer os exercícios extra que vêm no final de cada capítulo, que não há tempo para fazer nas aulas, poderá facilmente ter um 18/20 no exame, no Natal. (Deixe lá isso, minha senhora. As notas não são o mais importante) Que devia aproveitar as férias para avançar na matéria do livro. Que se o namorado da mãe, que é oceanógrafo, o ajudar tanto nas férias como é costume, o Diogo vai entrar no 2º período com o pé direito (Hein?! Sacana do puto, vai entrar mas é com os dentinhos todos partidos, que eu já estou farta de o avisar que não tem nada que falar na minha vida!) ]

19h20 Prof. de Francês
[O Diogo adaptou-se muito bem à nova escola, é um miúdo muito bem-comportado, popular e engraçado. (E eu a pensar que o palhaço era o Vasco) Os professores gostam imenso dele. Parece impossível que só tenha começado a falar francês há um ano atrás, tem um domínio perfeito da língua. (Hum, hum… e fala que se farta, já sei) É melhor aluno a Francês que muitos colegas. Mas é um bocadinho apressado, despacha tudo a correr. Quer ser sempre o primeiro a acabar, para poder ficar a ler no tempo que resta. (Menos mal, é da maneira que não fala) De facto, não mostra grande interesse pelos livros que andam a analisar nas aulas, pelo que ela decidiu que era melhor deixá-lo apresentar um livro à sua escolha. (Deus queira que não seja o da Física Quântica…) ]
 
E, pronto, saí de lá com uma sensação estranha cá dentro, que não sei bem explicar. É uma sensação nova. Sempre senti orgulho no Diogo, sempre soube do que ele era capaz. Mesmo nos piores momentos. Passei anos a bater-me por ele, contra ventos e marés. Contra professores que me chegaram a dizer que desconfiavam que o Diogo tinha um atraso qualquer. Contra colegas que lhe batiam e não gostavam dele. Contra o próprio Diogo, que entrava no jogo armando-se em rufião e me obrigava a ir à escola todos os meses ouvir queixas. Mas este filho mudou. Não cresceu, porque isso é outra coisa. Crescer, nestas idades, implica passar a outro estádio do desenvolvimento. O Diogo mudou. Teve a coragem de deixar cair a máscara, de assumir a sua verdadeira personalidade. Quando viemos para a Bélgica, agarrou esta oportunidade de recomeçar do zero e ganhou confiança. O orgulho que sinto agora é também um orgulho diferente. Olho para o meu filho e começo a ver uma sombra do que ele será. E isso enche-me o peito de um orgulho novo.

De repente, lembro-me de um poema do Pessoa que o Diogo gosta muito: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena./Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor.” Valeu a pena, sim. Porque a alma do Diogo nunca foi pequena, a auto-estima é que era. Mas quem tem esta coragem para enfrentar a dor e ultrapassar-se, superar-se, tem certamente uma vida fantástica pela frente. E eu sinto que o meu coração de mãe pode começar finalmente a respirar. Isto agora vai...

 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Não digam nada a ninguém, mas nesta terra faz-se contrabando

(onde se explica a complexidade da separação do lixo)

 
Nunca perdi muito tempo a pensar na questão do lixo. Para mim, a coisa era simples: o papel no contentor azul, o vidro no verde e o plástico no amarelo. O resto ia para o contentor do lixo no fundo da rua, que era recolhido diariamente. Até ao dia em que vim para esta terra e percebi que é preciso tirar um curso para perceber o que se deve fazer com os detritos. Demorei séculos a entender como é que a coisa funcionava. E tive de rever toda a minha noção de “lixo”.

Em Malempré, não há contentores do lixo. Há dois caixotes que estão sempre a abarrotar e vidrões à porta do cemitério (desconfio que é para podermos despejar as garrafas de álcool discretamente, porque até prova em contrário os mortos não falam). Há uns tempos, uma dirigente da Câmara veio fazer uma consulta popular e andamos pela aldeia a identificar os pontos fracos. A cada esquina, lá vinha um velhote: “Aqui, ficava mesmo bem um banquinho… e um caixote do lixo.” Se a senhora aplicar todas as sugestões, daqui por uns tempos Malempré terá bancos e caixotes do lixo com fartura e viveremos todos muito mais felizes. Até lá, é um ver se te avias…
 
A recolha do lixo faz-se às quartas. E só podemos pôr o lixo na rua na quarta-feira de manhã. Quer dizer, podemos pôr antes, mas os sacos aparecem rasgados e o lixo todo espalhado, como se andassem ursos esfomeados a rondar a aldeia. Falo de ursos, porque comprei um caixote grande de plástico e os sacanas conseguem abrir a tampa sem o mandar ao chão. Resultado: o lixo guarda-se em casa. Nos sacos verdes biodegradáveis põem-se os detritos orgânicos. Nos pretos, o lixo doméstico. Como é que eu sei que os sacos verdes são mesmo biodegradáveis? Porque se desfazem todos antes de chegar à rua. E como é que a Câmara sabe que somos cumpridores e não metemos o lixo todo nos sacos pretos? Porque são transparentes e o nosso lixo está exposto aos olhos de quem passa, sem qualquer pudor.
 
A uns cinco quilómetros daqui, há um centro de reciclagem onde se deposita o lixo reciclável. A ideia é encher o carro com tralha e, uma vez por mês, ir lá despejá-la. Até podemos ir mais vezes e levar poucas coisas para reciclar, mas não nos põem um carimbo na caderneta. E toda a gente precisa de doze carimbos até ao final do ano para conseguir diminuir o imposto anual do tratamento do lixo. Ora isto é um sistema caótico para quem tem uma casa pequena, sem espaço para os sacos do lixo que têm de esperar por quarta-feira, mais o lixo reciclável que tem de esperar pelo final do mês. Já para não falar do mau cheiro.
 
A primeira vez que fomos ao centro de reciclagem parecia que tínhamos entrado noutro mundo. A reciclagem nesta terra é uma coisa complicadíssima, só ao alcance de espíritos iluminados ou gente nativa. Cada detrito tem um sítio específico onde deve ser colocado. E andam por lá uns senhores à paisana a controlar tudo. Há vidro branco e vidro colorido. Uma embalagem de shampoo não tem nada a ver com uma embalagem de detergente da loiça. As rolhas reciclam-se. E as tampas. O plástico sem elasticidade não é reciclável. As embalagens de iogurte também não. Mas as cuvettes de esferovite são. A madeira também. E as folhas. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa… e uma coisa não tem nada a ver com a outra. O truque é levar os miúdos para ajudar e, se fizerem disparate e ouvirmos um ralhete, é ralhar-lhes por cima com um ar de desilusão profunda por a progenitura ser incapaz de dividir o lixo reciclável. Ah… e mandar o Vasco com o seu olhar cândido pedir um carimbo.

E porque é que me lembrei agora do problema do lixo? É que entrámos na época do ano em que esta questão se torna particularmente complicada. Em Janeiro, a Junta distribui os sacos do lixo atribuídos a cada agregado familiar. Quando se acabam, é preciso comprar mais… a peso de ouro, mesmo. Portanto, quando o final do ano se aproxima e o stock de sacos está quase a acabar, a imaginação dos malempresianos atinge o seu auge. Vale tudo para não deitar dinheiro literalmente para o lixo.

A população arranjou um verdadeiro sistema de contrabando de lixo para fugir às autoridades. As pessoas que trabalham no Luxemburgo levam o lixo doméstico para o Luxemburgo e distribuem os sacos que têm a mais pelos vizinhos. Eu não tenho ninguém que me passe a fronteira com o lixo, mas ando sempre à cata de caixotes de lixo públicos para esvaziar o que trago escondido no carro. O problema é que deve haver mais pessoas com esta ideia peregrina e os caixotes do lixo públicos têm uma abertura minúscula tipo caixa do correio. Eis-me, portanto, em tudo quanto é espaço público, discretamente a espalmar o lixo muito bem espalmadinho e a empurrá-lo com toda a força lá para dentro.

O lixo biodegradável é distribuído pelos galinheiros da vizinhança sem cerimónias. Ou pelos coelhos da vizinhança, como é o meu caso. No outro dia, uma vizinha que tinha vindo beber café ficou muito escandalizada porque o Diogo despejou a serradura suja da gaiola do coelho no caixote preto. Segundo ela, a serradura vem da madeira, logo é biodegradável e pode perfeitamente voltar à natureza. De agora em diante, vou aproveitar os passeios nocturnos do Fuas para ir despejar serradura nos bosques. Não sei se não darei muito nas vistas com um saco de pai Natal às costas, mas a vizinhança já está habituada a este contrabando de lixo e não deve estranhar...
 

 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Halloween

(em Malempré, o Halloween festejou-se ordeiramente a 3 de Novembro)

 
Este ano, com a aldeia toda esburacada por causa das obras, decidimos festejar o Halloween no Domingo à tarde. Ah… e também porque a meteorologia anunciava uma trégua. Como eu não estava lá muito convencida, tive de arranjar uma solução alternativa à máscara de múmia: tapei a coisa pequena e a sua cadeira de rodas com uma manta branca, onde fiz uns buracos para os olhos e a boca. Ei-lo, portanto, mascarado de fantasma de cadeira de rodas! Foram enviados convites assustadores para a população estar preparada (ie, para não se pôr a andar e abastecer-se com doces).

Fazia um frio de rachar, estava um vento demoníaco e… chovia, chovia, chovia. Claro que isto não assustou minimamente a criançada, que apareceu em peso mascarada na sala de festas da aldeia, com uns pais pouco entusiasmados atrás. Nada de muito sofisticado, umas pinturas na cara, capas, cabeleiras, e boa disposição a rodos. Dividimos o grupo em dois: os pequeninos foram bater às portas na parte de cima de Malempré; os grandes foram às casas na parte de baixo, onde o risco de cair dentro de uma cratera era maior.

O Vasco, como não podia deixar de ser, quis ir no grupo dos grandes. Eis-nos, então, à chuva, a empurrar uma cadeira de rodas por caminhos de cabras para ir bater às portas. A miudagem estava bem ensinada: bate-se uma vez à porta e espera-se, grita-se “Bom-dia!” e agradece-se, haja doces ou não. E nada de gritar muito alto para não matar os velhotes todos da aldeia. Na verdade, são eles que acham mais piada ao desfile e que tinham os doces a postos. Nem sempre conseguíamos empurrar a coisa pequena até à porta, mas havia sempre algum miúdo que pedia também para o “fantasma deficiente na cadeira de rodas” ou que largava uns doces no balde do Vasco.

No final do desfile, voltámos a reunir-nos todos na sala de festas da aldeia. Enquanto as crianças comiam um lanche improvisado com o que os pais tinham trazido, os adultos faziam a divisão dos despojos. Sim, que em Malempré impera a democracia: os meninos despejaram os seus sacos em cima da mesa e nós dividimos irmãmente por todos… os dois adolescentes ostensivamente-não-mascarados-e-ligeiramente-atrás-do-cortejo também foram presenteados com sacos de doces que aceitaram envergonhados...

 

sábado, 2 de novembro de 2013

Dias de uma Princesa

(Porque há coisas que nos tocam o coração)


No início desta aventura, quando me pus a limpar a casa recém-alugada de uma ponta à outra, fui recuado, recuado, recuando… até dar por mim enfiada no vão da escada, à espera que tudo à minha volta secasse… paredes, janelas, chão. Junto a mim estavam os meus poucos pertences. Liguei o computador, só mesmo porque não tinha mais nada para fazer. O ícone da Internet acendeu! Hoje sei que foi pura sorte, o único sítio onde consigo apanhar a Net dos vizinhos é debaixo da escada (onde instalei obviamente a minha secretária). Sem nada de especial para fazer, pus-me a ler o único blog que seguia, graças às crónicas na “Pais & Filhos”: Cócó na Fralda. E, depois de ler os últimos posts, avancei para os blogs que a SMS lê. Assim, cheguei ao Dias de uma Princesa.

Hoje, não leio muitos blogs regularmente, mas percebi que há alguns que vale a pena seguir. Porque me aproximam de Portugal, porque falam de uma actualidade que embora longínqua me interessa, porque são escritos por amigos, porque me tocam o coração e falam de coisas que me dizem directamente respeito… é o caso do blog da Catarina. A Catarina escreve muito bem. É mãe solteira. Tem dois rapazes. E vive com pouco, das palavras que escreve. A Catarina também acredita que a vida se resolve sozinha, à medida que a vamos vivendo. Que ter tempo (para os nossos filhos, para nós, para os nossos amigos-e-família, para as nossas palavras) é ser rico. A Catarina, que eu não conheço pessoalmente, tornou-se numa “blogamiga” sem saber.

Por isso, quando um dia destes vi um post dela a namorar os livros de receitas da Nutella, pareceu-me natural mandar-lhe o nosso. Porque aquilo é coisa do Demo e é melhor mantermo-nos afastados. Porque sou apologista que os livros se devem usar e passar ao próximo. Porque já sabemos que receitas funcionam e o que mais gostamos. E vai daí mandei-lhe um email. Ela deu-me a morada e eu enviei-lhe o nosso livro já sujo e usado (a pensar que era um presente envenenado, mas enfim).

Na volta do correio, recebo o livro da Catarina, “Dias de uma Princesa”. E eu, que comecei a lê-la há relativamente pouco tempo, fiquei feliz por ter oportunidade de voltar ao início. Já recebi o livro há dias, mas tenho andado a namorá-lo… leio um bocadinho e páro. Leio mais um bocadinho e volto a parar. E isto tem-me dado um gozo enorme. Fiquei a conhecer melhor a Catarina, que é um doce (mas isso eu já sabia). E voltei a ler na minha língua. Sim, porque uma coisa é ler os posts dos amigos no facebook, trocar emails com a família, ler edições online de jornais, ir espreitando os meus blogs de eleição… outra coisa, é ter um livro em português. Pronto, admito que deve ser coisa de emigra. Eu tenho uma família adorável, mas não há ninguém que me mande chouriças, nem alheiras, nem farinheiras, nem queijos de cabra, nem travesseiros de Sintra ou pastéis de nata de Belém. Ou livros em português. Isto dito assim, fica um bocado estranho, mas são as coisas de que tenho mais saudades. E a Catarina (afinal este post é sobre ela) é pessoa para perceber perfeitamente a minha gula e não se ofender.

[Resta dizer que a resposta ao “Mas-afinal-quem-és-tu, pessoa-estranha-que-me-lê-nesse-fim-de-mundo-e-me-quer-engordar-com-tentações-demoníacas-feitas-com-Nutella?!” originou o primeiro post do Amigo imaginário. Portanto, posso dizer que a Catarina é uma espécie de madrinha muito doce. E aqui fica o meu agradecimento sentido.]

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Sobre o amor

(dividido, partilhado, repartido, disperso…)



Nesta casa, há três pessoas apaixonadas (e um cão). O problema é que o objecto do nosso amor é só um. E vive a hora e meia daqui… de avião. São 1300 km de distância, mais coisa, menos coisa. Mas, agora, o nosso amor está cá. E nós estamos felizes... a lutar incessantemente por atenção.

Em apenas três dias, o Diogo já conseguiu mostrar o boletim da escola. E os mil e quinhentos testes que fez, um a um. Explicando, muito bem explicado, que aquele 17/20 podia perfeitamente ter sido um 18 se… se… Aprendeu a fazer a barba, quer dizer, o bigode (comigo a fazer uma triste figura aos gritinhos, cheia de medo que ele se cortasse todo). Fez muitas pesquisas na Net e aprendeu uma série de coisas novas sobre filmes, guerras, estrelas. Ajudou a fazer frango com curry e legumes chineses (ultra) picantes. E falou, falou, falou…

O Vasco teve direito a um passeio pelos bosques, porque mais ninguém teria coragem de se aventurar com a malfadada cadeira de rodas por aqueles caminhos lamacentos. Três dias depois ainda anda a largar caruma pela casa. Jogou “Estratégia” (e perdeu, que o meu amor é doce, mas não gosta de perder nem a feijões). Mostrou as recém-adquiridas habilidades na cadeira de rodas, ao pé coxinho, de muletas. Foi à sua loja de brinquedos favorita, no Luxemburgo, ver os brinquedos que gostaria de receber nos anos. E teve colo, muito colo.
 
Eu... eu faço um esforço tremendo para me lembrar que sou a pessoa adulta, que sou a mãe, que devo passar depois de toda a gente. Mas a verdade é que luto tanto como eles por uns instantes só meus. Quero mimo, quero beijos, quero colo. Quero todas as palavras doces que não ouço durante semanas a fio. Quero matar a distância  e as saudades com relatos minuciosos. Quero conversas de gente grande. Quero passear de mão dada. E mais mimo e mais beijos. Durante a noite, acordo muitas vezes para me certificar que ele está mesmo ali, que não estou a sonhar. E o meu amor, que tem uma paciência infinita, abre os braços para eu me aninhar e voltar a adormecer.

Durante uns dias, além da atenção individual e do amor que cada um de nós recebe, temos a sensação de terem chegado reforços. Eu sinto que posso finalmente descansar, o corpo e a alma. A casa é varrida, a roupa estendida, as compras feitas, as refeições preparadas, a mesa posta, a loiça lavada, o cão passeado, os trabalhos de casa feitos. E, no meio de tudo isto, há passeios, aventuras, experiências, histórias. Nós andamos mais felizes, num rodopio de actividades em que cada um tem o seu lugar.

Ninguém diria pelo seu sorriso triste quando parte, mas o meu amor, que se divide em três (mais o cão), deve acabar as férias absolutamente esgotado.