(onde se percebe que crescer para o Vasco
sempre foi uma coisa estranha)
Comecei
a desconfiar que eras especial, ainda estavas tu na minha barriga. Pequena
criatura estranha e assustadiça, que só reagia à voz do irmão. Quiseste nascer depressa, numa noite de tempestade. Mas o teu
coração parou. Nasceste roxo, sem chorar. Os minutos eternizaram-se. Quando
finalmente começaste a chorar, nunca mais te calaste. Durante 6 meses ininterruptos.
Não
se podia olhar para ti, falar-te e tocar-te ao mesmo tempo que te desregulavas
todo. Parecias um animal selvagem. Primeiro, aproximava-me de mansinho.
Punha-te uma mão na barriga docemente. Falava contigo baixinho. Depois podia
pegar-te, com mil cuidados. E só quando te sentisses confortável e em segurança,
é que te podia olhar nos olhos. Procurei muitas vezes o teu olhar, em vão.
Tentei acalmar choros e birras e fúrias, em vão. Passei horas a tentar
adormecer-te, em vão.
Aprendeste
depressa a manipular-me. Quando te enervavas, deixavas de respirar. Durante
muito tempo. E eu aprendi a evitar que te enervasses. Às vezes resultava,
outras não. Um dia, quando estavas hospitalizado na Estefânia – aí, sim, com um
grave problema respiratório – fizeste-me um sorriso rasgado… todo tu eras
tubos, agulhas, máquinas e apitos. Percebi que tínhamos ali um guerreiro.
Aos
7 meses e meio disseste-me “Olá!”. Senti que o pior já tinha passado. No dia em
que, sozinho, te puseste em pé pela primeira vez, começaste a tentar andar.
Caías, levantavas-te, caías, levantavas-te. Passaste a ter a testa sempre
negra. Aos 12 meses corrias a casa. O Miró, o nosso dálmata que morreu pouco
depois, acompanhava-te de perto, ainda mais assustado que eu.
A
partir do momento em que descobriste a liberdade, começaste a testá-la:
atiravas-te do berço abaixo e descias as escadas do quintal de cabeça. Estavas
sempre a tentar largar a minha mão para fugir. Perdi-te muitas vezes em sítios
públicos porque te tornaste um especialista da fuga. Minutos de puro terror.
Até que uma vez, já tu tinhas quatro anos, além de te perder, perdi também a
cabeça. E quando te encontrei, a andar calmamente de mão dada com uma
desconhecida, dei-te as primeiras palmadas da tua vida e avisei-te que nunca
mais voltavas a fugir. Aguentaste uns meses.
Entraste
para a escola pouco antes de fazeres dois anos. Passaste as primeiras semanas a
chorar a um canto, de braços esticados para ninguém te conseguir tocar. Cá
fora, do outro lado da estrada, eu conseguia ouvir-te: “A minha mãe… a minha
mãe… a minha mãe…”. E ficava a fazer tempo para te ir buscar, dentro do carro,
a chorar também.
Quando
fizeste dois anos, passámos o dia no Jardim Zoológico. Sempre gostaste de
animais. No aquário das focas, engraçaste com uma foca. Passaste a barreira e
ficaste colado ao vidro. Começaram a brincar. Corrias para um lado e ela
seguia-te. Corrias para o outro e ela ia atrás. Estiveram muito tempo nisto. E
eu pensei que aquilo devia ser a felicidade.
Até
começares a tocar violino, nunca brincaste com um brinquedo. Nem com legos,
carrinhos ou bonecos. Nunca quiseste ver um desenho animado ou ler um livro. As
únicas prendas que apreciavas eram coisas que fizessem barulho, instrumentos
musicais, microfones e DVD’s da Mariza. E do Sérgio Godinho. Sabias as músicas
de cor. Conhecias cada gesto. Mal chegavas da escola, corrias para o DVD.
Aos
dois anos e meio, decretaste que querias aprender a tocar violoncelo, graças ao Jaques
Morelenbaum. O instrumento mais pequeno era maior do que tu. Convenci-te a
mudar para o violino. Foste à primeira aula de chucha na boca e ó-ó na mão. Tinhas
acabado de largar as fraldas. Adoravas a tua primeira professora. Hoje, três violinos e quase cinco anos depois, continuas a tocar. De vez em quando, ainda dizes
que também queres aprender violoncelo. E eu sei que é só uma questão de tempo.
Quando
tinhas três anos, tentei mais uma vez fugir à tradução e comecei a trabalhar
fora de casa. Foram os piores seis meses da nossa vida. Chorávamos os dois com
saudades um do outro. Quando finalmente desisti, passaste semanas aflito atrás
de mim. Seguias-me para todo o lado como um patinho e entravas em pânico quando
ia tomar banho. Volta e meia, abrias a cortina do duche e espreitavas… “A mãe
está aqui, Vasco”, dizia-te eu para te acalmar. “Eu sei”, respondias. Sabias,
mas não tinhas a certeza.
Foi
mais ou menos por essa altura que tiveste uma paixão assolapada pelas princesas
da Disney. Passeavas-te na rua de tiara cor-de-rosa na cabeça, ignorando risos
e gozos. Trocaste a Mariza pela Pequena Sereia. O teu amor pelo cor-de-rosa e o
tule ainda durou uns meses para desespero familiar. Eu sempre achei que devias
ser quem eras. Sempre soubeste ser fiel a ti mesmo, contra tudo e todos.
Mal
fizeste quatro anos, decidiste que estava na hora de passar para a piscina dos
grandes, apesar de ainda não teres pé. Fiquei muito triste. Desde bebé que
íamos juntos às aulas de natação e eu não estava preparada para te ver
continuar sozinho. Mas tu sempre foste muito independente. Quando entraste para
a sala dos quatro anos, os meninos levantaram-se todos para te aplaudir.
Parecias uma estrela! Foi a primeira vez que tive um vislumbre do meu palhaço
do circo. Às vezes, escapavas-te da tua sala para ir dar uma volta pela
quinta pedagógica e ver os bichos. Adoravas trabalhar na terra e espalhar
pozinhos de perlimpimpim para fazer as sementes crescer.
Aos
cinco anos a tua vida desabou, sem que nada o fizesse prever. E tudo mudou.
Deixámos o nosso país, família e amigos. E mudámo-nos 2500 km para Norte. Só
nós, os três da vida airada. Tornámo-nos ainda mais unidos. Um dia depois de
chegares à Bélgica, começaste as aulas na escola primária de Malempré. Não
sabias dizer uma palavra, não conhecias ninguém. Agarraste-te ao teu irmão, não
para fazer dele escudo protector… mas para o defenderes dos outros miúdos, da
vida, das dificuldades. A única vez que bateste num colega foi para defender o
teu irmão, que adoras.
Aos
seis anos deixaste de ser o menino mais novo na sala e a professora deixou de
andar contigo atrelado pela mão para conseguir dar aulas. Tens de fazer contas
mais depressa e já ninguém te desculpa a letra imperceptível. Começaste a ter
aulas de solfejo, numa turma com meninos muito mais crescidos do que tu, e levas
a professora ao desespero. Mas cantas como um rouxinol. As aulas de violino já não requerem a minha presença e duram uma hora. Sais de lá estafado.
Fazes um esforço imenso para pôr esses dedos miudinhos no sítio certo à
velocidade que agora te é exigida. Ao mesmo tempo que lês a pauta, porque o
professor já não te deixa aprender as músicas de cor. Este ano é a valer, não há
margem para brincadeiras, e está a custar-te crescer.
Olhas
para o teu irmão e procuras em ti os mesmos sinais de crescimento. Se te
obrigam a crescer tanto, porque continuas com pouco mais de um metro? Se as
dores de crescimento são tão grandes, porque não podes barbear-te e pôr
desodorizante? Segue-lo para todo o lado, queres imitar brincadeiras,
conversas, jogos. Queres dar longos passeios a cavalo como ele. E galopar. Fazes
perguntas sobre os amigos. Pedes-lhe que repita as piadas que dizem.
Anseias pela mesma liberdade. E pela conta do facebook, o telemóvel e o iPod.
Hoje fazes sete anos e eu pergunto-me como é possível. Crescer
é uma coisa estranha, Vasco. Não tenhas pressa. Não te deixes apanhar pelo fato
e gravata. E os sapatos engraxados. Não te tranques num escritório. Não vivas
das 9h às 17h. Não percas a emoção e a alegria que pões em tudo o que fazes. Nunca
deixes de te sentar nas escadas da igreja, alheado do frio e das pessoas que te
rodeiam, a ouvir os sinos tocar. E se ainda te apetecer chorar, não faz mal. Os homens a sério também choram.
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