sábado, 30 de janeiro de 2016

Toxicidade

(onde se mostra que a informação que colhemos aqui a ali, como leigos, acaba por ser confirmada)



O meu sogro foi fazer exames de rotina no gastroenterologista e, apesar de vender saúde, saiu de lá bastante incomodado. A consulta durou uma hora e meia. Enfim, foi mais uma conversa entre colegas do que uma consulta propriamente dita. É que as notícias são assustadoras. Uma coisa é lermos um ou outro artigo, nada de muito científico, talvez a pender mesmo para o alarmista, outra coisa é ouvirmos um especialista falar de factos, números, estatísticas. Se, há uns tempos atrás, o flagelo da alimentação nos países do primeiro mundo era a obesidade crescente da população, hoje em dia é a toxicidade comprovada dos alimentos que ingerimos. E isto é angustiante, porque não há muito que possamos fazer.
Segundo este gastroenterologista, a ideia de que a casca da fruta contém muitos nutrientes tem de ser completamente posta de lado. Hoje em dia, as árvores são pulverizadas com todo o tipo de pesticidas nocivos mal dão flor e durante todo o processo de amadurecimento da fruta. Para não ser prejudicial à saúde, quando comemos uma simples maçã, devíamos lavá-la bem e, depois, descascá-la, tirando cerca de um centímetro a toda a volta. Mesmo as embalagens onde são acondicionadas nos supermercados contêm, por vezes, conservantes. Quem diz uma maçã, diz uma pêra e assim sucessivamente. O mesmo se passa com as uvas… logo, com o vinho que ingerimos. As toxinas que as uvas contêm, devido aos pesticidas com que a vinha é tratada, mantêm-se intactas durante todo o processo de fabrico do vinho. Aquela máxima de que um (dois, três…) copo de vinho tinto às refeições faz bem tem de ser eliminada, pois já está comprovada a sua influência no aumento de casos de cancro. Ou seja, não só devíamos passar a comer fruta biológica, como também a consumir vinho biológico. Exclusivamente.
No que diz respeito à carne, são de facto de banir as charcutarias e carnes processadas devido à sua toxicidade que comprovadamente provoca o cancro colon-rectal, do pâncreas e da próstata. Uma embalagem de fiambre há uns anos atrás durava três ou quatro dias aberta no frigorífico. Hoje, dura mais de uma semana sem se estragar porque está carregada de nitratos. As carnes vermelhas são igualmente cancerígenas, devido ao processo de alimentação dos próprios animais e aos produtos com que a carne é posteriormente tratada para manter a cor característica da carne vermelha (nomeadamente o ferro hematínico). Ao que parece, as aves eliminam mais facilmente do organismo as toxinas do que os mamíferos. Portanto, o ideal seria comer carnes brancas de animais criados ao ar livre, em quintas biológicas.
O que mais me chocou, no entanto, foram os malefícios do peixe, alimento que sempre foi promovido como sendo muito mais saudável do que a carne. Acontece que, neste momento, a situação inverteu-se por completo. É extremamente difícil rastrear a proveniência do peixe. Os nossos oceanos e mares estão completamente contaminados, fazendo com que o peixe contenha altas concentrações de metais pesados que se vão propagando na cadeia alimentar. E aqui…não há bio que nos valha, infelizmente. Nem a aquacultura, contrariamente ao que poderíamos pensar. Os peixes criados em cativeiro, especificamente para consumo, são consideravelmente mais sensíveis e propensos a apanhar todo o tipo de doenças. Para compensar essa fragilidade, são-lhes muitas vezes administrados antibióticos profilacticamente. Isto não foi o gastroenterologista que explicou, foi o oceanógrafo cá de casa. O melhor a fazer é dar preferência aos peixes mais pequenos, pois os maiores alimentam-se do resto da cadeia alimentar, contendo por isso um nível de toxicidade bastante mais elevado.
As opiniões do gastroenterologista do meu sogro valem o que valem, mas eu fiquei a pensar nisto, porque não diferem muito do que ando a ler ultimamente. Podemos evitar a obesidade dos nossos filhos, mas não conseguimos eliminar a toxicidade dos alimentos que lhes damos. Não podemos prevenir tudo, é certo.  E eu sinto-me mal comigo mesma se não fizer o máximo que está ao meu alcance para dar a alimentação mais saudável que conseguir aos meus filhos, que têm uma vida pela frente. Segundo parece, a única coisa que seguramente faz diferença é variar ao máximo a nossa alimentação, de modo a minimizar os possíveis malefícios de um dado alimento, seja lá ele qual for. E passar a consumir preferencialmente produtos biológicos, que são substancialmente mais caros. Ainda não sei muito bem onde irei cortar para poder oferecer este tipo de alimentação aos rapazes, mas está fora de questão não o fazer.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Espaço de segurança

(onde se mostra que se pode sempre aprender a dormir)




Hoje acordei a meio da noite, como acordo por vezes. Cada vez menos. Reaprender a dormir tem sido uma luta para mim, nos últimos anos. Fiz progressos de que me sinto orgulhosa. Deixei de ter pesadelos. Já consigo dormir uma noite inteira. Uma noite inteira de 8 horas… efectivamente nocturnas. Deixei de dormir aos bocadinhos, ao longo do dia. Os meus olhos já não se fecham automaticamente, sempre que paro e me encosto em qualquer lado. Agora tenho uma rotina, com horas fixas, para me deitar. Acompanhada. Acho que este era o maior problema da equação: sempre detestei dormir acompanhada, precisava do meu espaço de segurança. Depois, havia outros. A minha propensão para ser noctívaga. Os horários e exigências do trabalho meio doido de uma tradutora freelancer.
Hesitei muito antes de aceitar voltar a este mundo da tradução e legendagem. Já me tinham feito outras propostas, que fui sempre driblando. Tinha um medo louco de voltar a cair nos mesmos velhos maus hábitos. Custou-me muito a chegar aqui. Mas estava injustamente a subestimar a influência que o meu amor teve nesta reaprendizagem. Porque eu gosto de dormir com ele. Agarrada a ele. Aninhada nele. O meu amor é agora o meu espaço de segurança. E, de qualquer modo, ele não se vai deitar sem mim. Se estico o horário mais um pouco noite dentro, ele deita-se no sofá à minha espera. Não me diz nada, não me apressa, não me stressa. Mas fica ali a dormitar, calmamente à minha espera. E eu apago logo o computador. Há rotinas que fazem de nós o casal que somos. Que gostamos de ser. E os nossos dias acabam sempre da mesma maneira: a conversar baixinho, nos braços um do outro. Há um lugar no peito dele onde a minha cabeça encaixa na perfeição. E uma curva na minha cintura onde a mão dele se aninha. O silêncio instala-se devagarinho. Adormeço sempre embalada pelo bater do coração dele. Mesmo nos dias em que discutimos e estamos zangados. O meu amor nunca se deita sem mim e eu nunca adormeço longe do coração dele.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

OMS, comida saudável e outras paranoias

(onde se mostra o que se faz no Domingo à tarde)


 
Aquele relatório que a OMS fez há uns meses, onde alertava para o facto de a carne processada, os enchidos, as salsichas e o bacon serem cancerígenos, deixou-me bastante preocupada. Admito que sou excessivamente exigente com a alimentação dos rapazes. Como expliquei neste post, na Bélgica, os almoços são basicamente constituídos por sandes, sopa e fruta. O que nunca me incomodou, embora saiba que faz confusão a muita gente nesse país à beira mar plantado, que insiste em consumir hidratos, lípidos e proteínas em excesso porque o correcto é comer “duas refeições quentes por dia de faca e garfo”. Ora eu acho muito mais saudável comer sopa e fruta da época à discrição (que a escola oferece por 40 cêntimos/dia), mais uma sandes mista em pão integral e um ovo cozido, por exemplo. No caso do meu filho Diogo, que também põe vegetais e um fio de azeite nas sandes, porque detesta manteiga, acho mesmo fantástico. Só que, agora, parece que as charcutarias devem ser eliminadas da nossa alimentação. Lá se vai o fiambre de frango com ervas aromáticas e o peito de peru fumado que os meus filhos comiam praticamente todos os dias…
Além desta nova problemática, quando se come pão ao pequeno-almoço e ao almoço, parece excessivo comer novamente pão ao lanche (seja o da manhã ou o da tarde). Os belgas resolveram isto criando toda uma indústria de bolinhos e bolachas embalados individualmente para levar para a escola, que nós a dada altura decidimos em conjunto evitar, nomeadamente devido ao excesso de açúcar. Tendo em conta que nesta casa não entram refrigerantes, nem alimentos processados tipo pão de forma, pães-de-leite, croissants ou Bollycaos, a escolha dos lanches para levar para a escola fica drasticamente reduzida. Já para não falar de chocolates género Twix ou Mars, que evidentemente nunca compro. Se juntarmos a isso, o facto de o Vasco não comer iogurtes e de o Diogo só beber leite de soja de baunilha, temos um verdadeiro quebra-cabeças montado.
Como mostrei na altura, resolvi o problema dos lanches para levar para a escola começando a cozinhar eu mesma tudo, reduzindo ou substituindo o açúcar por outras formas naturais de adoçante. Há muitos meses que os meus Domingos à tarde são passados a fazer barras de cereais, queques de legumes, tartes, bolos, muffins… a imaginação é o limite. Sinceramente, já faz parte da rotina dos fins-de-semana e não custa muito. Aproveito também para fazer uma panela grande de sopa e um ou dois jantares da semana. Depois do alerta da OMS, passei também a inventar almoços alternativos. Aqui ficam alguns, para dar ideias a outras mães ligeiramente paranoicas que não tenham cantina na escola dos filhos.
[ salada de grão com abóbora no forno ]
 
  [ as noodles são invariavelmente os almoços às 4as, quando saem... às 11h50! ]
 
  [ muffins de legumes ]

  [ coucous de peixe com legumes ]

  [ hamburguer vegetariano]

 [ neste dia houve festa porque só havia pizza marguerita! ]
 
  [ delícias do mar e figos ]

  [ o substituto das charcutarias para pôr no pão favorito do Diogo: húmus ]
  
No outro dia, pediram-me a receita dos muffins de legumes. É muito simples… faço com o que houver no frigorífico.
  [ cebola, tomate, milho, cenoura, pimentos e salsa]

  [ queijo ralado e batata-palha que tinha sobrado do bacalhau à brás da véspera ]

  [ ovo batido, leite, azeite, farinha, fermento e especiarias ]

  [ 15 minutos no forno... et voilà! ]


E mais uns quantos lanches saudáveis...
  [ bolo de cenoura com noz ]

  [ bolo de amora... em Setembro foi tudo feito à base das amoras que o quintal deu! ]

  [ muffins de chocolate e avelãs ]

  [ muffins de caramelo ]

  [ tarte de lima-limão ]

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Está vivo e recomenda-se!

(onde se mostra a última fotografia do mais novo da casa)


 
Já lá vão duas semanas e a pequena criatura mantém-se milagrosamente viva. Os pais dão-lhe tanta comida que, às vezes, fica com o papo literalmente cheio. Depois, passa horas a remoer aquilo tudo, tipo vaca. Continua depenado, mas já abriu os olhitos. Faz um barulho desgraçado todo o santo dia, parece um pato fanhoso. Ninguém diria que aquele som provém de um ser minúsculo. A beleza é coisa que não lhe assiste, definitivamente. Foi por estas duas razões que decidi chamar-lhe Patinho Feio. Ei-lo em todo o seu esplendor...
 
 
[ Sim, a caixa está um autêntico nojo. Não foi limpa desde o “choco”, com receio de perturbar o bom andamento da coisa. ]

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

O filho único

(onde se mostra que é melhor ajustar as expectativas à nossa realidade)

 
Os nossos mandarins andam há longos meses a tentar ser pais. O problema é que as competências parentais são basicamente nulas. No entanto, tentam compensar o que lhes falta com persistência e motivação a rodos.
Mal a fêmea começou a pôr ovos no comedouro, comprei um ninho. Transferimos cuidadosamente os ovos, mas ela deve ter achado melhor não arriscar e… comeu-os. Semanas depois, já tinham o ninho cheio de ovos outra vez. Os dois mandarins revezavam-se a chocá-los, embora a fêmea passasse bastante mais tempo a servir de chocadeira. Passado um mês, desistiram. Não havia meio de nascer o que quer que fosse. Andávamos nós a pensar o que fazer com o diabo dos ovos, quando eles decidiram por nós e… voltaram a comê-los.
Uns tempos depois, já o ninho estava novamente com ovos. Desta vez, nasceram dois mandarins que continuaram a dividir o ninho com o irmãos-ovos. O Diogo conseguiu assistir emocionado ao nascimento. Comprámos uma alpista especial para passarinhos bebés e uns fios artificiais para encher o ninho. Os desgraçados dos bichos eram horrorosos, mas lá iam crescendo. Até que a mãe decidiu mandar um deles para fora do ninho, matando-o. Além de ter comido os ovos que restavam. Dias depois, cansou-se de ser chocadeira e abandonou o único passarinho que restava no ninho. O mini-alien morreu gordinho, despenado e completamente enregelado nas mãos do meu amor. Fartei-me de chorar, feita parva. E decidi tirar o ninho da gaiola, antes que os mandarins morressem com uma crise de fígado de tanto ovo enfardarem. Infelizmente, a bicha voltou a pôr ovos no comedouro e tive de capitular. Mais uma vez, a passagem dos ovos para o ninho resultou num banquete.
Durante uns tempos, tivemos descanso. Quer dizer… a palavra exacta não deve ser bem esta. Quando não estão a chocar, os mandarins passam o dia a andar freneticamente de baloiço e a fazer um barulho medonho. Cheguei a pensar que os bichos tinham desistido definitivamente de ser pais com a chegada do Inverno. Até que voltou a aparecer um ovo no ninho. Um único ovo minúsculo. Contrariamente ao que é habitual, a fêmea decidiu começar de imediato a chocá-lo, sem pôr mais ovos. Os dias passavam e o ovo lá continuava. O bicho nasceu durante a noite. Em pleno inverno, com temperaturas de -17º. Numa sala que não é aquecida durante a semana, porque só a usamos à hora de jantar, quando o calorzinho da cozinha já se propagou. Desta vez, o macho passa tanto tempo a chocar como a fêmea. O mini-alien rosado já tem penas nas costas. Ainda não abre os olhos. As asas começaram a crescer. É bom que cresçam bastante, que está gordo que nem um peru. Passa o dia de bico aberto, a piar como se estivesse a asfixiar. Suponho que não deve ser fácil ter sempre um dos pais repimpado em cima dele. Faz hoje dez dias. Suponho que já posso dar os meus parabéns aos malfadados pais. Nisto da parentalidade (e suponho que na vida também) tudo se consegue por tentativa e erro. Hum… e por ajustar as nossas expectativas, claro. Os mandarins lá acabaram por compreender que o melhor era limitarem-se ao filho único e desistirem da ideia da prole numerosa.



 
 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

De cortar a respiração

(porque há mães que merecem um bilhete só de ida para as Ardenas)



Ontem, queixava-me à minha mãe do frio invernal que se faz sentir por aqui. Afinal é para isso que as mães servem, tenhamos nós 9, 14 ou 39 anos. Se há alguém que não se cansa de ouvir as nossas queixas e que consegue ser empático perante o nosso infortúnio são as mães. Bom, quase todas as mães… Contei-lhe que isto está que não se pode, que estamos todos a morrer de frio, que à noite já estiveram -17º (frisei bem o -, não fosse ela não perceber), que tivemos de trazer o Peanuts para dentro de casa porque a água do bebedouro e a comida dele tinham congelado, que agora tenho de raspar o carro todas as manhãs por fora e por dentro, tal é a atmosfera gelada provocada pela água toda que trazemos da rua, que Diogo nem tem tido aulas de órgão porque o aquecedor da igreja já não consegue manter a temperatura ambiente, que o Vasco chega da escola com as botas da neve completamente empapadas por dentro (aproveitei para explicar o que eram exactamente “botas de neve”)… Nada! A D. Fernanda limitou-se a retorquir que, lá para os lados dela, também está muito frio: uns 4º de manhã e 15º à tarde. E que, com tanta neve, o cenário por aqui devia ser idílico… umas paisagens lindas de se cortar a respiração, não? É verdade, sim, senhora. É tudo muito bonito. Mesmo de cortar a respiração (de frio).

De maneira que aqui ficam mais umas imagens lindas de morrer (de frio), especialmente dedicadas à senhora minha mãe, que a esta hora está a bater o dente, lá para os lados de Cascais.


 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

E, no dia seguinte, onde é que eles foram?!

(onde se apresenta a grande pista de esqui da Baraque de Fraiture)


 

No dia seguinte à viagem infernal, os homens da casa decidiram ir aproveitar as maravilhas do Inverno nas Ardenas e… foram esquiar, pois claro. Estava sol e um frio de rachar. Eu – infelizmenteeeee – não pude ir, porque tinha trabalho urgente. Tradutor sofre! :D
Parece que o Diogo não se esqueceu de nada do que aprendeu na Classe de Neige, há uns anos atrás. Fez-se à pista que foi uma beleza, deixando os outros dois desgraçados para trás. O meu amor passou a tarde inteira a tentar ensinar o Vasco a esquiar, com a paciência de santo que se lhe conhece. O problema é que a coisa pequena herdou o jeitinho da mãe… Caiu e levantou-se vezes sem conta, sempre com a motivação em alta e um sorriso na cara. Coordenação motora é que nem vê-la. Quando finalmente chegaram ao sopé da montanha, o meu amor temeu nunca mais conseguir voltar ao topo. O Vasco mostrou-se absolutamente incapaz de se encaixar (ele, os skis, os bastões e a descoordenação motora) no teleféricozinho que empurra as pessoas pelo rabo. Em desespero de causa, o funcionário disse ao meu amor para subir com o miúdo agarrado à frente. Deve ter sido uma cena engraçada de se ver: o meu amor agarrado ao teleférico, aos bastões e ao Vasco (com os seus skis, bastões e descoordenação motora). Quase fiquei com pena de não ter ido esquiar com eles. (Nááá... é mentira, não fiquei nada!)
Passadas umas horas, o Diogo teve pena do meu amor e substituiu-o um bocadinho para ele poder ir esquiar sozinho. A bondade adolescente durou exactamente uma descida e uma subida, sem que entretanto o Vasco tivesse feito grandes progressos. Desistiram ao cair da noite, com a promessa de voltarem noutro dia com o trenó. O filho pequeno é um especialista do trenó onde, como toda a gente sabe, metade da diversão consiste exactamente em cair no meio da neve. Às vezes, mais vale dedicarmo-nos ao que de melhor sabemos fazer...












 

sábado, 16 de janeiro de 2016

Karma lixado ou lei de Murphy

(onde se vai a medo e se volta apavorado)


Há nove meses atrás, marquei uma consulta de rotina de oftalmologia para os rapazes, no Hospital de Marche-en-Fammene. As consultas desta especialidade são marcadas com tanto tempo de antecedência, que nunca mais me lembrei. Felizmente, mandaram sms a avisar, mas já não fui a tempo de trocar as minhas folgas. Nada de muito grave, desde que o meu chefe se despediu, ando em modo de auto-gestão. Desde que o trabalho apareça feito, ninguém se importa. Contudo, anteontem, recebo um telefonema de Bruxelas a dizer que uma das administradoras queria passar na 6ª feira para discutir uns assuntos comigo. No dia que eu precisava de faltar, obviamente. A semana tem sete dias, mas tem sempre de calhar tudo ao mesmo tempo. Nem sequer sabia bem com quem estava a falar. Há tanta gente na sede da associação, em Bruxelas, que os diferentes nomes, caras e funções ainda são um bocadinho vagos. O meu interlocutor, sentindo-me hesitar, perguntou-me se estava com medo de não conseguir chegar ao trabalho, por causa da neve que estavam a anunciar. Decidi aproveitar a deixa. Respondi que achava mais seguro ficar a trabalhar em casa nesse dia, pois previam uma verdadeira tempestade de neve nas Ardenas.
No dia seguinte, achei melhor não arriscar e saímos de casa com bastante tempo de antecedência. Mas o karma é uma coisa lixada. Esperava-nos a tempestade do ano. A neve que tardava em chegar este Inverno, decidiu vir por inteiro no mesmo dia. Demorei meia-hora a fazer um trajecto de dez minutos, até à Baraque de Fraiture, o ponto culminante aqui do burgo. O pouco trânsito que circulava andava a passo de caracol, no meio de um nevão terrível. A visibilidade era nula. Via-se que os limpa-neves tinham passado, mas as estradas enchiam-se de neve a uma velocidade assustadora. Nessa altura comecei a ficar com medo, o carro fugia e avançava com bastante dificuldade. Pedi ao Diogo para ligar para o hospital a dizer que íamos chegar muito atrasados. Responderam-lhe que o médico se ia embora às 11h, que nem valia a pena irmos. Que teria de marcar nova consulta… mas, agora, só lá para Julho. Aproveitei mais uma paragem e liguei eu. Inflexível, garanti que chegaríamos às 11h, que não deixassem o médico sair, que se ele quisesse só precisava de ver o Vasco. Foi-lhe diagnosticada uma ligeira miopia, que me tinham dito para seguir atentamente. Diogo ria e abanava a cabeça, a dizer que eu não aceitava um não como resposta. O Vasco lia, como sempre, alheado da complicação em que estávamos metidos.
Passado o ponto mais elevado das nossas Ardenas, o caminho tornou-se mais fácil e consegui recuperar algum tempo perdido. Decidi que era melhor fazer um ligeiro desvio para ir pelo meio das aldeolas, onde os tractores fazem as vezes de limpa-neves. O Diogo continuava bem-disposto. Que adorava a neve. Que a paisagem era maravilhosa. Que já tinha saudades daquele tempo. O Vasco lia. Eu começava a pensar como diabo ia conseguir fazer o trecho de estrada que atravessa a floresta para chegar a Marche. Fi-lo com dificuldade e a duras penas. Felicitei-me diversas vezes pela compra dos quatro pneus-neve que me arruinou por completo o mês. O Diogo deixou de rir, o Vasco deixou de ler. Para os distrair, disse ao Diogo para abrir as janelas para fotografar a paisagem. Nesta altura do campeonato, já eu tinha despido as camadas de roupa extra que levava. Os nervos dão-me para ter calor. Os miúdos insistiram para ouvirmos música clássica que, verdade seja dita, também já me estava a começar a dar cabo dos nervos. Mas não se conseguia apanhar a radio. Nem GPS, dando-me a sensação de estarmos perdidos do resto do universo. Afastei os medos, concentrando-me em conduzir em segurança.
Chegámos ao hospital às 11h em ponto. Toda eu tremia. Fiz-me anunciar na recepção, passando à má-fila (para desespero do adolescente envergonhado). O médico tinha esperado por nós e até aceitou ver os dois miúdos. A consulta durou uns míseros dez minutos. A hipermetropia de infância do Diogo está completamente curada; o Vasco já não tem sombra de miopia. Como bons provincianos que somos, aproveitámos ter descido à cidade para fazer umas compras. O Carrefour de Marche tem sempre peixe fresco em promoção, o que é uma raridade neste país. Começou a nevar. O Diogo avisou que, afinal, estava farto da neve. Que aquilo também já era demais. Comemos qualquer coisa à pressa e voltámos a meter-nos no carro, pouco passava das 14h. Não me queria arriscar a fazer aquele caminho de volta ao anoitecer. Se em Marche já estava a nevar, não queria pensar como estaria lá para os nossos lados…
As minhas suspeitas foram confirmadas pela radio, que felizmente já estava a funcionar. Tinha sido decretado estado de emergência, devido à tempestade. Havia várias províncias sem electricidade, nem transportes. Havia quilómetros de trânsito. Demorámos quase uma hora a sair de Marche, mas estava fora de questão fazer o caminho contrário por La Roche, cheio de curvas e contracurvas apertadas sempre a subir. Ainda pensei meter-me na auto-estrada rumo a Liège e, depois, voltar até à Baraque. Ainda bem que não o fiz, pouco depois ouvimos que o trânsito estava completamente parado nas auto-estradas, onde havia vários camiões atravessados. Quando começou a anoitecer, entrei em pânico. Valeu-me o meu amor, que já estava em casa e foi servindo de co-piloto. O Vasco continuava calmamente a ler. O Diogo começou a perceber que a situação estava muito complicada.
O troço que tínhamos de fazer pela floresta foi um verdadeiro suplício. Nas partes em que a copa das árvores fazia uma espécie de túneis naturais, o piso estava gelado e os pneus não aderiam bem. O carro estava constantemente a fugir. Nas partes mais desimpedidas, a neve acumulava-se e não deixava passar. Havia árvores caídas, nem sempre dava para me desviar. Uma vez passávamos por baixo do tronco, outra por cima. Havia vários ramos caídos no chão e, por vezes, soltavam-se grandes blocos de gelo do cimo das árvores. A única vantagem da neve é que reflete a luz e o dia tardava a anoitecer. Numa das longaaaas subidas comecei a falar com Twingo. O Vasco parou de ler, começou a dizer que na escola rezavam. O carro acabou mesmo por ficar atolado. Valeu-me o filho crescido e um polaco que não teve coragem de continuar a subida e parou para nos dar um empurrão (literalmente falando). Já no fim daquele caminho infernal, voltámos a ficar atolados. O filho grande teve mesmo de empurrar sozinho. E, depois, ainda teve de ir a correr até lá acima, porque não me arrisquei a parar para lhe dar boleia a meio da subida. Apesar de estafado e encarnado, vinha a rir. Afinal já gostava da neve outra vez. A paisagem voltou a ser magnífica e tudo e tudo, numa bipolaridade adolescente à qual já me habituei.
O caminho pelo meio das aldeolas voltou a ser feito tranquilamente. Quer dizer… tão tranquilamente quanto possível, tendo em conta a calamidade que nos rodeava. O único problema com que me deparei foi a quantidade de gente que decidiu sair à rua no meio do temporal. Grupos de pessoas, novos e velhos, que seguiam pela estrada, pois os passeios estavam cobertos de montanhas de neve. A neve que caía, a neve que os limpa-neves mandavam para cima dos passeios à sua passagem, a neve que as pessoas juntavam em montes ao limpar a entrada das casas…
Ao chegar a Manhay, avisei-os de que o caminho ia voltar a ficar mauzinho. Estávamos outra vez em altitude elevada. O Diogo perguntou porque raio tinha havido uma tempestade logo no único dia em que tínhamos mesmo de sair. Lei de Murphy, suponho. Para os distrair, pedi novamente que tirassem fotografias. Ao longe, avistámos a nossa saudosa Malempré, completamente coberta de neve, com a primeira e a segunda entradas já cortadas ao trânsito. Recordámos o nosso primeiro inverno pavoroso na Bélgica. Parece que foi há uma vida atrás! A passagem até à Baraque foi complicada, mas tinha a vantagem de conhecer bem o terreno. Ouvimos que a pista de ski tinha aberto logo no início da tarde. A avaliar pelo que víamos, não fiquei admirada. O meu amor telefonou para saber onde estávamos e dar mais um incentivo: os limpa-neves já tinham passado em Vielsalm, as estradas estavam desimpedidas. Os último vinte quilómetros foram os melhores, apesar de ser praticamente de noite. Demorámos três horas a fazer um caminho que se faz em 40 minutos.
Assim que chegámos, os meus filhos comeram este mundo e o outro. Depois, vestiram a roupa da neve e foram brincar para o quintal com os sabres laser. Não ficaram minimamente traumatizados com a viagem. Eu sentei-me no sofá, abraçada ao meu amor. Estava em casa, os miúdos e o carro intactos. Desatei a chorar.