terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Adolescer esquizóide e ciumento e atarefado

(porque ninguém nos diz que ter um adolescente cansa)


Filho crescido parece ter-se perdido num limbo qualquer, nos tempos que correm. Algures entre um resquício de infância e as primícias do mundo adulto. Tanto o apanho esparramado no quarto do irmão a fazer construções de Lego, como monopoliza a televisão à noite para ver os debates das presidenciais francesas. Tanto brinca às lutas com o irmão, como cobiça o meu Facebook. Ora lhe ralho porque ia vazando um olho do Vasco com a espada, ora lhe ralho porque está pendurado em cima do meu ombro a ler o que os meus amigos têm a dizer ao mundo. Parece que são muito mais interessantes do que os dele, demasiado infantis. Não quis entrar em polémicas, mas no outro dia vi um tutorial muito curioso que um amigo dele postou. Parece que ensinava a enrolar cigarros. Daqueles que fazem rir. Descobri que se aprende umas coisas engraçadas no Facebook desta malta… e eu que só depois de muita insistência lhes aceito amizade! Em calhando, o adolescente até tem razão. É melhor trocarmos de identidade nas redes sociais.

O problema é que o adolescer esquizóide dá-lhe para a ciumeira. Reivindica uma atenção exclusiva. De manhã à noite. A toda a hora. Fala ininterruptamente e exige ser ouvido no exacto instante em que começa a falar. Exige ser compreendido. É preciso regular o empatiómetro com precisão milimétrica. Temos de rir de imediato com o que o faz rir. E o melhor é ficarmos igualmente chocados com o que o deixa estarrecido. Aqui, não há margem para os cinzentos, nem para as hesitações. Não há espaço para o mas... Daí que seja incompreensível ter ido na quarta-feira à tarde ao cinema com o pequeno. “Mas passei o fim-de-semana a traduzir e não lhe dei atenção”, não serve de desculpa. Porque ele não foi connosco. “Mas era um filme infantil… sobre ballet”, também não chega para nos isentar. Tal como é inconcebível ter comprado um frango assado na feira. “Mas o menino pediu um frango assado, não gomas!”, é um argumento básico. Parece que os 10 euros que dei pelo frango foram um roubo. Um excesso. Um mimo injustificável. Ainda por cima, no dia anterior já tínhamos ido ao cinema... A porcaria da ave até me caiu mal com tanto ralhete.

No entanto, o que me faz mais confusão é a total incapacidade adolescente de estar sozinho com os seus pensamentos. Porque o Diogo está sempre em permanente fazer. Mesmo quando aparentemente não está a fazer nada. Se lhe digo para esperar um bocadinho, mal viro costas, já está atarefado com alguma coisa. Se demoramos mais uns minutos a sair do que o previsto, aproveita para tocar piano. O mais curto trajecto de carro é utilizado para estudar. Se o jantar atrasa um pouco, põe-se logo a ver uma série no iCoiso. Adormece a ouvir os podcasts do professor de Matemática, na esperança de que o subconsciente fixe milagrosamente algum conhecimento. E mesmo quando aparentemente está só a ler, fá-lo de lápis na mão para sublinhar o mais importante. Porque até a ficção lhe serve para aprender algo. Não há almoços grátis. É uma canseira. Ser mãe de um adolescente é extenuante.


domingo, 29 de janeiro de 2017

Túnel espácio-temporal

(onde vinte quilómetros parecem o dobro)



No outro dia, fui buscar o filho crescido ao trabalho. Era bastante tarde. Estava um frio glaciar. Nevava sem parar. Àquela hora da noite, os limpa-neves já não passam. Ninguém passa. A estrada tinha desaparecido sob grossas camadas de neve. A visibilidade era nula. E com os máximos ainda era pior. Avançávamos sem saber exactamente onde estávamos, não havia um único ponto de referência. Com a neve a bater de forma psicadélica no vidro da frente, como se estivéssemos a entrar a alta velocidade num estranho túnel espácio-temporal. Onde somos sugados. A verdade é que o tempo parece que pára. Senti que estavam reunidas todas as condições para a dislexia conquistar terreno. Sorrateiramente. Entro sempre um bocadinho em pânico, quando sinto que está prestes a acontecer. É como se, de repente, acordasse dentro de um filme desconhecido. E o Diogo que falava entusiasticamente, sem parar. Descrevendo com minúcia o dia de labuta. Os pratos que preparou. Os pratos que serviu. Os pratos que recolheu. Os pratos que lavou. Os clientes. Os colegas. O que fizeram e o que disseram. Um hipnótico som ininterrupto que se vai distanciando, distanciando, distanciando… 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

É o chamado 2 em 1

(onde cantam dois e o Vasco ouve apenas um)



Estava a traduzir, enquanto ouvia o CD que a minha mãe me enviou no Natal. O Vasco veio aninhar-se perto de mim, a ler. Ouço-o trautear distraidamente a música. Basta-lhe ouvir uma vez – uma única vez – uma música para conseguir trauteá-la sem falhas. A memória musical da coisa pequena nunca cessa de me espantar. O problema são os nomes. O Vasco tem um sério problema com os nomes. Sai-lhe tudo do avesso. É capaz de se enganar sistematicamente no nome de alguém que conhece na perfeição. Um membro da família, por exemplo. Mas, depois, arranja estratégias deliciosa para contornar a questão, desencanta mnemónicas e estranhas associações … cujo resultado, infelizmente, não é muito melhor. Foi assim que me perguntou, seguríssimo: “Mãe, é o Jorge Godinho que está a cantar, não é?”. Está certinho. Eu não diria melhor.


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Um morto na sala

(onde a metáfora se torna real)


Há uns tempos, fiquei a dever um favor a um colega de trabalho. Tinha prometido acompanhá-lo a uma feira internacional, onde a nossa associação teria um stand. Como a feira ficava para trás do sol-posto, ficou combinado que eu iria apenas no último dia para lhe dar uma folga. A combinação foi feita com meses de antecedência e, lamentavelmente, acabou por calhar no dia exacto em que os rapazes chegavam de Portugal, depois das férias. Pedi imensa desculpa, expliquei o motivo e disse que não poderia acompanhá-lo. O meu colega compreendeu, mas sei que ficou chateado. Eu também teria ficado, se tivesse de aguentar aquela estucha sozinha, quatro dias seguidos, fim-de-semana incluído. Disse-lhe com sinceridade que lhe ficava a dever um favor, que poderia cobrar quando quisesse. Que contasse comigo para o que fosse preciso. Que o próximo fecho da revista ficava por minha conta. Que podia inclusivamente chamar-me, se precisasse de ajuda para esconder o corpo que tinha ficado no meio da sala, na sequência de um homicídio. Ele lá acabou por rir. Respondeu-me a brincar que era pessoa para cobrar mesmo esse tipo de favor.


A sogra deste meu colega foi encontrada morta há uns dias, em circunstâncias misteriosas. No chão da sala. Ele e a namorada foram chamados ao local. E tiveram de limpar aquilo tudo. Felizmente, a Polícia tratou do corpo.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Parentofagia

(onde o amor irrompe nas obrigações parentais quotidianas)



Um dos nossos maiores desafios, enquanto casal, é não nos deixarmos engolir pela função parental. Suponho que esta seja a maior dificuldade de todos os pais, numa época em que os filhos estão, mais do que nunca, no centro da preocupação das famílias. Nunca se viveu tanto em função das crianças como hoje. Do bem-estar das crianças, da felicidade das crianças, da educação das crianças, da saúde das crianças, do futuro das crianças. Vivemos atormentados de dúvidas, inseguros. Confiamos nos pediatras e nos “especialistas” como se fossem deuses. Devoramos livros que encerram em si a sabedoria universal que – sabe-se lá como – parece ter-se perdido algures na evolução da espécie parental. Livros para aprender a adormecer bebés. Para lidar melhor com a crise dos dois anos. Para evitar problemas de escolarização. Para aprender a comunicar com os pré-adolescentes. Para conseguirmos ser pais divorciados de filhos que não se divorciam. Livros sobre o mindfulness e a psicologia positiva. Livros sobre a alimentação saudável. E acumulamos workshops sobre os mais variados temas, na esperança de aprender a sermos melhores pais em apenas duas horas. Sem esquecer obviamente os ateliers para as crianças. Porque é preciso estimulá-las o mais precocemente possível. Porque é impossível crescer de forma saudável sem a psicomotricidade, a música para bebés, a introdução ao mundo aquático, a imersão linguística precoce e o despertar artístico.

Dir-me-ão que os pais fazem este esforço sobre-humano apenas durante a infância da progenitura. Mas é uma falácia. As necessidades dos filhos mudam com a idade, não desaparecem. Os nossos medos e inseguranças também não. Muitas vezes gostava de poder partilhar os nossos rapazes com a tal aldeia que o provérbio africano diz tão sensatamente ser preciso para educar uma criança. A família está longe, não há mais ninguém para dar colo. E não se pense que um pré-adolescente e um adolescente precisam de menos colo do que um bebé. Precisam é de um colo que se faça discreto. E isto é uma arte. Ensiná-los a voar exige outras competências. A parentalidade é uma aprendizagem constante. Exige tempo, presença, disponibilidade. Exige um constante questionamento. E a necessária flexibilidade. Nesta fase, os pais têm de mostrar uma capacidade de adaptação sem precedentes. No outro dia, dei por mim na mesma divisão que o Diogo, a namorada e a mãe da namorada, em amena cavaqueira. Como se nada fosse. E eu só conseguia pensar: “Como diabo chegámos aqui?!”. Uma noite destas, estávamos os dois em frente ao computador, a ver uma escola secundária para o Vasco. Esta tinha estúdio de música e duas salas de dança. E eu perguntei, com os olhos a brilhar: “É isto, não é?”. O meu amor respondeu entusiasticamente que sim, sem dúvida, aquela era a escola ideal para o Vasco. “Vamos ter de mudar tudo…”, comentou. “Temos um ano e meio”, respondi. O tempo voou. Como diabo chegámos aqui? Quanto de mim, de nós, não demos para chegar até aqui?

Não acredito que um casal precise obrigatoriamente de ter filhos para se tornar família. A família pode assumir tantas formas! Mas duvido que consiga sobreviver se a parentalidade não for partilhada. Ou seja, caso existam crianças – comuns ao casal, de ambos os lados ou apenas de um – essa experiência tem de ser exercida a dois. Exactamente na mesma medida. Com o mesmo grau de compromisso. De amor. De responsabilidade. Aliás, acho que é por esse motivo que muitos casais com filhos pequenos acabam por se separar, quando nada o faria prever à partida. Porque não souberam dar esse passo conjunto, enquanto casal. É impossível ser pai/mãe “solteiro” morando na mesma casa. Seja o outro o pai/mãe da criança ou não. Sublinho, “na mesma casa”. Penso que é possível manter uma relação amorosa estável, com crianças pelo meio, em que os dois membros do casal não tenham o mesmo investimento parental desde que não se partilhe casa. Foi o que nós fizemos durante quase dois anos e funcionou na perfeição.

Quando viemos viver para Vielsalm, as coisas tiveram de mudar. E confesso que me custou horrores. Uma pessoa habitua-se a ser “mãe solteira” e, depois, é difícil partilhar a parentalidade. É difícil partilhar os filhos. A verdade é que, desde que eles nasceram, fui sempre eu que tomei todas as decisões, sem deixar margem de manobra a mais ninguém. Uma vez que o outro lado se contentou com um espaço subsidiário, fui crescendo numa maternidade profundamente solitária. Não me entendam mal, a solidão era voluntária e profundamente egoísta, vejo-o agora. Porque me permitiu fazer exactamente o que sempre quis. Inclusivamente vir viver para a Bélgica com os rapazes. O problema ocorreu quando me deparei com outro homem que não aceitou um papel meramente auxiliar. Que percebeu que a única forma de me ter por inteiro era tomar de assalto a minha exclusividade materna. E partilhou medos e inseguranças e tempo e disponibilidade e presença. O meu amor ensinou-me que é mais fácil dividir a responsabilidade do que carregar o mundo nos ombros. E, por isso, estar-lhe-ei sempre imensamente grata. Porque os rapazes ficaram a ganhar. Não que a nossa visão das coisas seja muito diferente. Que me lembre, nunca tivemos uma única discussão sobre os rapazes. As nossas opiniões são quase sempre convergentes. E, quando há divergências, a razão costuma estar do lado dele. Que tem uma visão da parentalidade mais livre e distanciada, logo mais isenta. Mais sã. O meu amor obriga-me a manter um pé em terra, não me deixa engolir pela maternidade. Não nos deixa engolir pela parentalidade.

Ontem, depois de irmos levar e buscar o Vasco de manhã ao ballet, levámo-lo aos anos de um amigo, onde foi convidado a passar a noite. A seguir, foi preciso levar o Diogo ao trabalho. E ir buscá-lo às 22h30. Uso um plural impessoal, mas foi o meu amor que fez de motorista em todas as deslocações dos principezinhos. Eu fiquei a traduzir furiosamente. Estava decidida a livrar-me da minha quota diária de páginas traduzidas. Consegui. O resto da tarde foi só para nós. Não consigo explicar a alegria que sentimos por sabermos que as oito horas seguintes seriam apenas nossas. Sem eles. Sem obrigações. Almoçámos a ver a nossa nova série de eleição. Fizemos aquelas coisas que os adultos gostam de fazer quando se apanham sozinhos. E dormimos uma sesta. Demos um passeio pequenino, apesar do frio. Tomámos um banho demorado. Conversámos muito. E voltamos a fazer aquelas coisas que os adultos gostam de fazer quando se apanham sozinhos. Decidimos jantar frites, enquanto víamos mais um episódio. E abusámos na maionese. Não lavámos a loiça. Preferimos ver mais um episódio. Soube tão, mas tão bem! O meu amor passou o dia com um sorriso na cara. E eu enrosquei-me nele vezes sem conta. Exprimimos em voz alta a felicidade que sentíamos. Repetimos, sem vergonha, que estes momentos a dois são tão importantes como todos os outros que dedicamos exclusivamente aos rapazes. Se não cultivarmos o amor que nos une, o resto não faz sentido. Nada faz sentido.

Somos quatro. Os rapazes estão, indubitavelmente, em primeiro lugar na nossa vida. Nós sabemos isso, eles sabem isso. As prioridades estão muito claras na nossa família. A magia está em continuar a criar bolhas espácio-temporais de amor onde nos possamos reencontrar a dois. Pode não ser socialmente correcto admiti-lo, mas a verdade é que os filhos são paisfágicos. Cabe-nos a nós não transgredir. Não deixar que a sociedade nos faça sentir culpados por nem sequer tentarmos ser pais perfeitos. Somos os pais que conseguimos ser. Mais livro, menos livro. Mais actividade, menos actividade. Mais coerência, menos coerência. Para além de advogarmos o direito à imperfeição parental, advogamos o direito a sermos um casal que se ama e que cuida ferozmente desse amor. Porque sem isso, a família que estamos a construir deixa de fazer sentido.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Só para terem uma noção

(onde o processo de congelamento ultrapassa as expectativas 
e as recompensas são surpreendentemente sofridas)


Quando estava a chegar ao trabalho, a Dadá ficou sem líquido limpa-vidros. Tendo em conta que, há pouco tempo, desmantelaram um atentado terrorista umas ruas acima, evito grandes passeatas em Verviers. Decidi improvisar. Até porque era impossível voltar para casa sem limpa-vidros. As estradas belgas estão cobertas por uma mistela nojenta de neve e sal. Quando passa um camião, é um ver se te avias. Antes de iniciar o trajecto de regresso, despejei uma garrafa de 250 ml de água no depósito. A ideia era só mesmo chegar a casa em segurança. Normalmente compro bidões de 5 litros de líquido limpa-vidros e ainda havia um resto na garagem. No Inverno, tem de ser anti-congelante. Bom, nesta terra, tudo tem de ter anti-congelante adicionado no inverno: limpa-vidros, líquido de refrigeração do motor, gás da caldeira, etc. Fiz-me ao caminho. Uns minutos mais tarde, apanhei o primeiro camião numa rotunda. Pressionei a manete do limpa-vidros. Nada. Voltei a pressionar. Nada. O líquido já tinha congelado. E assim se manteve airosamente, mesmo quando o carro já estava quente, meia hora depois. É para terem noção do frio que faz. Gela tudo em minutos.

As temperaturas rodam os -8ºC. À noite, diz que já chegou aos -20ºC. Está um sol radioso. E um frio literalmente siberiano. Na meteorologia falam de “temperatura real” e “temperatura sentida”. Esta semana ainda não consegui sentir nada. Também já devo ter congelado. Os miúdos nunca mais se esqueceram da artilharia pesada em casa. Acho que o frio – real ou sentido, sei lá! – faz desaparecer a vergonha. O Vasco tem ido todos os dias para a escola com a combinação de ski e botas de neve. Já tive de comprar outro par, porque chegam sempre ensopadas. Hoje levou o trenó. Parece que é uma recompensa por se terem portado bem nos últimos dias, na sala de aula. Vão andar de trenó à tarde. Mas, primeiro, têm de andar uns 20 minutos a pé até ao cimo do monte. Com o trambolho atrás. Não quero parecer maldizente, mas já vi castigos severos mais bonzinhos. Raio que os parta, pá!

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Mel

(onde nos aquecemos numa noite gelada)



Ontem, acabei de traduzir já passava das 2h da manhã e ia arrastar-me até à cama. O meu amor não está. Ninguém me obrigou a fazer a pausa habitual para ver uma série, antes de dormir. Detesto desligar o computador e ir directamente para cima, com as palavras a trotar-me na cabeça. Vêm-me sempre à memória expressões melhores do que as utilizadas (nisto, a tradução e legendagem é preferível, não há cá margem para grandes reflexões). E, depois, não há meio de adormecer… ou, se adormeço, caio num sono cansado de palavras intrometidas.

Olhei uma última vez para a fotografia que tenho no ambiente de trabalho, antes de desligar o computador. É um daqueles tesourinhos que o Facebook recordou, no outro dia. O Diogo mascarado de Harry Potter e, o Vasco, de canguru. Minúsculos. Há uma vida atrás. Nisto reparei no PDF que a Melissa me enviou. Descarreguei-o porque queria lê-lo, mal tivesse um bocadinho. Talvez pudesse ler só as primeiras páginas do guião, para chamar o sono descansado (o sono cansado, já eu tinha).

Tinha contado ao meu amor que a minha amiga Melissa ficou em segundo lugar, no concurso “Guiões 2016”. Mostrei-lhe a fotografia, orgulhosa. Não porque a Melissa tivesse ganho um prémio ou estivesse muito bonita, em cima daquele palco. (Estava lindíssima!) Mas porque brilhava. A Mel tem andado a combater alguns fantasmas interiores e o resultado está à vista. (Já disse que estava linda?). Lembrei-me da canção do Jorge Palma:

Sentei à minha mesa
os meus demónios interiores
falei-lhes com franqueza
dos meus piores temores
(…)
E no fim, já bem bebidos
demos abraços fraternos
saíram de mansinho
aos primeiros alvores
de copos bem erguidos
brindámos aos infernos
fizeram-se ao caminho
sem mágoas nem rancores

Quando lhe contei que tinha pedido à Melissa para me enviar o guião, o meu amor perguntou-me se não tinha medo de não gostar do trabalho. E, depois, o que lhe diria? Nunca tal me passou pela cabeça. Ainda bem. Uma página deu lugar a outra. E a mais outra. Umas quantas... Apeteceu-me um café, fui fazer um chá. Continuei a leitura, desbravando caminho pela história, página após página. Fiquei presa até ao fim, madrugada adentro. Dizem que foi a noite mais fria deste Janeiro gélido. Estavam -15ºC lá fora. Perfeito para ler “A Aldeia e o Inverno”. Escrever bem em poucas páginas, não é para qualquer um. A criação de mundos, no sentido literário do termo, exige tempo e espaço ficcionais. A Mel conseguiu edificar e destruir um mundo em menos de cem páginas. E isto é uma façanha que não está mesmo ao alcance de qualquer um.

Gostei tanto, tanto, tanto! Gostei dos saltos temporais, que se vão estratificando. Gostei do huis clos espacial claustrofóbico, que se vai tornando cada vez mais fechado. A par com a mentalidade alucinada da aldeia. Gostei muito do regionalismo, o real e o imaginado. A lenda que toma forma. Gostei da construção em crescendo das diferentes personagens. Gostei da ausência de adjuvantes. Da entidade colectiva das crianças que funciona como coro grego. E da intriga que se adensa. O nervoso miudinho vai-se instalando, à medida que o desfecho trágico se começa a desenhar. Gostei especialmente de me sentir enganada. Porque o nosso primeiro instinto é unirmo-nos à personagem principal contra a crendice bacoca. Mariana é pragmática: nunca tenta perceber o porquê das coisas, apenas quer resolvê-las para ter trabalho e continuar a viver na aldeia. No fim, percebemos que sim… que havia mesmo algo surreal como pano de fundo, que nos escapou. Mas pergunto-me se não será sempre assim, na vida real.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

As armas e os barões assinalados

(porque algo se quebra, 

quando ultrapassamos limites que achávamos intransponíveis)



Há sempre um dia… Um dia, não. Com os tradutores acontece tudo à noite… excepto as avarias súbitas e inexplicáveis dos computadores, que acontecem sempre de dia. Invariavelmente quinze minutos antes do prazo limite para entregar um trabalho. Que até estava terminado e poderia perfeitamente ter sido entregue a horas. Por uma vez. Fora essa pequena ressalva, tudo o resto na vida de um tradutor sucede na calada da noite.

Bom, voltando ao início desta história. Estava a dizer que, uma bela noite, somos obrigados a render-nos. Tendo perfeita noção de que se trata efectivamente de uma capitulação. Com tudo o que isso tem de humilhante. De derrota. Anos a fio a dar a volta ao texto. Orgulhosíssima do meu feito. Mas, esta noite, foi impossível. O último bastião caiu. Acredito que, quando um tradutor escreve “para” querendo dizer “pára”, há uma linha que se quebra. Algo errado acontece. Só pode.

O Monstrego fica desorientado, sem saber qual das duas moradas escolher. Definitivamente, dói a lua e soluça o mar. O onzeneiro entra na barca errada. No canal, o mau tempo dá origem a uma terrível tempestade. A passarola despenha-se. Nunca mais ninguém vê o semeador que saiu a semear. Porque os bichos deixam de cavar o chão. E a Salta-Pocinhas já não consegue apanhar galinhas. A Joaninha topa logo que o Carlos é um pinga-amores. As flores de verde pinho nunca darão novas do amigo. Semicúpio zanga-se com Sevadilha. As coisas complicam-se no bairro. Até o Reverendo Bonifácio se assanha. E os lençóis da mãezinha ficam puídos. Conspurcados, já estavam. Aceitamos por fim as sete espadas no sem-fim pousadas. A voz que lê dentro de mim cala-se para sempre. Morre a geração do Dantas e todas as outras. Pim!



sábado, 14 de janeiro de 2017

Winter is here

(da série “É tão bom viver nas Ardenas!”)


Anunciaram 50 centímetros de neve para este fim-de-semana, na nossa região. Penso que já não deve estar muito longe. Quando acordámos, estava assim:


Agora, está em franco crescimento. Neva sem parar há uma hora...


Sempre disse que as previsões meteorológicas na Bélgica eram francamente optimistas.


Winter is here. Definitivamente. Não é por nada, mas acho que alguém podia passar esta informação aos produtores de Game of Thrones. A sétima série, aqui, ficava pronta em 15 dias. E nós até conhecemos os proprietários do castelo mais próximo. Só falta mesmo o Jon Snow...


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Socializar, segundo o Diogo

(onde duvidamos da imagem 

que o espelho mais honesto do nosso mundo reflecte)



Ontem, o meu filho Diogo chegou da escola e encontrou-me – para não variar – à frente do computador. A traduzir, pois claro. Deu-me um beijo. Um abraço demasiado apertado. E disse-me que lhe estava a oferecer uma excelente experiência de “sociabilização”. Achei aquilo um bocado estranho. A verdade é que estou cada vez mais anti-social. Para usar uma expressão da tribo, pascalizei-me (verbo pronominal. Adquirir os hábitos do Pascal). Calculei que o filho crescido tivesse acabado de sair da aula de Ciências Sociais, a preferida. Hum… a preferida oficialmente. Acho que anda lado a lado com as Ciências, tout court. Mas não lhe fica bem dizer isto em voz alta, porque fui eu que o obriguei a escolher 6 horas por semana de Ciências. Após demoradas e extenuantes discussões. Após um despótico "É como eu digo e acabou-se". Antes a morte a admitir que a mãe tem razão, quando se tem 15 anos.

Perguntei-lhe o que queria dizer com aquilo… tendo em conta que pouco ou nada ando a contribuir, nos últimos tempos, para a sua extensíssima socialização. Lá me explicou que grande parte dos nossos hábitos sociais advém no ambiente. Da educação que recebemos. Do exemplo que temos em casa. Filhos de pessoas com diplomas universitários têm mais 50% de hipóteses de tirarem cursos superiores. E o exemplo que ele tem é este: uma mãe que se mata a trabalhar. Foi exactamente isto que o Diogo me disse. “Uma mãe que se mata a trabalhar”. Para o filho crescido, é um bom exemplo. O melhor exemplo que podia receber. Não sei se será. Tenho algumas dúvidas. Mas, depois, lembrei-me do que ele me escreveu, há uns dias: “Obrigada por fazeres sempre tudo por nós”. Talvez se ele relacionar ambas as afirmações, as coisas façam mais sentido. Espero que sim. Porque não sou uma pessoa que promova o culto do trabalho. Não sou workaholicCertamente, não gostaria de ser recordada como tal. Cultivo os meus. Apenas isso.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Alea jacta est

(onde se tenta o impossível, almejando o seu contrário)


A vantagem de nos estarmos a candidatar a um emprego por mero interesse mercantilista é que, se falhar, ficaremos igualmente felizes. Agora, vou só ali reler a extensa oferta de emprego para ver se finalmente percebo em que consiste a função. Nááá… para quê? Já li e reli aquilo tudo uma série de vezes e continuo na mesma. A leste. Literalmente, a leste. Talvez seja melhor preparar uma explicação convincente para a minha motivação. Numa das quatro línguas possíveis. Que não assente na compreensão, nem no interesse pelo dito anúncio. Principalmente, que não denuncie que me quero vender ao capital. Crescer custa.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Ah, sim… e os outros clássicos

(onde se relatam outros pequenos hábitos que vêm com o frio)



A saga do atraso crónico na troca de pneus não é, infelizmente, o único clássico com que inauguramos o nosso ano. Há pior. Bastante pior.

A água do bebedouro do Peanuts fica totalmente congelada, obrigando-nos a trazê-lo para dentro. E lá começa a ronda de noites sem dormir com aquele coelho demoníaco a atirar-se contra as grades da gaiola. A caixa é grande como um sarcófago, juro. E ele até passa imenso tempo a saltitar pelo quarto do Vasco. Mas à noite, sabe-se lá porquê, o tipo quer à força sair. É um fadário, acreditem.

Depois, temos o friorento D. Fuas. Com a chegada do Inverno, o nosso cão entra em negação profunda (tal como a dona) e recusa-se a fazer as necessidades lá fora (não se preocupem que eu continuo a ir ao local habitual, embora mais depressinha, que a casa de banho do palacete não é aquecida). O D. Fuas ainda chega a espreitar pela porta… mas volta logo para dentro, mal põe as reais patas na neve. E toca de fazer as necessidades urgentes à frente do aquecedor da sala. Ninguém duvida que é muito mais agradável do que pespegar o traseiro na neve. Infelizmente, a casa aquecida é habitada por humanos que prezam a salubridade. Pequeno detalhe que o digníssimo cão tenta ao máximo ignorar. Até um de nós de passar e o atirar para cima de um monte de neve. Os primeiros dias são sempre mais difíceis para o D. Fuas. Uma vez português, para sempre português.

Excepção feita para os meus queridos filhos, que se belgificaram há muito e insistem em levar-me ao desespero. Este ano, só consegui convencer o grande a usar luvas e Kispo. Gorro e cachecol são coisas de criança. Consta que não dá estilo. E mesmo o Kispo tem de discreto. Discretíssimo. Na realidade, trata-se de um simples blusão preto ao qual decidimos tacitamente chamar ‘Kispo’ a bem da sanidade materna. A minha, portanto. Sei perfeitamente que não muda nada. O Diogo não fica mais quente por isso, mas sinto-me mais descansada. Como é evidente, no que toca ao filho pequeno, as coisas piam mais fino. Durante 5 minutos seguidos, se tanto. Ainda consigo obrigá-lo a usar a artilharia toda antes de sair de casa: botas da neve, Kispo, gorro, luvas e um lenço polar a tapar o pescoço. Também já não gosta de cachecóis. Jura a pés juntos que o estrafegam. O problema é que, se me distraio, fica tudo no carro. Diz que tem calor. Estão -11º. Mas a pobre criança sofre com o calor. A caminho da escola, despe-se todo a uma velocidade contrariamente proporcional ao tempo infinito que demora a vestir-se de manhã. E fá-lo de mansinho, para ver se escapa. Às 7h30 ainda estou meia a dormir e enregelada, pelo que acaba por escapar quase sempre. Quando espreito pelo retrovisor para me assegurar de que entrou na escola (parece que não sou a única maluca a ter esta mania: no outro dia, o meu amor admitiu envergonhado que também só conseguia arrancar depois de ver o portão fechar), já só vislumbro um Vasco saltitante de Kispo aberto. O resto ficou no carro, claro. Esforço-me por pensar que eles nunca estão doentes. Que nunca estão constipados. Nem ranhosos. Há séculos que não sei o que é um espirro, uma febre, uma tosse. Não há bicheza que sobreviva a este frio glaciar. Todos os anos tento ver com optimismo o copo meio cheio. Não consigo. Só vislumbro água congelada.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Clássico de início do ano

(onde se decide acabar com o mau agoiro apenas porque entrámos em negação)



Adoro o Outono! Volto sempre a apaixonar-me por este país no Outono. Gosto das cores das árvores, do chão cheio de folhas, do tempo que arrefece, da casa que começa a compor-se com as mantas a saírem dos armários, do chá que voltamos a fazer… Custa-me muito aceitar a chegada do Inverno. Detesto o Inverno na mesmíssima proporção que amo o Outono.

Quase nunca neva, nos primeiros meses frios do ano. E eu fico sempre a pensar que talvez seja desta que vamos escapar aos nevões. Entro num estado de profunda negação. Em minha defesa, tenho a dizer que quase não nevou no segundo inverno que passámos na Bélgica. Continuo esperançosamente à espera de voltar a ter um ano maravilhoso como esse. Mas já percebi que não será em 2017.

Recuso-me terminantemente a ver os primeiros sinais, é uma maçada. As árvores ficam completamente despidas. Os passarinhos abandonam o nosso quintal. O frio aparece em força. Ligamos finalmente o aquecimento central (e os homens da casa suspiram de alívio). De manhã, os campos ficam cobertos por um manto branco de geada. À noite, aparece o temível verglas… a chuva forma uma fina camada de gelo completamente transparente, quando entra em contacto com a superfície gelada das estradas. Os carros começam a patinar. Os camiões percorrem as estradas para lançar sal. E tudo o que mexe fica coberto por uma espécie de lama branca.

Por esta altura, já a Bélgica em peso foi trocar de pneus, substituindo os de Verão pelos de Inverno. Os mais afortunados têm dois conjuntos de jantes com pneus, que vão alternando. Depois, é só calibrar numa garagem. Quem tem carros de confiança, usa os chamados “pneus de quatro estações” durante todo o ano. Mas são caríssimos e é preciso trocá-los com mais frequência. As “correntes de neve” são um utensílio desconhecido por estas bandas. Tipo as carroças, que caíram em desuso há séculos.

E, depois, há a Rita. A Rita é aquela pessoa que, em Dezembro, continua a acreditar que talvez não vá nevar. Ou, então, só um bocadinho. Nada que valha a pena a trabalheira de ir trocar de pneus. Mais uma vez. A verdade é que a Rita já teve três carros diferentes, em menos de cinco anos. O que implicou comprar três conjuntos de pneus de Inverno… que são, obviamente, muito mais caros. Porque, obviamente, a Rita comprou sempre carros com medidas muito diferentes de pneus. O problema é que a Rita só se decide a aceitar a triste realidade que a rodeia – a saber, que terá mesmo de trocar outra vez de pneus, porque este Inverno será igual a todos os outros na Terra do Frio – quando já começou a nevar. Muito. Aos montes.

Passamos sempre a passagem do ano fora. Invariavelmente, quando voltamos está a nevar. E lá tenho eu de começar a peregrinação habitual, com muitas semanas de atraso. Tantas, que já nunca há os pneus de que preciso. O velhinho Saxo que veio de Portugal mudou apenas os pneus da frente. Não se justificava estar a fazer um grande investimento. Um vizinho italiano de Malempré discutiu muito com um garagista árabe (nenhum deles falava a língua do outro e ambos arranhavam o francês, pelo que não consegui perceber patavina da inflamada conversa). O resultado foram dois baratíssimos pneus de Inverno usados, mas novos. Pareceu-me de mau augúrio estar a usufruir da desgraça alheia, porque nitidamente os pneus tinham ficado para contar a história… o carro, não. Ainda tinham estilhaços de vidro. O meu vizinho mandou-me calar e pagar, que aquilo era o negócio do século. E foi o que eu fiz. O Saxo acabou por ir à vida, passados largos meses, ainda calçado com aqueles pneus agoirentos. Veio o Twingo. Ehhh… graças a outro vizinho de Malempré que morreu. Para sermos justos, morreu de causa natural com uma vetusta idade. O Twingo jazia há anos na garagem e tinha pouquíssimos quilómetros. No primeiro ano, andou calçadinho com os pneus de origem, que estavam impecáveis. E, como disse, pouco nevou. No nosso terceiro Inverno, já não estávamos em Malempré e não me pude valer dos conhecimentos da vizinhança. Ou da desgraça alheia. Mas lembrei-me da épica discussão italiano-árabe e tentei imitá-la o melhor que consegui… numa outra garagem gerida por uns marroquinos. À falta de pneus novos em stock, saí de lá com quatro pneus usados a bom preço. Não tão bons quanto os primeiros, é certo. Mas, pelo menos, não eram aziagos. Já me bastava conduzir o carro de um defunto! A verdade é que duraram, impecáveis. Hum… duraram várias estações seguidas, porque nunca mais os troquei. Felizmente, a lei é omissa quanto a usar pneus de Inverno no Verão.

Este ano, lá me vi novamente apanhada por um carro novo… e pela neve. Muita, muita, muita neve. Nenhum dos meus amigos garagistas árabes tinha pneus para a Dadá em stock. Nem novos, nem usados, nem assim-assim. Tive mesmo de ir ontem à tardinha, pelo meio dos bosques cheios de neve, à procura de uma daquelas garagens franchisadas da moda. Que até se benzem quando ouvem falar de pneus usados. Pelo menos, foi o que me disse o rapaz que atendeu o telefone. Pelo barulho que se seguiu, acredito que seja mesmo verdade. Deve ter-se benzido e o auscultador escorregou-lhe da mão. Desta vez, não houve discussão possível. É uma pena, acho que estava a ficar mesmo boa. Mas consegui que o rapaz me dissesse baixinho que pneus eram de marca dita branca, mas de produção dita de qualidade. Fiz a marcação para pôr apenas os dois da frente. O dinheiro não dava para mais. Só que, durante o trajecto, as palavras do rapaz martelavam-me a cabeça: "Pôr dois pneus de Inverno é como andar coxo na neve apenas com uma muleta… se escorregamos, estamos lixados". As metáforas são a minha perdição. Quando lá cheguei, pedi para porem os quatro pneus. Acho que, desta vez, temos as fichas todas do nosso lado. Acabou-se a agoiro. Pode vir a neve à vontade. Não sei muito bem como vamos comer até ao final do mês, mas isso é outro problema…

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Resoluções a quatro vozes

(onde a tribo se dedica a um difícil exercício e sai reforçada)



A tribo uniu-se à avódrasta, ao melhor tio do mundo e ao bebé tóxico para uma passagem do ano gelada, em Amesterdão. Fizemos jus à expressão belga: “Plus on est de fous, plus on s’amuse!”. Quer dizer, eles divertiram-se… nós não víamos a hora de ir para a cama. (acho que estamos a ficar velhos). Por isso, deixámos a rapaziada nova a jogar um jogo de sociedade complicadíssimo madrugada adentro e escapulimo-nos mal pudemos. Ou seja, tarde. Demasiado tarde. O cenário dantesco do ano passado repetiu-se. Em Amesterdão, os foguetes começam cedo e acabam às tantas da manhã. Nunca vi coisa assim. O que é dizer muito, tendo em conta que vivemos na Bélgica, onde impera igualmente o fogo-de-artifício caseiro. Ah… sem esquecer que também já passámos uma passagem do ano na cidade do Luxemburgo, embora mais parecesse que estávamos algures numa cidade síria qualquer. Um horror. Mas Amesterdão bate qualquer recorde possível e imaginário. Durante todo o dia se ouvem foguetes, numa espécie de ensaio geral para a apoteose do réveillon. À noite, quando fomos passear pelo meio dos canais, cruzámo-nos com bandos de miúdos pouco mais velhos do que o Vasco que lançavam foguetes e estalinhos. Holandeses com idade para terem juízo improvisavam espectáculos de pirotecnia à porta de casa. Uma pessoa até tinha medo de esbarrar com aquelas porcarias ao virar da esquina. E fartei-me de pisar estalinhos perdidos no meio do chão. À meia-noite, os foguetes estridentes deram lugar ao fogo-de-artifício. É bonito, tenho de confessar. Visto do sótão de casa do meu irmão, temos um ângulo de quase 360º. E aquilo dura e dura e dura. Mas, uma hora depois, começamos a ficar um bocadinho fartos. O Diogo pisgou-se para a rua. O Vasco agarrou-se a nós. Foi estranho ver uma versão enciumada do filho pequeno, a competir com as gracinhas do bebé tóxico. Já disse que o meu sobrinho Luca é muito mais giro do que todos os fogos-de-artifício do mundo? Diz imensas palavras em português, misturado com um holandês balbuciante que só o Belga percebe. Bom… percebe quando se digna a aproximar-se, o que é bastante raro, porque já se sabe que os bebés são criaturas tóxicas e extremamente contagiosas. Mas o Vasco agradeceu efusivamente a distância imposta. Digamos que agradeceu pedindo colo e beijos e abraços e atenção a rodos. Foi definitivamente estranho. O Diogo está naquela fase em que acha mais piada ao primo canino, por isso não conseguia entender a ciumeira toda do irmão. Felizmente, a avódrasta chegava a todo o lado. Estou seriamente desconfiada de que as avós têm braços de polvo para chegarem mais depressa onde são precisas. E ela foi precisa em muitos sítios diferentes. Acudiu sempre com um sorriso. Embora tenha passado a passagem do ano a dizer que nunca tinha visto tal coisa, que parecia que estávamos em guerra. A verdade é que, a dada altura, comecei a temer pelo nosso carro, estacionado à esquina, na confluência de várias explosões caseiras da vizinhança. Fomos dormir sem saber se teríamos a carroçaria intacta, na manhã seguinte.

A longaaaaa noite deixou as ruas imundas. Uma mistura de desfile de Carnaval com um cenário de pós-guerra. Felizmente, a Dadá escapou ilesa. E o bebé tóxico dormiu a noite toda, não se sabe bem como. Se fosse meu filho, marcaria uma consulta no otorrino o mais depressa possível. Ontem, rumámos a casa. Estávamos cansados. O adolescente também devia estar meio morto: esteve muito mais tempo a dormir do que acordado. À medida que o tempo passa, percebo que fico cada vez mais feliz com estes regressos a casa a quatro. Gosto de conduzir à noite, em silêncio, com os meus homens a dormir a sono solto à minha volta. Só faltava o D. Fuas para o quadro ficar completo. Tive muito tempo para pensar na vida. Na que passou e na que agora começa. Peço sempre desejos, quando soam as doze badaladas. Quase sempre se concretizam (mas sou muito terra-a-terra nos meus pedidos). Quase nunca faço as típicas resoluções de ano novo, visto normalmente fazer contas à vida em Setembro. Desta vez, tive mesmo de alterar a rota, porque se avizinham mudanças de fundo. Confesso que me sabia bem deixar-me levar por esta vidinha morna que temos estado a construir, mas não é possível. Estou cansada de mudanças. Há quase seis anos que a minha vida parece um carrossel. Respiro fundo e esforço-me por pensar que parar é morrer. Que eu gosto de mudanças. No fundo, até gosto. Porque já percebi que as mudanças nos obrigam a crescer, a ir buscar forças onde já não pensamos haver alento. A pensar menos em nós próprios e mais nos outros. E o mais importante do meu mundo são eles. Daqui por dois anos e pouco tenho um filho na faculdade. Tenho de me preparar. Só posso contar comigo. É a única certeza que tenho. Pensei muito, no regresso a casa. Sempre de mão dada com o meu amor. Já percorremos milhares de quilómetros de mão dada.

Quando chegámos a Vielsalm, rumámos logo ao “nosso” chinês. Embora uma das decisões de ano novo é sermos mais poupados. Começámos bem, portanto. Enquanto esperávamos pela refeição, dedicámo-nos a escrever as nossas resoluções para 2017 (hum… vistas bem as coisas, talvez nem sequer se possa considerar que começámos o ano a infringir uma nova regra, pois as resoluções foram feitas após a transgressão… e tínhamos o frigorífico completamente vazio… ufa, menos mal! ). Cada um de nós escreveu num papel o que gostava que os outros três mudassem, neste novo ano. No final, escrevemos também uma coisa positiva que gostávamos que os outros mantivessem. O mais complicado, no entanto, foi fazer a nossa própria auto-avaliação… sendo que a maior dificuldade foi mesmo o auto-elogio. Estranho, não é? Estamos mais habituados a ouvir críticas e a fazê-las do que a ouvir elogios e a fazê-los a nós próprios. Tenho a dizer que todas as críticas que foram feitas eram justíssimas. Ninguém discordou. E os elogios foram comoventes. O Vasco chorou, claro. Bom… eu também. As palavras do meu amor tocaram-me especialmente. É bom sabermos que somos amados, mas ainda é melhor sabermo-nos apreciados. Os elogios dos meus filhos também me emocionaram. Resta-me começar a pensar mais em mim, gritar menos, dar ouvidos ao filho crescido e não fazer os meus “olhos maus” ao filho pequeno. Ah… e maquilhar-me mais. Mais, não… maquilhar-me, tout court. Estou seriamente desconfiada de que não vou conseguir cumprir este último pedido do Vasco. Mas posso sempre tentar. Independentemente do que a tribo conseguir alcançar em 2017, gostei deste exercício de introspecção. Acho que gostámos todos, apesar de não ser evidente. Vai ser engraçado reler o que escrevemos, no final do próximo ano. Quem sabe que voltas a vida ainda vai dar até lá? Bom ano!