quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Clássico de início do ano

(onde se decide acabar com o mau agoiro apenas porque entrámos em negação)



Adoro o Outono! Volto sempre a apaixonar-me por este país no Outono. Gosto das cores das árvores, do chão cheio de folhas, do tempo que arrefece, da casa que começa a compor-se com as mantas a saírem dos armários, do chá que voltamos a fazer… Custa-me muito aceitar a chegada do Inverno. Detesto o Inverno na mesmíssima proporção que amo o Outono.

Quase nunca neva, nos primeiros meses frios do ano. E eu fico sempre a pensar que talvez seja desta que vamos escapar aos nevões. Entro num estado de profunda negação. Em minha defesa, tenho a dizer que quase não nevou no segundo inverno que passámos na Bélgica. Continuo esperançosamente à espera de voltar a ter um ano maravilhoso como esse. Mas já percebi que não será em 2017.

Recuso-me terminantemente a ver os primeiros sinais, é uma maçada. As árvores ficam completamente despidas. Os passarinhos abandonam o nosso quintal. O frio aparece em força. Ligamos finalmente o aquecimento central (e os homens da casa suspiram de alívio). De manhã, os campos ficam cobertos por um manto branco de geada. À noite, aparece o temível verglas… a chuva forma uma fina camada de gelo completamente transparente, quando entra em contacto com a superfície gelada das estradas. Os carros começam a patinar. Os camiões percorrem as estradas para lançar sal. E tudo o que mexe fica coberto por uma espécie de lama branca.

Por esta altura, já a Bélgica em peso foi trocar de pneus, substituindo os de Verão pelos de Inverno. Os mais afortunados têm dois conjuntos de jantes com pneus, que vão alternando. Depois, é só calibrar numa garagem. Quem tem carros de confiança, usa os chamados “pneus de quatro estações” durante todo o ano. Mas são caríssimos e é preciso trocá-los com mais frequência. As “correntes de neve” são um utensílio desconhecido por estas bandas. Tipo as carroças, que caíram em desuso há séculos.

E, depois, há a Rita. A Rita é aquela pessoa que, em Dezembro, continua a acreditar que talvez não vá nevar. Ou, então, só um bocadinho. Nada que valha a pena a trabalheira de ir trocar de pneus. Mais uma vez. A verdade é que a Rita já teve três carros diferentes, em menos de cinco anos. O que implicou comprar três conjuntos de pneus de Inverno… que são, obviamente, muito mais caros. Porque, obviamente, a Rita comprou sempre carros com medidas muito diferentes de pneus. O problema é que a Rita só se decide a aceitar a triste realidade que a rodeia – a saber, que terá mesmo de trocar outra vez de pneus, porque este Inverno será igual a todos os outros na Terra do Frio – quando já começou a nevar. Muito. Aos montes.

Passamos sempre a passagem do ano fora. Invariavelmente, quando voltamos está a nevar. E lá tenho eu de começar a peregrinação habitual, com muitas semanas de atraso. Tantas, que já nunca há os pneus de que preciso. O velhinho Saxo que veio de Portugal mudou apenas os pneus da frente. Não se justificava estar a fazer um grande investimento. Um vizinho italiano de Malempré discutiu muito com um garagista árabe (nenhum deles falava a língua do outro e ambos arranhavam o francês, pelo que não consegui perceber patavina da inflamada conversa). O resultado foram dois baratíssimos pneus de Inverno usados, mas novos. Pareceu-me de mau augúrio estar a usufruir da desgraça alheia, porque nitidamente os pneus tinham ficado para contar a história… o carro, não. Ainda tinham estilhaços de vidro. O meu vizinho mandou-me calar e pagar, que aquilo era o negócio do século. E foi o que eu fiz. O Saxo acabou por ir à vida, passados largos meses, ainda calçado com aqueles pneus agoirentos. Veio o Twingo. Ehhh… graças a outro vizinho de Malempré que morreu. Para sermos justos, morreu de causa natural com uma vetusta idade. O Twingo jazia há anos na garagem e tinha pouquíssimos quilómetros. No primeiro ano, andou calçadinho com os pneus de origem, que estavam impecáveis. E, como disse, pouco nevou. No nosso terceiro Inverno, já não estávamos em Malempré e não me pude valer dos conhecimentos da vizinhança. Ou da desgraça alheia. Mas lembrei-me da épica discussão italiano-árabe e tentei imitá-la o melhor que consegui… numa outra garagem gerida por uns marroquinos. À falta de pneus novos em stock, saí de lá com quatro pneus usados a bom preço. Não tão bons quanto os primeiros, é certo. Mas, pelo menos, não eram aziagos. Já me bastava conduzir o carro de um defunto! A verdade é que duraram, impecáveis. Hum… duraram várias estações seguidas, porque nunca mais os troquei. Felizmente, a lei é omissa quanto a usar pneus de Inverno no Verão.

Este ano, lá me vi novamente apanhada por um carro novo… e pela neve. Muita, muita, muita neve. Nenhum dos meus amigos garagistas árabes tinha pneus para a Dadá em stock. Nem novos, nem usados, nem assim-assim. Tive mesmo de ir ontem à tardinha, pelo meio dos bosques cheios de neve, à procura de uma daquelas garagens franchisadas da moda. Que até se benzem quando ouvem falar de pneus usados. Pelo menos, foi o que me disse o rapaz que atendeu o telefone. Pelo barulho que se seguiu, acredito que seja mesmo verdade. Deve ter-se benzido e o auscultador escorregou-lhe da mão. Desta vez, não houve discussão possível. É uma pena, acho que estava a ficar mesmo boa. Mas consegui que o rapaz me dissesse baixinho que pneus eram de marca dita branca, mas de produção dita de qualidade. Fiz a marcação para pôr apenas os dois da frente. O dinheiro não dava para mais. Só que, durante o trajecto, as palavras do rapaz martelavam-me a cabeça: "Pôr dois pneus de Inverno é como andar coxo na neve apenas com uma muleta… se escorregamos, estamos lixados". As metáforas são a minha perdição. Quando lá cheguei, pedi para porem os quatro pneus. Acho que, desta vez, temos as fichas todas do nosso lado. Acabou-se a agoiro. Pode vir a neve à vontade. Não sei muito bem como vamos comer até ao final do mês, mas isso é outro problema…

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