sexta-feira, 30 de maio de 2014

Da complexidade

(ou da falta dela)


Será que a complexidade linguística corresponde a conceitos mentais igualmente complexos? Ou seja, será que o facto de conseguirmos exprimir conceitos mentais mais elaborados significa que temos um desenvolvimento cognitivo mais complexo?

Não páro de pensar nisto desde que o Vasco desabafou muito desiludido, quando me viu à espera dele no portão da escola, que tinha esperança de ficar um bocadinho sozinho em casa porque “estava a precisar de solidão”. A mãe que estava ao meu lado, desatou a rir. Mas o filho dela, que está no 4º ano, não percebeu e perguntou o que queria dizer solidão. A mãe lá lhe explicou e o miúdo também se riu. “És mesmo estranho, Vasco!”, atirou.

A ideia ficou a remoer-me a mente. Será que o miúdo de 10 anos, que não sabia o que era a solidão, nunca sentiu essa necessidade e, por isso mesmo, desconhecia o conceito? Ou, tendo já sentido essa necessidade, não tinha nome para lhe dar porque desconhecia o conceito? Será possível sentir inteiramente uma coisa cuja existência desconhecemos?

E, pronto, eis a dúvida existencial que me tem atormentado o espírito.

[ Quanto ao Vasco, é evidente que a liberdade é uma cena que lhe assiste. Se me pedissem para descrever a principal característica deste meu filho, diria que é a sede de liberdade. Desde que nasceu, iniciou uma luta sem tréguas por esta necessidade básica de ser livre. De ser diferente. De exercer a sua liberdade de escolha. De fazer valer a sua liberdade de expressão. De exprimir a sua liberdade corporal e artística. A luta, neste momento, é pelo direito à liberdade de estar só. E eu, que fui uma criança independente, compreendo-o perfeitamente. O problema é que o Vasco também sai a mim na capacidade de distracção. De abstracção. E eu não lhe consigo explicar que, enquanto ele se perder em pensamentos, não lhe posso dar mais liberdade… Com muita pena minha, que gosto de incentivar a complexidade da coisa pequena. ]

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Uma teoria disparatada

(e um friozinho no estômago)


Sempre tive uma teoria muito pessoal em relação ao cancro. Pode parecer disparatada, mas é o que eu penso. Além de todas as causas de saúde que lhe estão naturalmente subjacentes, acho que o cancro é a forma que o corpo tem de dizer que não consegue continuar a lutar contra uma situação que nos ultrapassa. Ou contra algo que nos é prejudicial. Acredito que o facto de aceitarmos em silêncio uma situação que se tornou insustentável pode abrir caminho ao cancro. Porque nos vai corroendo. Moendo. Destruindo por dentro. O cancro é o limite que o corpo impõe ao cérebro.

O vírus do papiloma humano (HPV) possui mais de 180 serotipos diferentes. Os tipos 6, 11, 16 e 18 causam grande parte das doenças genitais, incluindo o cancro do colo do útero. Na maioria dos casos, a infecção pelo HPV não apresenta sintomas. Contudo, em determinadas situações, como numa fase de maior stress em que ocorre imunossupressão, o vírus pode desenvolver-se. A verdade é que o HPV pode estar presente durante alguns anos no colo do útero sem se manifestar, mas pode igualmente provocar lesões pré-malignas que tendem a evoluir para cancro se não forem tratadas. As lesões pré-cancerosas recebem várias denominações consoante as características, tradicionalmente designadas por displasias. As lesões observáveis por citologia ou biopsia são categorizadas em três estádios, que vão desde CIN-I (displasia ligeira) a CIN-III (carcinoma ‘’in situ’’). Não existe nenhum tratamento que elimine o vírus, apenas se pode reforçar o sistema imunitário da pessoa infectada. Só a remoção do tecido anormal pode efectivamente prevenir que as células pré-cancerosas e cancerosas evoluam para um cancro invasivo. Uma maior extensão da displasia acarreta um pior prognóstico, pelo que quanto mais cedo for feito o diagnóstico, melhores são as hipóteses de que as lesões sejam controladas com tratamento.

Há uns meses atrás, decidi-me finalmente a substituir a minha querida Dra. Madalena, que me acompanhou desde a adolescência e que gostava de ver as fotografias dos meninos quando eu ia à consulta. Que me chamava “minha querida” e que chorou quando tirou um Diogo quase sem batimentos cardíacos de dentro de mim. Mas hemorragias constantes forçaram-me a procurar um ginecologista na Bélgica. Descobri, então, que as duas cesarianas de urgência a que fui submetida deixaram sequelas. E das grandes. Iniciei um tratamento que, caso não dê resultado, terá um desfecho mais radical, que passará por uma cirurgia reconstrutiva. Nessa altura, fiz todos exames de rotina sem me preocupar muito. Até que recebi uma carta do médico a pedir para marcar uma consulta de urgência. E fiquei assustada. Até porque nessa altura já andava às voltas com o meu problema da tendinite e da artrose nos ombros. Que diabo se viria juntar a isto tudo?! Ehhh… uma variante cancerígena do vírus do papiloma humano, ainda num estádio de displasia ligeira.

O primeiro especialista que consultei – chamemos-lhe o Dr. Pessimista – era da opinião que, tendo em conta o outro problema, devíamos fazer já uma cirurgia para retirar o útero. Segundo ele, mesmo que o vírus desapareça, pode reactivar-se a qualquer momento e desenvolver-se depressa num terreno imunológico propício. Melhor seria não arriscar. O segundo especialista que consultei – chamemos-lhe o Dr. Optimista – pensa que o meu sistema imunitário tem 50% de hipóteses de eliminar o vírus e que vale a pena esperar três meses. Até porque ele está convencido de que o problema inicial também irá responder bem ao tratamento nesse espaço de tempo. Caso contrário, avançamos de imediato para uma cirurgia onde se tentará extrair apenas a zona do colo uterino onde a lesão se evidencia. Escolhi seguir o Dr. Optimista, obviamente. E quero acreditar que, se há 50% de hipóteses, eu estarei no grupo do copo meio cheio.

Aconteça o que acontecer, passarei a ser visita assídua do Dr. Optimista. Homem muitooooo agradável à vista, que transmite uma onda de calma e segurança. Assim como assim, sempre ajuda. O seu único defeito é ter a mania de fazer umas estranhas pausas para se pôr a falar das iguarias que comeu nas diferentes visitas que fez a Portugal. O facto de as consultas serem quase sempre na minha hora do almoço dá um empurrãozinho. Eu sou um bom garfo e adoro discussões gastronómicas. A descrição de um robalo em crosta de sal aromático é coisa para me deixar a sonhar durante horas. Claro que ficaria mais satisfeita se pudesse trocar receitas sem estar despida e deitada numa marquesa de pés ao alto. Não é por nada, mas é uma posição um bocadinho desconfortável.

Creepy!

(já não se pode estar descansadinha da vida)


São 3 horas da manhã. Estou a encaixotar 18 meses de vida. A pensar como raio consegui aglomerar tanta coisa em tão pouco tempo. A televisão está ligada, como ruído de fundo, só para fazer companhia. D. Fuas ressona com a língua de fora, de patas para o ar e a cabeça a tombar do sofá. O resto da bicharada dorme lá em cima, miúdos incluídos. Tudo na mais santa paz, portanto.

De repente, ouço os primeiros acordes das “Águas de Março” que amo de paixão. Cantada pelo David Carreira e uma francesa que nunca vi mais gorda. Igualmente tenebrosa. Juro-vos que foi um momento verdadeiramente assustador. Espero que não se repita, bolas!

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A melhor prenda de anos

(gracias a la vida que me ha dado tanto…)



Hoje, no final do dia, o meu amor inicia a longa viagem que o vai trazer de volta para mim. E essa é a melhor prenda de anos que eu podia desejar… tê-lo lá longe a preparar o regresso a casa. A uma nova casa. A um novo começo.

Estes dois últimos meses foram de sonho. Apesar de vivermos os quatro amontoados num T1, cão, coelho, porquinho-da-índia e hamster incluídos. Que fazem um barulho desgraçado à noite, diga-se em abono da verdade. Apesar de dormirmos numa cama de solteiro que também faz as vezes de sofá. E que está meia partida. Apesar das dificuldades financeiras. Apesar de todo o trabalho que fizemos juntos em prol da biblioteca da Apem ter desaparecido por magia. Apesar de o meu corpo ter dado o grito do Ipiranga e estarmos com medo. Apesar de termos dois rapazes com níveis de exigência diferentes constantemente a pedir atenção. Que fazem barulho, gritam, discutem, insultam-se, andam à luta. Que por vezes nos fazem ter vontade de mandar isto tudo pelos ares e partir à aventura. Apesar da raiva crescente que sentimos por certas situações ignóbeis se manterem. Apesar de não fazermos a mínima ideia de como vamos conciliar a sua ânsia de partir com a minha vontade férrea de ficar. Apesar de nem sempre conseguir retribuir os abraços porque os meus ombros falham. Apesar de Malempré não ter sequer uma padaria e termos de dividir o carro. Apesar de eu ter descoberto que gosto de viver sozinha e de ele nunca ter vivido com outra pessoa. Apesar de ambos termos o nosso grain de folie. E de nos agarrarmos à nossa liberdade como tábua de salvação.

Apesar de tudo isto – dizia eu – os últimos dois meses foram dos mais felizes da minha vida. Graças à sua presença. Porque o meu amor transforma tudo. Viver com ele é algo absolutamente extraordinário. Ele enche as nossas vidas, que tinham tudo para serem banais, de aventura. Esta semana, foi num pulinho a Itália fazer as malas e entregar as chaves da casa, mas deixou-me um copo no parapeito da janela com uma substância estranha qualquer, onde supostamente estão a formar-se cristais. Porque o meu amor faz magia.

E redescubro o mesmo sentimento que me invadiu quando os meus filhos nasceram. Sinto-me grata. Imensamente grata. E um bocadinho incrédula também. A primeira coisa que faço quando acordo é olhar para ele. Tenho vontade de o encher de beijos, de festinhas, de dizer baixinho que o amo. De o mimar. De estar atenta às suas necessidades. De cuidar dele. De o encher de prendas. Coisas parvas, sem importância. Um poema. Um chocolate. Um café quando está concentrado a trabalhar. O medicamento para a rinite que se esquece sempre de comprar. É uma vontade de estar presente para o outro, à escuta no meio dos seus silêncios. De andar de mão dada. Eu, que nunca gostei de andar de mão dada. Mas é assim que estamos sempre, já percorremos muitos milhares de quilómetros de mão dada. E sonhamos percorrer outros tantos. Porque o caminho tem sido tão doce!

Hoje faço 38 anos. Recebi a melhor prenda de sempre. E só há uma música que me vem à memória.


[ Obrigada também aos meus filhos. Sempre. Ao Diogo que gastou a sua mesada para comprar um livro de culinária do Jamie Oliver, que teve o cuidado de me vir oferecer à meia-noite exacta. Ao Vasco que decidiu que há imensas coisas grátis que me pode oferecer, como por exemplo uma massagem. ]


terça-feira, 27 de maio de 2014

É melhor nem ler…

(onde se escreve um não-post envergonhado sobre as eleições)


Pela primeira vez na vida não votei. Mas doeu, que eu sou neta e filha de gente que se bateu pela liberdade e levo a vida cívica muito a sério. Com a história da mudança de casa, estou administrativamente dividida entre duas moradas e acabei por não me conseguir inscrever enquanto eleitora emigrante.

Hoje de manhã, fui ler o Le Monde para saber os resultados definitivos e, sinceramente, mais valia ter ficado quieta que até o café me caiu mal.

Alemanha, Aústria, Chipre, Croácia, Hungria, Letónia, Polónia, Eslovénia: Conservadores na liderança.

Bélgica: Separatistas flamengos na liderança.

Búlgária: Centro-direita na liderança.

Dinamarca, França: Extrema-direita na liderança.

Eslováquia: Sociais-democratas recuam.

Espanha: Conservadores e Socialistas perdem terreno face a pequenos movimentos, nomeadamente de esquerda.

Finlândia, Roménia: Direita na liderança.

Grécia: Esquerda radical na liderança por pouco, mas subida da Extrema-direita.

Holanda: Recuo da Extrema-direita.

Irlanda: Candidatos independentes na liderança.

Itália: Partido democrata na liderança.

Lituânia, Suécia: Sociais-democratas na liderança.

Malta: Partido Trabalhista na liderança.

Portugal. Oposição Socialista ultrapassa o Centro-direita e abstenção bate recordes.

Reino Unido: Partido Euro-céptico na liderança.

República Checa: Liberais na liderança.
 
 
Medo. Muito, muito, muito medo. Enquanto portuguesa, porque vejo que no meu país, aconteça o que acontecer, é vira o disco e toca o mesmo: parece que só há dois partidos e que o pessoal sai à rua apenas para comemorar vitórias futebolísticas. Enquanto estrangeira, porque vejo esta Europa a aproximar-se a passos largos de 1930 e parece que anda tudo cego. É que os outros também foram eleitos, é bom não esquecer. Em que raio de mundo irão os meus filhos viver?

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Aviso à navegação

(onde se tenta clarificar o que ficou mal explicado)


Escrever de chofre tem destas coisas… por vezes, as ideias só ficam claras na nossa própria cabeça. O que pensamos ser um esclarecimento transforma-se num convite à confusão. Os ecos a propósito do último post que escrevi – seja através da caixa de comentários, de e-mails ou até de um sms amoroso de uma amiga – fizeram-me perceber que não fui muito explícita. Que era precisamente o meu objectivo.

Nunca esteve em causa encerrar este blog. Eu pretendia apenas dizer que o “Amigo Imaginário” não pode ser um reflexo condicionado da minha existência. O que escrevo tem de ser um retrato real da minha vida, com o seu lado positivo… e negativo. Sem falsos filtros. Doa a quem doer.

O subtítulo deste blog é “Aventuras e desventuras de três almas perdidas algures no fim do mundo.” Não é um baby blog, nem um blog de moda. Não é um blog de teor filosófico. Muito menos desportista. Não se comentam aqui as notícias da semana. Não se fotografam pequenos-almoços, nem se faz o elogio da vida saudável. Não se tenta vender artesanato. Fala-se de aventuras e desventuras.

O “Amigo Imaginário” pretende apenas mostrar que a vida, tal como a concebemos, um dia pode acabar. Subitamente. E que isso se pode revelar uma excelente oportunidade para nos reconstruirmos. Para lutarmos pela nossa sobrevivência. Para mudarmos de vida. Para aprendermos a ser mais felizes, mais inteiros. Para nos voltarmos a apaixonar. Para crescermos enquanto pessoas. Nem que para isso tenhamos de nos mudar de armas e bagagens 2500 km para Norte, com duas crianças e um cão atrás, à procura de novas oportunidades. Não há problema. Tudo é possível. Há muitas formas de família. E muitos estilos de vida.

O que aqui escrevo é o relato do percurso que fazemos, dia após dia, para refazermos a nossa vida. Passou-se um ano e meio desde que deixámos tudo para trás e viemos viver para a Bélgica. Este caminho tem sido feito de muitos avanços e de alguns recuos. Nem sempre é fácil, há momentos muito difíceis. São as tais "desventuras". Mas sempre defendi que, enquanto forem dois passos à frente e um atrás, o saldo é positivo. Para mim, o saldo é largamente positivo. Contudo, se quero ser honesta para quem lê este blog, não posso centrar-me apenas nas coisas boas. Porque também há coisas más. O medo. As dúvidas. As dívidas. As más notícias. E o inimigo que, a salvo na sua trincheira de luxo, tenta minar o meu progresso. Se quero ser honesta, não posso deixar que o medo me paralise e me impeça de denunciar certas situações que me estão a fazer mal. Psíquica e fisicamente. Este blog não é, nem nunca será, uma arma de arremesso. Mas, a partir do momento em que começar a censurar o que escrevo para proteger os que amo e não atacar, por mera questão de princípio, quem desprezo, então, mais vale declarar a derrota. Ora eu não sou uma derrotista. Se houve uma coisa que aprendi, ao longo deste percurso, é que nós somos muito mais fortes do que julgamos. E o “Amigo Imaginário” tem de ser um reflexo desta luta. Das aventuras e das desventuras. É só isso.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

A nu

(onde se vislumbra o lado negro da força)


Desde que me conheço como gente que escrevo. Primeiro, na minha cabeça. Lembro-me de inventar histórias, que repetia vezes sem conta para mim mesma para não me esquecer. Até que aprendi a escrever “composições”. Depois, descobri os diários. E nunca mais parei. Durante toda a minha adolescência mantive diários. Também comecei a escrever poemas e histórias infantis. O meu amor maior. Quando saí da faculdade, com 22 anos acabados de fazer, casei e deixei de escrever. Tal como deixei de andar a cavalo. E de lutar pela minha felicidade pessoal. Perdi-me numa suposta díade. Durante esses treze longos anos, apenas escrevi uma história para o meu filho Diogo. De vez em quando, escrevia um ou outro conto infantil, que despejava para uma pasta perdida no meu computador. E nunca mais lhe pegava.

Nos quinze dias que tive para sair de casa e apagar dezoito anos de vida em comum, muitos foram passados a reler e a rasgar cadernos. Lia, rasgava. Lia, rasgava. Chorava. Perdi a conta aos sacos do lixo com pedaços de papel rasgado que enchi. Apaguei todo o meu passado. E arrependo-me até hoje.

Em Outubro de 2013 achei que estava na altura de recomeçar a escrever. Mas fui incapaz de voltar aos diários. Por outro lado, pensei que talvez o meu percurso de vida pudesse interessar a mais alguém. Assim, nasceu o “Amigo Imaginário”. Que também tinha como função substituir todos os amigos que deixei para trás e que tanta falta me fazem.

Depressa percebi que, quando escrevo neste blog, sinto o mesmo prazer que sentia quando escrevia os meus diários há tantos anos atrás. Um prazer feito de organização de ideias. Uma espécie de esvaziamento da lixeira do meu computador interno. Que eu não sou pessoa de ficar com coisas a remoerem-me o espírito muito tempo. Por isso, sempre gostei da sensação de liberdade que a escrita implica. Quando escrevo sobre um assunto, parece que consigo vê-lo sob novos ângulos. Analisá-lo. Aprofundá-lo. As soluções acabam por aparecer sozinhas. Ou, então, percebo que não há solução possível. Que o melhor mesmo é esquecer. Pelo menos, momentaneamente. A vida depois encarregar-se-á de encontrar a melhor solução.

Demorei algum tempo a decidir que rumo queria dar ao “Amigo Imaginário”. Por isso, tenho escrito menos. Têm chovido más notícias nos últimos tempos e eu não sabia como falar sobre isso. Comecei a narrar as nossas aventuras sem pensar muito na linha condutora subjacente a este blog. Mas, a dada altura, dei por mim a apagar textos que tinha escrito. A dada altura, dei por mim a autocensurar-me. Porque eram assuntos do foro privado, demasiado íntimos. Porque expunha outras pessoas. Porque queria proteger os meus filhos de uma realidade que está longe de ser cor-de-rosa. Porque sei que o inimigo anda à espreita nos lugares mais insuspeitos.

Acabei por perceber que isso não tem sentido. No dia em que escrever neste blog deixar de ser um simples prazer para passar a ser algo calculado, polido, limado, censurado… então, o “Amigo Imaginário” deixa de fazer qualquer sentido para mim. Portanto, aos poucos, vou esforçar-me por fazer aquilo que sempre fiz: passar a escrito o que me corrói a alma, na esperança de que as soluções apareçam. Porque sempre lá estiveram e eu não as conseguia ver. Porque desabafar pode não mudar nada mas, pelo menos, liberta a alma. E, neste momento, ter paz na minha vida é o meu maior desejo.

Os problemas hão-de acabar por ter uma solução. Mas a liberdade que a escrita me oferece é primordial para conseguir enfrentar o meu dia-a-dia. Podem tirar-me tudo, a paz de espírito só me tiram se eu deixar. E eu decidi que não deixo.
 

[ Nota para o inimigo que-vamos-fazer-de-conta-que-não-me-lê, mas que têm este blog no histórico do seu iPhone: EU VOU DAR LUTA. ]

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Um sonho realizado

(à custa de um disparate que me vai ficar caro às mãos do Dr. Sauvage)


Finalmente realizei um sonho antigo. Um sonho que nasceu estava eu ainda grávida do Diogo. Porque há mães ambiciosas. Mães que sonham com filhos bem sucedidos. Filhos inteligentíssimos em Harvard. Filhos que comovem na Orquestra Filarmónica de Viena. Filhos que recebem a Palma de Ouro em Cannes. Ou que voam em cima de um palco, no Bolshoi de Moscovo.

Eu cá sonhava que o meu filho andava a galope pelos campos a rir. Pronto… no auge do meu sonho, o meu filho ganhava uma competição numa modalidade qualquer de Equitação nos Jogos Olímpicos. Coisa poucochinha, como podem ver. Que eu sou uma mãe de sonhos modestos.

Mas a verdade é que só tive de esperar 13 anos para realizar este meu sonho. Tirando aquele pequeno detalhe dos Jogos Olímpicos, porque fica fora de mão ter um filho a viver num centro para desportistas de alta-competição. E apenas por isso, nada a ver com o facto de ter um miúdo que não tem fibra de desportista.

No sábado de manhã, os rapazes tiveram aula de equitação com a Myriam. Normalmente, as aulas consistem em curtos passeios pelos bosques ou pelas ruas de Malempré. A Myriam segue a pé ao lado deles e vai dando instruções durante o percurso. O Diogo já se desenrasca muito bem sozinho em diferentes cavalos. O Vasco é uma desgraça… Fala, fala, fala. Canta, canta, canta. Distrai-se e larga as rédeas. Ou lembra-se de se virar de repente. De se debruçar para arrancar uma flor. De bater no pescoço do bicho para sacudir furiosamente uma mosca. Por isso, a pobre Myriam vai sempre em sobressalto colada à coisa pequena, com o cavalo pelas rédeas. E olhos de lince. E uma paciência de santa. Eu pisgo-me para casa de uma vizinha mal os apanho a todos distraídos. Bebo calmamente um café e, como quem não quer a coisa, apanho-os pouco antes de voltarem para os estábulos.

Este fim-de-semana estava bom tempo, o campo estava bem seco. Como estavam só os dois, a Myriam aproveitou para fazer uma aula no prado onde os cavalos estão durante o dia. Pediu-me para dar aula ao Vasco, enquanto aproveitava para iniciar o Diogo ao galope. E eu fiquei tão surpreendida por o tal momento ter chegado que disse logo que sim, sem pensar no que tenho sofrido nas últimas semanas às mãos do Dr. Sauvage para me pôr os ombros no lugar. Mandei o Diogo ir a correr ao carro buscar a máquina fotográfica para registar o momento… mas percebi que há momentos que não se registam. Porque a máquina não ia apanhar o riso de espanto dele. Os olhos a brilhar. O corpo tão bem posicionado. O balançar compassado. Nem a voz de encorajamento da Myriam. Ou o meu coração a bater descompassado. O tom meloso com que o Vasco me tentou convencer a passar do trote ao galope para poder imitar o irmão. O relincho do Picasso que ficou amarrado no estábulo, quando ouviu o Zorro a galopar velozmente no prado. Um cavalo a galopar num campo sem fim é um animal bem treinado, que tem de obedecer à mão de um cavaleiro experiente. Não é como seguir o movimento do cavalo da frente numa aula dada a granel num picadeiro fechado. Por isso, foi tão bom esperar.

Ficaram as fotos do antes e do depois. O durante, não. O galope com que sonhei durante tantos anos ficou gravado apenas na minha memória de mãe. De mãe babada. De mãe realizada. De mãe feliz. Vi o meu filho à gargalhada a andar a galope num prado florido.









quarta-feira, 14 de maio de 2014

Obrigada!

(onde se faz um breve agradecimento tardio porque sou uma distraída)


A minha vida tem andado meia complicada nestes últimos tempos. E não tenho consigo aqui vir tanto quanto gostaria. Mas a verdade é que adoro os momentos que passo à noite a escrever neste blog. Normalmente é mais de madrugada, mas pronto…

Aos poucos, fui criando uma rotina em que perco (ganho) umas horas a escrever, enquanto reflicto sobre o que se vai passando nas nossas vidas. É assim uma espécie de conversa de mim para mim, um pensamento em voz alta. Que depois vocês são convidados a ler.

O tempo passou sem que me desse conta. Este blog já tem seis meses. Teve mais de dez mil visualizações. Não sei se é muito ou pouco. Para mim é o suficiente para continuar. Quer dizer que a nossa aventura toca mais alguém. Quer dizer que os meus pensamentos ecoam na vida de mais alguém.

Obrigada a todos por me fazerem sentir que não estou tão sozinha como parece. Que esta nova vida que estou a construir, dois passos para a frente e um para trás, faz sentido para mais alguém.

domingo, 11 de maio de 2014

Uma espécie de casamento

(em forma de questionário)


1. Uma pessoa recebe um convite para um casamento, que se vai realizar a 10 de Maio...
a) Compra um vestido quente porque sabe que, na Bélgica, em Maio ainda estamos em pleno Inverno.
b) Compra um vestido uma semana antes do casamento, para ter a certeza de que se adapta ao clima.
c) Fica tão feliz por desencantar um vestido de cerimónia baratinho numa loja em segunda-mão, que nem pensa se é de Verão ou de Inverno.
 
2. Um mês antes do casamento, a noiva elogia um bolo de bolacha que fizemos para um jantar familiar...
a) Agradecemos a simpatia e oferecemo-nos para lhe dar a receita.
b) Agradecemos a simpatia e perguntamos em que loja vai fazer a lista de casamento.
c) Nem sequer lhe agradecemos e anunciamos logo que sabemos fazer o mesmo bolo com diferentes sabores. Como não quer a coisa, aproveitamos para propor ajudá-la com o catering como prenda de casamento.

3. Uns dias antes da cerimónia, percebemos que está um frio do caraças...
a) Óbvio, daí termos comprado um vestido bonito e, principalmente, quentinho.
b) Óbvio, foi por isso que esperámos para saber o que era mais adequado comprar.
c) Porra! Agora, só nos resta comprar uma echarpe comprida para não morrermos de frio.

4. Sabendo que a noiva está a contar com a nossa ajuda para o catering
a) Uma semana antes começamos a cozinhar refeições que não se estraguem ou que possam ser congeladas.
b) Encomendamos tudo num restaurante perto de casa, para ter a certeza de que a nossa prenda de casamento será um sucesso.
c) Na véspera, aproveitamos as duas horas em que os miúdos estão no solfejo para irmos às compras numa loja discount ali perto e, à noite, deitamos mãos ao trabalho, gritando ordens à família inteira. 


5. Depois de meia-hora na casa-de-banho para tomar um duche, secar e esticar o cabelo, vestirmo-nos, calçarmo-nos e maquilharmo-nos, estamos prontas…
a) Os homens da casa elogiam o tempo-record e o nosso visual.
b) Os homens da casa dizem que estamos lindas por pura simpatia, já que estão habituados a ver-nos bem arranjadas.
c) Os homens da casa reclamam do tempo que demorámos a ficar prontas; o filho mais velho pergunta o que raio temos nas pernas porque nunca nos viu de collants, o filho mais novo diz que ficamos melhor sem maquilhagem e o nosso amor fica de boca aberta a pensar que lhe roubaram a mulher algures no meio do processo e lhe meteram aquela coisa mascarada à frente.
 
6. Sabendo que o casamento começa às 10h30 da manhã e que ainda temos uma hora de viagem pela frente...
a) Levantamo-nos todos cedo, tomamos um bom pequeno-almoço, vestimos a roupa que já está preparada e saímos a horas.
b) Levantamo-nos todos cedo, tomamos um bom pequeno-almoço, vestimos a roupa que já está preparada e saímos com bastante tempo de antecedência porque ainda temos de ir pôr gasolina e não sabemos o caminho.
c) Acordamos tarde por causa da maratona culinária da noite anterior; mandamos o homem ao supermercado porque nos esquecemos de comprar alface e ensinamos-lhe a fazer rolinhos de salmão fumado, enquanto andamos à procura de uma camisola interior para o mais novo, engomamos as calças que o mais velho insiste em levar e nos arranjamos; saímos 15 minutos antes de a cerimónia começar e vamos o caminho todo a rezar para a gasolina dar para chegar até lá.

7. Ligamos à família a dizer que houve um imprevisto, mas que não se preocupem porque já estamos a caminho com a comida...
a) A família fica muito surpreendida porque isso nem parece nosso.
b) A família fica preocupadíssima a pensar que a única hipótese é teremos tido um acidente.
c) A família diz que escusamos de nos arriscar como de costume a apanhar uma multa por excesso de velocidade, porque de qualquer modo vamos perder a missa.

8. Quando finalmente chegamos à igreja, percebemos que a cerimónia acabou de começar...
a) Claro, outra coisa não seria de esperar de nós.
b) Ficamos muito aliviados e acenamos a toda a gente para mostrar que está tudo bem.
c) Ficamos chateadíssimos porque a desculpa da falta de alface parecia perfeita para escaparmos à missa.

9. Durante a cerimónia na igreja…
a) Seguimos as rezas, cânticos e discursos familiares com enlevo.
b) Participamos com desenvoltura na cerimónia, que ajudámos a elaborar juntamente com as outras mulheres da família.
c) Sentamo-nos quando todos se levantam, levantamo-nos quando todos se sentam; contemos a custo um ataque de riso ao ver a tatuagem que a velhota do lado deve ter feito num dia de bebedeira nos saudosos anos 60; agarramos o filho pequeno pelos fundilhos para não se atirar às hóstias; damos um calduço ao mais velho quando ele comenta que consegue sobreviver àquela encenação toda graças às aulas de teatro.
 
10. Quando chegamos à sala de festas, mandamos a noiva para dentro e atiramo-nos ao trabalho na cozinha...
a) Percebemos de imediato que os pratinhos de diferentes formas estranhas são para servir as entradas.
b) Percebemos de imediato que os dois jovens que foram contratados para servir o catering não são os irmãos mais novos da noiva e não os cumprimentamos com um beijinho efusivo.
c) A nossa mãe percebe de imediato que a echarpe colorida que comprámos para cobrir os ombros porque faz um frio do caraças e que largámos em cima da mesa da copa não é um pano de cozinha e nem lhe passa pela cabeça usá-la para limpar as mãos cheias de azeite.

11. Durante o dia, cada vez que um buffet diferente é servido, nós…
a) Achamos a comida deliciosa e cometemos os excessos típicos dos dias de festas.
b) Comemos educadamente, juntamente com os nossos filhos.
c) Nem nos lembramos de comer porque estamos demasiado ocupados na cozinha e, por isso, passamos o dia com fome (contrariamente aos nossos filhos que comem que nem os bisontes, finalmente livres do nosso olhar castrador).

12. Os noivos prepararam diversas actividades ao longo do dia...
a) Participamos alegremente, somos a alma da festa.
b) Pegamos no microfone para fazer de mestre-de-festas, incentivando os convidados a participar.
c) Somos sobejamente conhecidos por detestar esse tipo de brincadeiras, por isso, os nossos cinco (5) irmãos inscrevem-nos em segredo, à vez, no Karaoque para cantar músicas tão bonitas como o genérico do “Dragon Ball”.

13. Decidimos fazer a nossa boa acção do dia e sentamo-nos ao lado da avó velhota...
a) Ouvimos com agrado pela enésima vez a história de quando tínhamos 15 anos e ela ficou com o nosso porquinho-da-índia durante umas férias.
b) Vemos pela enésima vez as fotografias de todos os netos que ela traz sempre na carteira.
c) Contamos as últimas gracinhas dos nossos filhos aos gritos para toda a sala ouvir e, no fim, quando lhe perguntamos como está, responde-nos que anda muito melhor desde que tem o novo aparelho auditivo.

14. Chegado o momento de provar o tão aclamado bolo dos noivos…
a) Comemos educadamente uma fatia.
b) Cometemos uma loucura e comemos duas fatias, porque finalmente podemos tirar a barriga de misérias já que não somos nós que o servimos.
c) Apesar de termos aguentado estoicamente o dia inteiro até às 23h, esse momento nunca chegou porque fizemos tantos bolos elegantes que a noiva se esqueceu de pôr na mesa o seu próprio bolo.
 

Ó para nós mascarados…

 

Ó para o Vasco a dar show na pista de dança…
 

quinta-feira, 8 de maio de 2014

E depois das agulhas, sessões de pancada

(onde se apresenta um homem que faz jus ao nome)


A primeira vez que decidi tomar uma atitude em relação às minhas dores nos ombros, marquei uma massagem desportiva num clube qualquer em Lisboa, que desencantei nas páginas amarelas. Expliquei que a lesão se devia a uma queda a cavalo e que, como continuava na equitação, me parecia a solução mais acertada. No dia combinado, fui conduzida a um consultório. Um senhor de bata branca fez-me várias perguntas, enquanto tirava notas. Achei aquilo tudo muito profissional. Em seguida, mandou-me tirar a camisola e deitar-me de barriga para baixo na marquesa. Mas, depois, andou para ali séculos a tatear-me as costas e não havia meio de começar as tão ansiadas massagens. Espreitei discretamente pelo canto do olho para tentar perceber o que se passava... E ia morrendo de susto! Até onde a minha vista alcançava, tinha as costas cheias de agulhas enormes. Eu, que sempre tive pavor a agulhas. Tentei levantar-me e perguntei aos gritos que raio era aquilo. Com muita calma e mãos de ferro, o homem lá me explicou que não me podia mexer porque estava quase a acabar de pôr as agulhas da acupuntura. Acupuntura?! Eu só queria massagens! Mas não. A menina da recepção achou que o mais adequado para o meu caso era a acupuntura. E parece que tinha razão. Eis-me assim iniciada nas artes mágicas das agulhas. Porque a verdade é que aquilo não doía nada e fazia mesmo efeito. Durante anos, volta e meia, lá fazia umas sessões de acupuntura que me deixavam como nova.

Nesta última crise, o meu médico achou que isto já não ia lá com umas simples agulhas e que eu precisava mesmo era de fisioterapia de choque. No mínimo, dezoito sessões com o Dr. Sauvage. O osteopata e fisioterapeuta mais conhecido aqui do burgo. Adorado pelas minhas vizinhas. Idolatrado pela população de Malempré acima dos 80 anos. Lá fui eu, então, ao Dr. Sauvage. A pensar que me esperava uma espécie de ginástica levezinha para velhotes. Quando lá cheguei, achei a marquesa um bocadinho estranha. Tipo hardcore… toda sofisticada, em couro, com umas correntes para prender os pés. Mas, pronto, era só uma marquesa, certo? Errado. Depressa percebi que era um local de tortura atroz. E que o diabo do homem faz jus ao nome que tem: Selvagem. Dr. Selvagem. Durante quase 45 minutos, puxou-me a cabeça como se me quisesse fazer crescer uns centímetros, apertou-me o pescoço, desfez-me as articulações dos ombros, tentou arrancar-me os braços do corpo… Eu só pensava que não ia sair dali viva. Perguntou-me se além dos ombros não me doía também o pescoço e a nuca… Não, antes de ele me pôr as mãos em cima, só me doíam mesmo os ombros. Quando acabou, esse era o menor dos meus males. Doía-me tudo. Até partes do meu corpo cuja existência eu desconhecia.

Na segunda sessão, entrei a medo. Muito medo. Levei o meu amor como motorista, com indicações para trasladar o corpo para a pátria-mãe caso eu não sobrevivesse. Mas o Dr. Sauvage avisou que desta vez ia ser mais meigo. Suspirei de alívio. Mandou-me deitar de barriga para baixo na marquesa e pôr os braços nuns apoios especiais. O problema é que as distâncias devem estar parametrizadas para belgas gigantes e, para eu ficar na posição correcta, tive de me esticar toda. Depois, despejou-me um gel gelado nas costas e espetou-me umas ventosas nos ombros. Disse que era apenas uma “corrente anti-dor”… Anti-dor, o caraças! Aquela porcaria ia aumentando de intensidade até me dar uma espécie de choques que faziam com que os meus músculos ganhassem vida própria. Juro que a corrente chegava até ao rabo. E largou-me ali uns bons 20 minutos, debaixo de uma lâmpada que me esturricava o corpo todo. Quando acabou aquela tortura, começou a fazer-me massagens. Pensei que finalmente, muitos anos depois, ia ter as tão desejadas massagens. Qual, quê… Volta e meia, zás! Dava-me umas pancadas, tipo karateca a partir uma pilha de tijolos. E, no fim, já comigo meia-morta, voltou aos exercícios iniciais. Puxa cabeça, estica braços, aperta o pescoço, parte ombros…

Sai dali completamente exausta. Como se tivesse levado uma sova na calada da noite, num beco sombrio. Quando me viu, o meu amor levantou-se muito depressa para me amparar. Parece que eu estava branca como a cal. Já no carro, confessou-me que achou que o Dr. Sauvage tinha cara de sádico. Eu concordo. Ainda não percebi por que raio de motivo toda a gente fala dele com tal adoração. Se eu tivesse que pagar os quase 800 euros que este tratamento vai custar, acho que o matava. Assim, o melhor que tenho a fazer é ir aprendendo a rezar para ver se consigo sobreviver às dezasseis sessões que ainda me faltam fazer…

terça-feira, 6 de maio de 2014

Se Maomé não vai à montanha…

(desculpem ainda estar a narrar as aventuras do fim-de-semana na terça,

 mas isto agora só lá vai aos bocadinhos)



Ora, então, tínhamos ficado no Sábado… quando obriguei os meus homens a irem ao mercado de Maastricht no dia errado. Há muito tempo que andava a sonhar com este passeio, que estávamos sempre a adiar porque os miúdos têm aula de equitação à tarde. Acabou por ser um dia muito bem passado, embora tenha ficado desiludida por não ter visto as velharias que ando a cobiçar para a casa nova.

Mas eis senão quando, no Domingo, acordámos às 7 de manhã com barulho à porta de casa. Um ruído de fundo que, aos poucos, ia aumentando de intensidade. Uma espécie de bruaá de feira. Por momentos, pensei que estava a sonhar. Que tinha transformado por artes mágicas o meu sonho de ir ao mercado em realidade.

Com esta história de estar de baixa, perdi a conta aos dias e esqueci-me da venda de garagem anual que fazemos em Malempré no primeiro fim-de-semana de Maio. Ou seja… era mesmo verdade! A feira da ladra que eu tanto queria veio literalmente bater-me à porta. Como tivemos durante várias semanas um anúncio a dizer “Aluga-se” afixado na janela, o pessoal deve ter pensado que já nos tínhamos mudado e assentou arraiais mesmo aqui em frente. Foi o cabo dos trabalhos para conseguirmos sair para ir passear o D. Fuas. E o meu carro ficou bloqueado no estacionamento, rodeado por móveis velhos e tralha até ao final da tarde. Mesmo que não quiséssemos, ficámos aqui presos o dia todo.

A aldeia encheu-se de gente. Os vizinhos, mais ou menos abastados, expuseram os seus pertences à porta de casa ou nas garagens. Móveis, roupa, livros, brinquedos, jogos, DVD’s. Os mais dotados, expuseram as suas obras de arte. Ou coisas antigas que vieram directamente dos sótãos dos avós. Até cavalos e burros estavam à venda. A criançada fez espetadas de gomas e percorria as ruas a vendê-las a 1 euro. O grupo de jovens de Malempré montou uma barraca onde vendiam uns cachorros quentes deliciosos com batatas fritas. E cerveja, claro. Ou não estivéssemos nós em plenas Ardenas…

Felizmente, não tinha muito dinheiro na carteira e a festa saiu-me barata. Depois de almoçarmos cachorros, comprei umas sandálias Geox para o Vasco por 5 euros e um móvel para a cozinha por 2 euros. O Vasco atascou-se às espetadas dos amigos e comprou uma banda desenhada e um boneco com os 5 euros que lhe dou de mesada. O Diogo preferiu guardar o dinheiro dele para me comprar uma prenda de anos no final do mês. O meu amor desencantou um jogo de xadrez por 3 euros. Ainda lhe tentei explicar que com o mau perder que reina nesta casa, comprar um xadrez de vidro era capaz de não ser boa ideia… mas o homem iniciou uma cruzada implacável que visa substituir os jogos virtuais pelos velhinhos jogos de tabuleiro. A verdade é que à tarde, enquanto eu descansava, estiveram horas entretidos com aquilo.
 
Ficam algumas fotografias que fomos tirando, enquanto cumprimentávamos vizinhos e amigos. Eis a nossa casa...
 





segunda-feira, 5 de maio de 2014

Passeios de fim-de-semana – Maastricht, Holanda

(porque os meus ombros

ainda não aguentam mais do que uma hora de carro)


Sou absolutamente incapaz de viver muito tempo num sítio sem mudar a decoração. Fico com nervoso miudinho. Quanto mais feliz estou, mais me apetece virar a casa do avesso. Mas, por mais voltas que dê, não há lá grande coisa que se possa fazer num T1… Por isso, desde que sei que vamos mudar de casa, ando imbuída de espírito decorativo. E como tenho um pé a fugir para o chinelo, isso traduz-me por uma vontade imensa de percorrer feiras, vasculhar velharias, calcorrear vendas de garagem, ver lojas de móveis em segunda mão. Ando tão entusiasmada com a ideia de decorar aquela casa enorme, que até já nem fico chateada por perder tempo na sala de espera dos vários consultórios que tenho visitado ultimamente. Mal entro, atiro-me logo às revistas de decoração, arquitectura, jardinagem… No outro dia, só por vergonha é que não pedi ao ortopedista para me emprestar uma revista velha que andava por lá perdida no meio da press people de há dez anos atrás.

No fim-de-semana, consegui finalmente contaminar os homens da casa com este anseio decorativo. Decidimos aproveitar o sol para irmos dar um pequeno passeio até Maastricht, que fica a uma hora de carro de Malempré. Lembro-me que, quando estive aqui a fazer um ano de intercâmbio, ia muitas vezes com a minha “mãe” belga ao mercado de Maastricht, aos sábados de manhã. Havia sempre uma enorme variedade de tecidos a preços bastante acessíveis. Para além de todo o tipo de velharias. Flores, fruta e legumes. Bolos…

Desta vez, mercado, nem vê-lo. Parece que agora é só às quartas e sextas-feiras. Salvou-se o passeio pela cidade que, afinal, até é bem bonita. Para mim, Lisboeta de gema, nada bate um dia passado numa cidade solarega à beira-rio. Adoro o ar cool e desempoeirado que se respira nas ruas da Holanda. Onde cada um pode fazer o que muito bem lhe apetece e ninguém tem nada a ver com isso. Como de costume, o Vasco correu à nossa frente o caminho todo, a brandir um pau contra inimigos imaginários. Conseguiu perder-se de nós e mandar abaixo uns dez ciclistas. Como de costume, o Diogo seguiu-nos contrariado com uma cara carrancuda, a arrastar os pés. Adolescência oblige. Por estranho que possa parecer, no final do dia, ambos agradeceram o passeio com a mesma efusão. E eu recebi uma prenda. À falta de velharias, o meu amor desencantou um rádio retro numa loja, que vai ficar a matar na minha secretária.










 

[ Mais tarde, continuo a narrar as aventuras deste fim-de-semana…porque o mercado acabou mesmo por vir literalmente bater-me a porta de casa no Domingo. Agora, tenho de ir fazer mais uma sessão de fisioterapia. Espero que a sala de espera esteja repleta de revistas de decoração! ]

sexta-feira, 2 de maio de 2014

O meu calcanhar de Aquiles

(e uma semana de baixa)


Há muitos séculos atrás, numa outra vida… Ou não, visto que voltei a andar a cavalo quando iniciei esta nova vida. Recomeçando… Há muitos séculos atrás – mais precisamente quando eu tinha 18 anos – dei uma aparatosa queda a cavalo. A bem dizer da verdade, em seis meses dei todas as quedas a cavalo que nunca tinha dado em três anos de equitação. O meu professor obrigou-me a passar pela tortura dos saltos de obstáculos, antes de me deixar avançar para o dressage, a minha grande paixão e objectivo desde o primeiro dia.

Foram meses de puro terror, em que detestei cada segundo. Os nervos provocavam-me dores de barriga horas antes das aulas e um cansaço imenso quando acabavam. Não gostava dos cavalos, não gostava dos exercícios, não gostava dos colegas. Nas primeiras aulas, tínhamos de saltar pequenos obstáculos de olhos vendados e mãos amarradas atrás das costas. Para nos habituarmos a confiar no cavalo e a seguir instintivamente o movimento do seu corpo. E para aprendermos a cair. Apesar das muitas quedas, acho que nunca consegui aprender a cair. Ora era projectada pelos ares, ora ia direita de cabeça ao chão ou, a humilhação suprema, caía de rabo.

Num dia de ventania, estava eu no picadeiro exterior com uma besta louca disfarçada de cavalo. Era um bicho enorme, branco, com um olho de cada cor. Um animal bastante traumatizado que tinha vindo de um circo. Quando se virava para nós para nos fitar com o olho azul, sabíamos que dali não vinha coisa boa. Nunca. E, naquele dia, eu estava a tentar que ele saltasse um obstáculo duplo, separado por uns arbustos que abanavam com o vento e que o assustavam. À primeira recusa, ouvi um grito do professor. À segunda recusa, ouvi uma série de impropérios. À terceira recusa, já não ouvi nada… o Olho Azul galopou feito louco direito à porta do picadeiro e atirou-me pelos ares lá para fora. Infelizmente, não calculou bem a coisa e fui projectada contra a porta. Parti-a com as pernas e acabei por aterrar do outro lado, meia inerte. Foi a primeira vez que ouvi o meu professor falar meigamente.

Três semanas de cama e estava pronta para outra. Os meus ombros é que não. Nunca mais recuperei completamente. Ficou para sempre o meu calcanhar de Aquiles. Volta e meia, um dos ombros deslocava-se e provocava umas dores horríveis. Aprendi a pô-lo no sítio sozinha e a viver com este mal-estar permanente. De vez em quando, fazia umas sessões de acupuntura e ficava como nova. Na altura, no hospital, disseram-me que isto se haveria de tornar mais grave dali por muitos anos, quando começasse a envelhecer. Claro que, aos 18 anos, o envelhecimento é uma névoa longínqua.

Mas, nos últimos tempos, as dores tem-se intensificado. E um dos ombros “quebra”, por assim dizer, com maior frequência. Durante uns dias, pareço um pássaro com uma asa partida. Depois, acaba por passar. Que eu nunca fui cliente assídua de médicos, nem grande adepta de medicamentos. O problema é que, para me proteger da dor no ombro, posiciono mal o corpo e depois ando cheia de dores em tudo quanto é sítio. Na segunda-feira passada, fui obrigada a visitar o meu médico de clínica geral, quando não me consegui mesmo levantar de manhã. Lá no trabalho, desde que começámos a tirar as centenas livros das velhas estantes da biblioteca e a desmontá-las, que os meus ombros se ressentiram. O facto de dormir a dois numa cama de solteiro também não deve ter ajudado…

Após consultar a minha ficha e fazermos umas contas rápidas de cabeça, o médico decidiu que estas crises mereciam finalmente exames mais exaustivos, porque se estavam a tornar cada vez mais frequentes. Foi precisamente esta a palavra que ele usou, quando ligou para a clínica a marcar os ditos exames: “Exaustivos”. Dois dias depois, percebi que o termo se aplicava às mil maravilhas à situação. Saí de lá completamente exausta. Como se me tivessem dado uma tareia. Nunca na minha vida tinha tirado tantas radiografias. Parecia uma verdadeira modelo profissional: “Mais um bocadinho para a direita”, “Ponha a mão na anca”, “Levante o queixo”, “Agora, de perfil”. Depois, as ecografias… e mais não sei quantas instruções. E, no fim, o veredito final: uma tendinite calcificante nos dois ombros. Eis-me recambiada de volta para o meu médico. Prognósticos só depois do jogo, que é como quem diz, depois da consulta na sexta-feira.

Entretanto, cá estou eu em casa de baixa. A anti-inflamatórios e analgésicos, que é coisa que eu detesto. Fico resmungona e sonolenta. O meu amor assumiu o comado das operações: faz de enfermeiro, motorista, besta de carga, cabeleireiro, empregada doméstica. Polícia. Controla se tomo os medicamentos todos, se repouso, se não escrevo neste blog… Finalmente, caiu para o lado de cansaço e eu consegui dar aqui um pulinho na calada da noite para contar as novidades. :)

Sobre esta saga, queria apenas tecer algumas considerações que me parecem importantes para se compreender o sistema de saúde deste país, onde as pessoas têm de estar inscritas numa Mutuelle privada que custa uma ridicularia por mês. Na segunda-feira, sinto-me mal e consigo consulta umas horas depois no meu médico de clínica geral, numa aldeola aqui ao lado, que se encarrega de ligar para a clínica para marcar os exames. Pago 1 euro pela consulta. Na quarta-feira, em Vielsalm, em pouco mais de uma hora, faço sem exagero umas 15 radiografias, 2 ecografias bidimensionais e sou vista por um especialista. A clínica envia no próprio dia por email os resultados dos exames ao meu médico. Pago 17 euros. Na sexta-feira, tenho nova consulta para avaliar a situação. Vou pagar mais 1 euro. Como tinha tudo o que precisava em casa, não sei exactamente quanto gastei nos medicamentos que estou a tomar, mas não deve ter sido nada de especial se não lembrar-me-ia.

Ah… quando mandei um sms ao meu chefe a avisar que o médico me tinha posto de baixa esta semana, respondeu-me que o importante era a saúde, não o trabalho. Tenho recebido imensas mensagens dos colegas a perguntar se estou melhor e se preciso de algo. Trabalho na Apem-T21 há três meses, mas sinto que me tratam como se lá trabalhasse há anos.
 

[ O médico especialista perguntou o historial da praxe. E lá narrei a minha queda do Olho Azul. “Suponho que depois disso deixou de montar a cavalo…”  Hum… nem por isso. Mas não monto tanto quanto gostaria. Agora ando mais a pé do que a cavalo!”  “E os seus filhos, que desporto praticam?”  “Equitação. Porquê?”  “Por nada, minha senhora, por nada. Acho que está tudo dito.” ]