sexta-feira, 2 de maio de 2014

O meu calcanhar de Aquiles

(e uma semana de baixa)


Há muitos séculos atrás, numa outra vida… Ou não, visto que voltei a andar a cavalo quando iniciei esta nova vida. Recomeçando… Há muitos séculos atrás – mais precisamente quando eu tinha 18 anos – dei uma aparatosa queda a cavalo. A bem dizer da verdade, em seis meses dei todas as quedas a cavalo que nunca tinha dado em três anos de equitação. O meu professor obrigou-me a passar pela tortura dos saltos de obstáculos, antes de me deixar avançar para o dressage, a minha grande paixão e objectivo desde o primeiro dia.

Foram meses de puro terror, em que detestei cada segundo. Os nervos provocavam-me dores de barriga horas antes das aulas e um cansaço imenso quando acabavam. Não gostava dos cavalos, não gostava dos exercícios, não gostava dos colegas. Nas primeiras aulas, tínhamos de saltar pequenos obstáculos de olhos vendados e mãos amarradas atrás das costas. Para nos habituarmos a confiar no cavalo e a seguir instintivamente o movimento do seu corpo. E para aprendermos a cair. Apesar das muitas quedas, acho que nunca consegui aprender a cair. Ora era projectada pelos ares, ora ia direita de cabeça ao chão ou, a humilhação suprema, caía de rabo.

Num dia de ventania, estava eu no picadeiro exterior com uma besta louca disfarçada de cavalo. Era um bicho enorme, branco, com um olho de cada cor. Um animal bastante traumatizado que tinha vindo de um circo. Quando se virava para nós para nos fitar com o olho azul, sabíamos que dali não vinha coisa boa. Nunca. E, naquele dia, eu estava a tentar que ele saltasse um obstáculo duplo, separado por uns arbustos que abanavam com o vento e que o assustavam. À primeira recusa, ouvi um grito do professor. À segunda recusa, ouvi uma série de impropérios. À terceira recusa, já não ouvi nada… o Olho Azul galopou feito louco direito à porta do picadeiro e atirou-me pelos ares lá para fora. Infelizmente, não calculou bem a coisa e fui projectada contra a porta. Parti-a com as pernas e acabei por aterrar do outro lado, meia inerte. Foi a primeira vez que ouvi o meu professor falar meigamente.

Três semanas de cama e estava pronta para outra. Os meus ombros é que não. Nunca mais recuperei completamente. Ficou para sempre o meu calcanhar de Aquiles. Volta e meia, um dos ombros deslocava-se e provocava umas dores horríveis. Aprendi a pô-lo no sítio sozinha e a viver com este mal-estar permanente. De vez em quando, fazia umas sessões de acupuntura e ficava como nova. Na altura, no hospital, disseram-me que isto se haveria de tornar mais grave dali por muitos anos, quando começasse a envelhecer. Claro que, aos 18 anos, o envelhecimento é uma névoa longínqua.

Mas, nos últimos tempos, as dores tem-se intensificado. E um dos ombros “quebra”, por assim dizer, com maior frequência. Durante uns dias, pareço um pássaro com uma asa partida. Depois, acaba por passar. Que eu nunca fui cliente assídua de médicos, nem grande adepta de medicamentos. O problema é que, para me proteger da dor no ombro, posiciono mal o corpo e depois ando cheia de dores em tudo quanto é sítio. Na segunda-feira passada, fui obrigada a visitar o meu médico de clínica geral, quando não me consegui mesmo levantar de manhã. Lá no trabalho, desde que começámos a tirar as centenas livros das velhas estantes da biblioteca e a desmontá-las, que os meus ombros se ressentiram. O facto de dormir a dois numa cama de solteiro também não deve ter ajudado…

Após consultar a minha ficha e fazermos umas contas rápidas de cabeça, o médico decidiu que estas crises mereciam finalmente exames mais exaustivos, porque se estavam a tornar cada vez mais frequentes. Foi precisamente esta a palavra que ele usou, quando ligou para a clínica a marcar os ditos exames: “Exaustivos”. Dois dias depois, percebi que o termo se aplicava às mil maravilhas à situação. Saí de lá completamente exausta. Como se me tivessem dado uma tareia. Nunca na minha vida tinha tirado tantas radiografias. Parecia uma verdadeira modelo profissional: “Mais um bocadinho para a direita”, “Ponha a mão na anca”, “Levante o queixo”, “Agora, de perfil”. Depois, as ecografias… e mais não sei quantas instruções. E, no fim, o veredito final: uma tendinite calcificante nos dois ombros. Eis-me recambiada de volta para o meu médico. Prognósticos só depois do jogo, que é como quem diz, depois da consulta na sexta-feira.

Entretanto, cá estou eu em casa de baixa. A anti-inflamatórios e analgésicos, que é coisa que eu detesto. Fico resmungona e sonolenta. O meu amor assumiu o comado das operações: faz de enfermeiro, motorista, besta de carga, cabeleireiro, empregada doméstica. Polícia. Controla se tomo os medicamentos todos, se repouso, se não escrevo neste blog… Finalmente, caiu para o lado de cansaço e eu consegui dar aqui um pulinho na calada da noite para contar as novidades. :)

Sobre esta saga, queria apenas tecer algumas considerações que me parecem importantes para se compreender o sistema de saúde deste país, onde as pessoas têm de estar inscritas numa Mutuelle privada que custa uma ridicularia por mês. Na segunda-feira, sinto-me mal e consigo consulta umas horas depois no meu médico de clínica geral, numa aldeola aqui ao lado, que se encarrega de ligar para a clínica para marcar os exames. Pago 1 euro pela consulta. Na quarta-feira, em Vielsalm, em pouco mais de uma hora, faço sem exagero umas 15 radiografias, 2 ecografias bidimensionais e sou vista por um especialista. A clínica envia no próprio dia por email os resultados dos exames ao meu médico. Pago 17 euros. Na sexta-feira, tenho nova consulta para avaliar a situação. Vou pagar mais 1 euro. Como tinha tudo o que precisava em casa, não sei exactamente quanto gastei nos medicamentos que estou a tomar, mas não deve ter sido nada de especial se não lembrar-me-ia.

Ah… quando mandei um sms ao meu chefe a avisar que o médico me tinha posto de baixa esta semana, respondeu-me que o importante era a saúde, não o trabalho. Tenho recebido imensas mensagens dos colegas a perguntar se estou melhor e se preciso de algo. Trabalho na Apem-T21 há três meses, mas sinto que me tratam como se lá trabalhasse há anos.
 

[ O médico especialista perguntou o historial da praxe. E lá narrei a minha queda do Olho Azul. “Suponho que depois disso deixou de montar a cavalo…”  Hum… nem por isso. Mas não monto tanto quanto gostaria. Agora ando mais a pé do que a cavalo!”  “E os seus filhos, que desporto praticam?”  “Equitação. Porquê?”  “Por nada, minha senhora, por nada. Acho que está tudo dito.” ]



5 comentários:

  1. As melhoras rápidas e espero que consigam encontrar-te uma terapia para que as crises não se repitam (pelo menos não tão frequentemente).

    Acho que compreendo o teu médico especialista ;)

    ResponderEliminar
  2. Quando se gosta, as dores quase desaparecem. :)
    As melhoras!

    ResponderEliminar
  3. Já estava a estranhar a tua ausência. Beijinho de melhoras.

    ResponderEliminar
  4. Vários comentários:

    (1) Há treinadores, professores (e, já agora, também alguns pais - de que conheci alguns no basket e outros no hóquei) que, com inteiro desprezo pelo que as crianças manifestam ou revelam, em matéria de gosto ou jeito, os forçam a fazer coisas para que não têm gosto, nem jeito, porque são as mais visíveis a curto prazo - e lhes dão a eles (treinadores, professores ou pais) prestígio ou gozo.. mesmo que as crianças não tirem disso qualquer gozo, ou mesmo possam vir a ter prejuízos severos.

    (2) Há menores de 18 anos que estão convencidos que "sabem tudo" e sabem decidir sobre tudo, do estilo "eu resolvo". Outros, fazem como devem: pedem aos pais para irem lá falar com o treinador ou professor e PROIBIR a actividade - ou antes ou logo depois da segunda queda...

    (3) Em qualquer caso, porque é que não se meteu um processo a esse pateta por "homicídio involuntário" (felizmente, na forma não consumada)?

    (4) Mas agora, olha, é ter paciência e fazer tratamentos...

    ResponderEliminar
  5. Porque é que não metemos um processo ao pateta do Olho Azul?! Porque era um pobre animal traumatizado que só não queria saltar aquele obstáculo. ;)

    ResponderEliminar