sábado, 31 de outubro de 2015

Por outro lado, é um doce de miúdo

(onde se mostra que o filho pequeno também consegue ser fofinho)


 

Fomos ao supermercado. O Vasco olhava fixamente para um miúdo pequenino à nossa frente, na fila da caixa. De sobrolho franzido, fez questão de marcar posição. O miúdo olhava de esguelha para ele, muito colado à mãe. Mal se foram embora, a coisa pequena contou-me a história.

Vasco: Reparaste naquele menino, mãe?
Eu: É da tua escola?
Vasco: Sim. Hoje, apanhei-o no recreio dos grandes e mandei-o embora.
Eu: E ele?
Vasco: Ignorou-me. Deixei-o brincar mais um bocadinho e, depois, voltei a mandá-lo para o recreio dos pequeninos. Ele fingiu que não ouviu e não se foi embora.
Eu: E tu?
Vasco: Chamei uma amiga e disse-lhe: “Estou a ver que isto vai exigir medidas drásticas!”. E tentámos tirá-lo dali à força. Mas sabes o que ele fez?
Eu: O quê?
Vasco: Cuspiu-me na cara.
Eu: Como?!
Vasco: Cuspiu-me!
Eu: Que nojo! E tu, o que fizeste?
Vasco: Ora… limpei com a manga do casaco, disse-lhe que isso não se fazia e fui pô-lo no recreio dos pequeninos.
Eu: Não chamaste ninguém para fazer queixa do miúdo?
Vasco: Ohhh… não valia a pena fazer uma cena por causa disto! Foi só uma cuspidela, mãe! As crianças pequenas não sabem o que fazem. Não foi por mal, ele ainda é pequenino, sabes? Está na maternelle. Temos de ter muita calma com eles. Sou querido, não sou?

 

[ Na Bélgica, quase todas as escolas têm pré-primária e primária juntas… com miúdos entre os 2 e os 12 anos. Sempre me impressionou a mistura de idades no recreio da escola do Vasco, no final da tarde. Durante o tempo de aulas, há recreios pré-definidos para cada grupo. Mas, como não há divisórias, às vezes lá há um que consegue escapar. Confesso que pensei inúmeras vezes, com um misto de egoísmo mal disfarçado, que felizmente os meus rapazes já eram crescidos. E suspirei de alívio por não querer ter mais filhos, neste país. Seria absolutamente incapaz de deixar um bebé andar à solta por ali, no meio dos jogos de futebol, dos berlindes ou das lutas dos mais crescidos. Até me podem falar das vantagens de ter grupos etários mistos e o diabo a quatro, não me convencem. Mas não há dúvida que o contacto com os pequeninos é extremamente benéfico para os mais velhos… ]

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Lista negra

(balanço feito pela mãe, após dois meses de aulas...

e os argumentos altamente imaginativos do filho)


 

Saldo Negativo:
  • 5 Pares de calças rasgadas “a jogar à bola ou ao berlinde” (umas são de pijama)
  • 1 Ténis “mas já eram velhos” (1 mês)
  • 2 Lancheiras “que hão-de aparecer um dia destes, mas talvez uma esteja partida”
  • 1 Leggings de ballet “misteriosamente” rasgadas
  • 8 Lápis e ½ “usados”
  • 1 Botas “que já não servem”
  • 3 Camisolas manchadas de tinta nas costas, “vê-se logo que foi outra pessoa”
  • 2 Sweat-shirts rasgadas “a brincar no recreio”
  • 1 Kispo rasgado-e-reparado-e-rasgado-e-reparado, “mas era do ano passado”
  • 4 Canetas de tinta permanente, “não prestam, partem-se todas a escrever”
  • 1 Colchão, lençol, édredon e respectiva capa, porque “a caneta preta abriu-se sozinha durante a noite” (tudo com apenas 1 semana de uso)
  • 1 Conjunto de toilette, meias, boxers, sweat-shirts, que “alguém deve ter levado por engano na classe verte
  • 1 Casaco porque “estava muito calor”

 
Saldo Positivo:
  • 1 Meia que “alguém meteu por engano na mala, na classe verte
  • 1 Casaco “parecido ao meu”
  • 1 Touca da piscina “parecida com a do Meddy”


 
 
 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

A cenoura e a anti-cenoura

(ou as maravilhas da adolescência)


 

O ensino obrigatório na Bélgica divide-se em ciclos de seis anos: ensino primário e secundário. A avaliação é contínua. Não há dois testes por período, como em Portugal, mas pequenos “controlos” o ano inteiro. Ou seja, a matéria dada é de imediato controlada/avaliada. Todas as semanas, fazem pequenas avaliações. Mal o aluno tenha negativa é enviado para a “remédiation”, onde um professor da disciplina revê a matéria. (Breve parêntesis para dizer que o Diogo foi à remédiation de Inglês com 13 valores, nota muito inferior ao habitual.) Em Dezembro e em Junho, fazem exames internos que duram, no mínimo, duas horas (no secundário podem durar quatro). A cada dois anos, os exames são nacionais. E isto desde o primeiro ano, com apenas seis anos. É naturalíssimo, não há cá pais stressados, nem meninos a vomitar com nervos. Na primária, fazem os exames de manhã e, à tarde, preparam o seguinte. No secundário, têm duas semanas de pausa lectiva para estudar antes da época de exames. No colégio do Diogo, os primeiros anos têm direito a coaching escolar gratuito. Fazem sessões de estudo individual e acompanhado, bem como diversas actividades para descomprimir. Nos últimos anos, é suposto serem autónomos.

O resultado deste sistema de avaliação é que as crianças criam hábitos de estudo cedo. Não há outra solução. O Vasco nunca traz muitos trabalhos de casa, mas tem de estudar todos os dias para preparar os testes e o ditado da semana. Nem sequer é preciso dizer nada, é a primeira coisa que faz quando chega (depois de enfardar o segundo lanche da tarde). Durante a época de exames, é impressionante a quantidade de horas que este miúdo é capaz de ficar concentrado a estudar sozinho. E, o mais importante, em oito anos de vida adquiriu um enorme prazer em aprender. A sua curiosidade insaciável sempre foi estimulada pela escola belga, onde teve a sorte de iniciar o percurso escolar.

Com o filho crescido, as coisas são diferentes. O Diogo também é um miúdo inteligente e que gosta de aprender. Mais, adora a escola onde anda. Sente-se bem lá, gosta do ambiente, do espaço... Este ano chegou a lá ir, no início de Setembro, dar uma espreitadela para matar saudades. Adora os colegas e a generalidade dos professores. Excepto Matemática, gosta de todas as disciplinas. Passado o choque de o termos obrigado a escolher Ciências 5, até disse que adorava as aulas práticas, no laboratório. O único problema é que o Diogo entrou neste regime escolar depois de cinco longooos anos de ensino português, onde se habituou à lei do menor esforço. Ao conhecimento colado a cuspo na véspera dos testes, sem quaisquer hábitos ou método de estudo.

Quando o Diogo chegou à Bélgica, no final do 5º ano, regressou à escola primária. Trabalhou muito para aprender a língua e conseguir fazer os exames nacionais de acesso ao ensino secundário. Mas, fundamentalmente, a nível dos programas escolares, a dificuldade não era grande para um miúdo esperto como ele.

No ano seguinte, enquanto os colegas se estavam a habituar a um novo sistema bastante mais exigente, com professores e disciplinas diferentes, nada daquilo era novidade para o Diogo. Nos dois primeiros anos do secundário teve sempre boas notas apesar de pouco estudar. Sobreviveu à custa de alguns conhecimentos mais avançados que trazia de Portugal. Da excelente cultura geral e da lendária memória de elefante. Sobreviveu com uma certa sobranceria, diga-se de passagem.

Mas, no 3º ano, as coisas mudam radicalmente. Na Bélgica, o sistema separa o trigo do joio muito cedo. Demasiado cedo, a meu ver. Os alunos com piores resultados são encaminhados para o ensino técnico logo no 3º ano. Se a coisa continuar a correr mal, são depois encaminhados para o ensino profissional. Não há abandono escolar, mas o ensino vai-se adaptando às “capacidades” do aluno. No final do 6º ano, há quem siga para a universidade, para o ensino tecnológico ou para o mundo do trabalho, já com um diploma profissionalizante. É de referir que o acesso a certo tipo de profissões está vedado a quem não possuir estes diplomas específicos.

O Diogo está no ensino designado por “geral”. Numa rede de colégios privados inserida no ensino católico, o mais exigente. Aliás, tal como o Vasco. A nossa escolha não se deveu ao acaso. Nem à fé cristã ou ao espírito elitista. Muito menos à proximidade geográfica, bem pelo contrário… mudámo-nos para esta terra exactamente por causa das escolas. E estamos longe de sermos os únicos. Num país onde a estratificação (segregação?) começa tão cedo, há que oferecer-lhes a melhor educação possível.

Deste modo, percebe-se que o nível de exigência no 3º ano aumente exponencialmente. É preciso estudar a sério para se ter boas notas, já não se consegue viver à sombra de conhecimentos passados. Ora o Diogo não estava minimamente preparado para dar este salto, porque infelizmente a formatação que recebeu em Portugal é difícil de apagar. E as notas começaram a descer nestes primeiros dois meses de aulas, obviamente. Nada que nos surpreendesse, já estávamos à espera disto há algum tempo. Mas o Diogo continua estupefacto, sem reacção. Incomodado por já não ter as excelentes notas a que estava habituado, mas ainda não completamente convencido de que terá mesmo de mudar de atitude face ao estudo daqui para a frente.

Começámos por ter grandes conversas com o Diogo que – adolescência oblige – não tiveram qualquer efeito. Depois, decidimos meter mãos à obra e ajudá-lo a estudar. Mas eu não tenho paciência. Só de ver aquela mochila, tenho ataques de nervos. Apetece-me gritar. O meu amor é mais calmo, mais eficaz… e bastante mais torcionário. Decidiu controlar-lhe os cadernos e a matéria dada, como faria a um miúdo mais pequeno. O Journal de classe. Obriga-o a recopiar textos ilegíveis e a organizar folhas perdidas. Fez-lhe um ficheiro Excel que tem de ir actualizando com as notas. Dá-lhe explicações quase diárias de Matemática e Ciências, para desespero do Diogo. Eu vou começar a dar-lhe explicações de inglês, para ver se regressamos às médias habituais. Até agora, ainda não houve resultados. Excepto as crises de resmunguice juvenis (que eu, aliás, compreendo perfeitamente… se a minha mãe me tivesse arranjado um padrasto destes, o mais certo era ter fugido de casa). O Diogo não se tornou mais humilde, nem mais aberto à aprendizagem. Ainda não aceitou que, a partir de agora, terá de começar a ser mais organizado e a criar uma rotina de estudo quotidiana.
 
Percebi que isto precisava de medidas drásticas e decidi adoptar a conhecida teoria da cenoura. Comprei bilhetes para a antestreia mundial do novo Star Wars, exclusiva na Bélgica, França e Holanda. Imprimi os bilhetes e disse-lhe que os pregasse no quadro de cortiça por cima da secretária. Quando lhe der a preguiça e a motivação falhar, só tem de olhar para ali. Caso as notas não comecem a subir, pode oferecer as entradas a um amigo qualquer, porque eu não o levo. É que não levo mesmo, por mais que ele esperneie. O meu amor riu-se muito, quando lhe falei da minha teoria da cenoura. Achou que era mais um voto de confiança, mas enfim… E decidiu combiná-la com outra teoria educativa, acabada de sair da forja: a teoria da anti-cenoura. Num novo quadro, rabiscou um horário de estudo carregadíssimo. Uma coisa horrorosa. Comentei que me parecia um bocadinho excessivo… para não dizer claramente insuportável. Respondeu-me que era de propósito. A teoria da cenoura puxa à frente, a teoria da anti-cenoura empurra atrás. Uma dá motivação, a outra aversão. O objectivo, segundo o meu amor, é fazer com que o Diogo deseje que aquela tortura acabe o mais depressa possível. “Ele há-de começar a estudar a sério… quanto mais não seja, para se conseguir ver livre de mim!”, explicou-me. Hum... acho que comigo não teria resultado, mas eu nunca tive o brio escolar dos meus filhos.

Ambas as teorias juntas, passe o pleonasmo, entraram na fase dos testes preliminares. Daqui por umas semanas, comunico os resultados. Talvez até faça aqui um sorteio, quem sabe? Será o primeiro giveaway do Amigo Imaginário, onde se oferecem três bilhetes para a antestreia mundial de Star Wars – The Force Awakens. Só terão de vir a Liège no dia 16 de Dezembro, claro. E trazerem-nos um cházinho para os nervos.

sábado, 24 de outubro de 2015

O que há de errado nesta imagem?

(uma espécie de quiz para mães desesperadas)






a)    Demasiada merda do Star Wars
b)    O Mike Wazowski de pernas para o ar
c)    Umas leggings de ballet novas com uma joelheira

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Queria pedir-vos um favorzinho

(este blog é uma vergonha, não oferece nada e ainda pede)


 

Nestes últimos tempos, o Vasco tem andado especialmente interessado pela arte epistolar. Anda fascinado com tudo o que diga respeito a cartas, postais e demais envios pelo velhinho sistema dos correios. A coisa começou pelo postal que me enviou, em conluio com o meu amor, quando esteve na classe verte. Por coincidência, pouco depois, andaram a estudar o assunto na escola. E o bichinho ficou-lhe. Mal chegamos a casa, pede sempre para abrir a caixa do correio… e fica muito desiludido por nunca haver correspondência para ele. No outro dia, pediu-me numa voz tremida: “Escreves-me uma carta, mãe? Gostava tanto de receber uma carta enviada para mim...” Partiu-me o coração. E comecei a puxar pela cabeça, que ideias parvas é comigo mesmo.

Vai daí, lembrei-me que a coisa pequena está quase a fazer anos. Nove anos! A 25 de Novembro, para ser mais exacta. Já pedi à família para mandar um postal, mas gostava que ele recebesse mais cartas… Muitas cartas! Será que há por aí alguma alma caridosa que não se importe de mandar um postal de aniversário ao Vasco? Ou uma simples carta, não importa. A forma não é importante, o conteúdo provavelmente também não. O que conta é o meio de transmissão. Que venham de Portugal ou de qualquer outra parte do mundo, ele ficará sem dúvida muito feliz. O filho pequeno é um cosmopolita!
 
O Vasco adora ver as fotografias dele que ponho aqui, no blog. Está sempre a pedir para ser fotografado. Também gosta muito quando fazem comentários sobre a sua pequenina pessoa. Embora nenhum dos meus filhos se interesse por aí além por aquilo que eu vou escrevendo, este blog faz parte da nossa vida familiar. Parece-me que faz todo o sentido receberem um feedback aí, do vosso lado. Acho que seria uma surpresa engraçada.

Quem quiser escrever ao Vasco, pode mandar para a associação onde trabalho:

Inclusion asbl
M. Barroso
4, Rue de la Maison Communale
B – 4802 Heusy
Bélgica


Do fundo do coração, obrigada!

terça-feira, 20 de outubro de 2015

O patrão

(porque ainda há gente boa)


 

Na rádio diziam que este Inverno vai ser rigoroso e que o tempo está anormalmente frio para a época. Anormalmente… ih, hi, ih!

Seja como for, percebi que não ia conseguir manter a medida draconiana que impus em nossa casa, onde o aquecedor central não é ligado antes de Novembro. Tendo em conta que as temperaturas já estão negativas durante a noite, talvez seja melhor abrir uma excepção. Apressei-me, então, a ligar para a empresa que nos vem encher a cisterna de mazout.

Eu: Queria encomendar 500 litros de mazout, para entregar o mais depressa possível.
Senhor: Conseguimos fazer-lhe a entrega daqui por dois dias, está bem?
Eu: Está óptimo, obrigada. Quanto é que fica?
Senhor: Faz de conta que a senhora vai fazer a encomenda amanhã.
Eu: Como?
Senhor: É que o litro de mazout vai baixar de preço amanhã. Ainda é uma diferença…
Eu: Ah… Obrigada pelo aviso! Então, eu volto a ligar depois.
Senhor: Não, que disparate! Fica já a encomenda feita… mas como se fosse amanhã.
Eu: Vai pôr a data de amanhã, é isso?
Senhor: Exacto! Mas entrego na mesma daqui por dois dias, não se preocupe.
Eu: Tem a certeza de que não prefere que eu ligue outra vez amanhã? Não vai ter problemas com o patrão?
Senhor: Não, o patrão é porreiro. Conheço-o bem.
Eu: Veja lá… Não me custa nada voltar a ligar-lhe.
Senhor: Deixe lá isso. O homem é boa gente.
Eu: Pronto, se tem mesmo a certeza...
Senhor: Então, não havia de ter? O patrão sou eu!

domingo, 18 de outubro de 2015

Neste domingo

(haja o que houver, temos uma nova rotina de fim-de-semana...

calcorrear os arredores de Vielsalm)





[ D. Fuas amuou quando percebeu que ia ficar em casa ]
 
  [ todos os Outonos me volto a apaixonar por esta terra ]
 
[ um tapete de musgo ]

[ o elfo ]

[ I’m the king of the world… ou da pedreira de xisto, que é a mesma coisa ]
 
  [ quase invisível ]

  [ escarpas e águias ]

[ já me largavas... ]
  
  [ à beira do precipício… ]

[ Vielsalm ao longe ]
 
  [ coisas que só o grande pode fazer ]
 
[ ele continua a dizer que não é romântico ]

[ dois anos de ortodontista, um ano de terapia da fala e quatro aparelhos depois… ]
 
  [ o meu amor fotografou ]

[ as cores do outono ]

 [ o escriba ]

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Puppet Master

(post saído ali dos rascunhos,

onde andava a marinar há demasiado tempo)



Acho que nunca vos contei que tenho uma stalker. A verdade é que ninguém presta muita atenção à sua própria sombra, pois não? É uma coisa tão banal que anda por ali, que uma pessoa até se esquece. Também nunca usei este espaço para me dirigir a semelhante criatura, apesar da sua fidelidade ao meu blog. Tenho esta ideia arreigada de que as pessoas medíocres, que procuram desesperadamente protagonismo, ficam bem mais lixadas quando são ignoradas. Gente pequenina deve ser confinada à sua pequenez. Nem sequer merecem os cinco minutos de fama que tanto almejam.

Esta personagem irrompeu na minha vida há três anos atrás, a esbracejar aos pulinhos para tentar chamar a atenção. Enfim, vamos fingir que não foi há mais tempo... As vãs tentativas de comunicação oscilam entre os ataques vilipendiosos e as súplicas delicodoces. Entre a guerra e a pacificação. Perfeitamente bipolar, a criatura. Acima de tudo, é tão insistente como uma testemunha de Jeová que leva sistematicamente com a mesma porta na cara. Ora, então, vejamos:

A personagem insinua-se na minha vida para a destruir, parto para outra profundamente agradecida.
A personagem açambarca os pertences que deixei para trás, encolho os ombros.
A personagem quer à força apresentar-se, não estou interessada.
A personagem telefona, não atendo.
A personagem manda sms, não respondo.
A personagem manda e-mail, vai para o spam.
A personagem contorna este problema, escrevendo no meio de um e-mail enviado pela sua marioneta, passo à frente.
A personagem deposita dinheiro na minha conta, gasto-o numa parvoíce qualquer. (NT: se acrescentar um zero aos 25 a malta agradece)
A personagem chantageia a nossa família e tenta confraternizar, é ignorada.
A personagem deixa flores à minha porta, vão para o lixo.
A personagem ataca via facebook, é bloqueada.
A personagem ataca via facebook de um menor, é bloqueada.
A personagem usa o facebook de uma menor para entrar em contacto comigo, a menor é bloqueada. (NT: já se percebeu que a stalker gosta muito do facebook… e de usar menores)

E assim sucessivamente, que isto não há-de ficar por aqui.

Se o assédio dura há tanto tempo e sempre o ignorei, por que raio decido quebrar agora esta minha regra? Eu explico. Sempre disse que a criatura em questão seria ignorada até ao dia em que atacasse directamente o meu ponto sensível. Aí a situação muda de figura. Sou assumidamente mãe-leoa. Quando se faz o mal trasvestido de bem – ou pelo menos de benzinho – a coisa ainda pode passar. Quando se tenta vender o mal como bem – ou pelo menos como benzinho – a coisa ainda pode passar. Só que, um dia, a máscara cai e a maldade começa a ser visível. E aí a coisa deixa de ter filtros, podendo tornar-se perigosa. Foi-me pedido a medo que guardasse segredo, que não desvendasse as confidências que me foram feitas por quem já topou o puppet master show. Porque a única pessoa capaz de conter esta maldade toda não passa agora de uma marioneta. Vou manter a promessa que fiz, a custo. No entanto, decidi abrir uma excepção para dizer à minha stalker que acabou de ultrapassar o limite. Cuidadinho.

Fica a versão mais bonita desta música, que até para passar mensagens é sempre melhor manter o nível…


PS: Aproveito este primeiro e último canal de comunicação unilateral para informar que tudo isto está arquivado. O assédio é crime. A maldade, não. A estupidez, também não. Infelizmente. Mas a vida há-de encarregar-se de pôr tudo nos devidos lugares. É só dar tempo ao tempo. E não esticar muito a corda, sim? Estou rodeada por gente que me ama… e que ama ainda mais os seres que de mim dependem. Há olhos em todo o lado, que chegam onde eu já não chego por opção. Por isso, aqui fica só mais um recadinho risível: “Vien” não é “emigrês”. A bem dizer da verdade, seria “emigrantês”, se quiséssemos ser fiéis à lógica de construção de neologismos. Viens é a segunda pessoa do singular do verbo francês venir no presente do indicativo, muitíssimo utilizado nesta casa com todo o orgulho por dois adultos que falam sete línguas, no total. É que a consoante final é muda… portanto, não se ouve! Até para se fazer piadinhas mordazes é preciso inteligência, que neste caso… como se diz em francês, n’est pas au rendez-vous

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Uma questão de tamanho

(em modo zombie)


 
Farto-me de dizer aos médicos que sou pequena, que não peso assim tanto… Ninguém me liga nenhuma. Se o Diogo com 1.72 metros e quase 60 quilos ainda não toma medicamentos com dosagem para adultos, por que raio é que eu haveria de tomar? Tenho 1.52 metros e 50 quilos! Não me parece que tenha apenas a ver com o metabolismo, há outros parâmetros que deviam ser tidos em conta. Qual é a lógica de adaptar a medicamentação à idade, independentemente do sexo, tamanho e peso do paciente? Mas, pronto, não sou médica. Eu é mais livros…

Isto tudo para dizer que, com a quantidade de analgésicos que tenho levado na última semana, não sinto tantas dores. O efeito estende-se muito para além da duração dos exames. O problema é que parece que ando sempre em alto-mar. Agarrada às paredes e de balde na mão, para prevenir acidentes. Há maneiras mais engraçadas de passar os dias. Sempre ouvi dizer que se podia ficar pedrado com este tipo de drogas, que inclusivamente podiam ser aditivas. Dos velhos tempos da juventude, em que até se fumavam umas coisas, recordo os ataques de riso, não isto…

Hoje começou a nevar nas Ardenas. Pelo menos, tenho desculpa para não sair à rua. Há que ver as coisas pelo lado positivo, certo?

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Duas mães

(porque há coisas tão boas nesta nova vida)


 

Mal acabou de jantar, o Vasco levantou-se. Sem cerimónias, instalou-se no colo do meu amor. Como faz todas as noites. Agarrou-lhe na cara com as duas mãos e disse: “Sabes que eu te amo?”. “Obrigada. Eu também te amo”, respondeu-lhe o outro enternecido. E isto, para dois seres que inventaram todo um ritual de salamaleques codificados para demonstrarem o afecto que sentem um pelo outro, foi muito. Para mim, foi tudo. Foi um passarinho a cantar dentro do meu peito, mais uma vez.

Por vezes, o Vasco engana-se. Mas nunca lhe chama “papa”. Porque isso é outra coisa. Quando se engana, o filho pequeno chama-lhe “maman”. Porque é disso que se trata. Nesta casa, somos duas mães.
 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Uma semana revisitada

(uma espécie de diário de bordo sem filtros, escrito aos bocadinhos)

 


Quinta-feira, 1 de Outubro
Dia de trabalho complicado. Em Verviers, somos apenas quatro. Metade está de baixa. A outra metade, entravada. Quando atendo o telefone, as pessoas desatam a contar a sua história. Nunca sei se devo fazer de chefe, de secretária, de assistente social ou de coordenadora do centro de documentação.

À noite, vou beber café com os meus antigos alunos de Espanhol. Querem convidar-me para continuar a dar-lhes aulas particulares. Fico comovida.

Nasceu mais um mandarim. São agora 3, resta um ovo. São uns nano-aliens nojentos sem penas, mas comovem-me na mesma.

 
Sexta-feira, 2 de Outubro
As dores esta manhã são insuportáveis. O Pascal decide ir trabalhar comigo. Suspiro de alívio só de pensar que não terei de fazer 100 km ao volante… E que vou tê-lo ao meu lado o dia inteiro. Tão bom!

Chegamos à escola do Vasco a tempo de falar com a directora, à saída. Explico que não nos sentimos muito satisfeitos por deixar a coisa pequena partir na classe verte sem conhecermos melhor a nova professora. Seria mais lógico fazer a colónia depois da reunião de pais, quando a professora soubesse o que a espera. A directora sorri. “Não estou a dizer que a senhora é mãe-galinha… Mas não se preocupe, todaaaa-a-gente-conhece-perfeitamenteeee-o-Vasco-nesta-escola. E pisca o olho ao Pascal.

Fisioterapia no final da tarde. A terapeuta-fofinha diz para ligar urgentemente à especialista em medicina de reabilitação. Estou febril. O braço está quente. “Todo o braço”, frisa. Não percebo o que quer dizer, mas ligo à médica. Deixo recado no atendedor.


Sábado, 3 de Outubro
Levanto-me cedo para levar o Vasco às aulas de ballet em Malmedy. Cada vez gosto mais destas manhãs de sábado a dois. Ele também, sai satisfeito e falador. Diz que adora os exercícios de barra no solo.
 
À tarde, vamos finalmente fazer a “Ballade des Champignons”. Um passeio nos bosques com um especialista em cogumelos (deve ter um nome científico qualquer). Esqueço as dores. No início, só encontramos cogumelos venenosos e rimos com a aselhice. Acabamos por sair de lá com o saco cheio. Mal chego a casa, cozinho alguns como o senhor nos explicou. Delicioso! Agora que sei apanhá-los, nunca mais compro cogumelos.

Festa surpresa dos 18 anos do Michael, filho da minha amiga Christine. Nenhum de nós está para aí virado, fazemos um esforço. Ficamos impressionados com o Raúl, que preparou sozinho um buffet faustoso para 65 pessoas. Fico feliz por ela ter enfim tropeçado no príncipe encantado. O Michael reencontra o pai, a madrasta e a irmã, que não vê há anos. Eu seria incapaz de um gesto tão generoso para com um animal que desapareceu da vida do filho. Choro com o discurso da Christine. Tenho tanto orgulho nesta mulher, minha “irmã do coração” como ela diz.
 

Domingo, 4 de Outubro
Obrigo-me a fazer as coisas aos bocadinhos, dormindo pelo meio. Lavar, estender e dobrar roupa. Há que aproveitar o sol, que se faz raro. Faço a mala do Vasco, riscando item por item. A minha cabeça já não é o que era. Faço os almoços e lanches da semana. D. Fuas consegue roubar boa parte. Nos últimos tempos anda insuportável, não sabemos o que fazer.

Às 21h, ligo ao meu pai. Ele aumenta a TV, mas não consigo ouvir os resultados. Procuro informação no Facebook. O Diogo vem perguntar se já sei alguma coisa. O telefone toca passado pouco tempo. Fico incrédula. Ainda estou incrédula quando o Pascal chega, horas depois. Tento explicar, falha-me a voz. Não votei. Foi o senhor da CGD em Bruxelas que me informou que os cadernos eleitorais tinham fechado, no início do Verão. Da embaixada nunca consegui informações. Merda de país. Sinto-me apátrida.

Os bebés mandarins morreram. A mãe cansou-se de andar sempre em cima deles e acabaram por morrer... gordinhos, mas enregelados. Mas estão a progredir, os primeiros foram comidos ainda dentro dos ovos. Pelo menos, deixaram o canibalismo filial.
 

Segunda-feira, 5 de Outubro
Levo o Vasco à escola cedíssimo. Vejo mães de telemóvel na mão a tirar fotos aos meninos, que partem pela primeira vez com a escola. Vejo meninos com malas maiores do que eles. O meu acenou-me calmamente e lá foi, com um pequeno trolley atrás. São muitos anos a virar frangos.

Continuo sem notícias da médica. Hesito em insistir, não gosto de chatear. O Pascal decide rumar comigo ao hospital. Em duas horas estou despachada. O médico acompanha-me à porta. Não percebo. Exames feitos. Braço imobilizado ao peito. Medicamentos num saquinho. Baixa médica passada. Não percebo. Exames mais complexos marcados. Consulta com um cirurgião especializado em ombros marcada para a semana. Não percebo. Diagnóstico: poliartrite. Que sim, que é verdade que causa dores horríveis. Ele percebe. Eu não. Mas é importante ouvir que não estou maluquinha, que o que eu sinto é mesmo muitíssimo doloroso.

No carro, o Pascal diz para não me preocupar. Só depois dos exames mais exaustivos haverá certezas. Talvez não seja isso. Mas não há-de ser grave. As doenças auto-imunes são controláveis actualmente. Não percebo. Não faço ideia do que é a poliartrite, mas as palavras dele deixam-me ainda mais preocupada.

Em casa, corro para a internet. Em português não aparece nada de jeito. Procuro sempre primeiro em português. Passo ao francês. Começo a perceber. Decido não dizer aos miúdos, não vale a pena assustá-los.

Insisto para o Pascal se ir embora, não preciso de babysitter. Provavelmente, fui demasiado bruta. Se fizer um bolo para o jantar talvez compense. Será que consigo fazer bolos só com uma mão? Estou a debater-me com as calças de ganga a pensar no que raio vou vestir que consiga despir com uma mão. D. Fuas decide transgredir a regra e entra no quarto. Olhos postos em mim, começa a fazer chichi no chão. Grito com ele e esconde-se debaixo da cama. Quanto mais grito, mais ele foge a fazer chichi pela casa fora. Escorrega e cai pelas escadas abaixo, aí só grito de susto. Uma vez chegado à sala, a bexiga já devia estar vazia, pelo que passa a algo mais consistente. Vou ao quintal buscar o balde e a esfregona. O pandemónio é total.

Desato a chorar, finalmente. Choro porque me sinto só. Estou farta de estar só, num país estrangeiro. Choro porque me pergunto como raio vou conseguir pagar os exames todos que me marcaram e a operação e o tempo de baixa médica e o raio. Choro porque não sei o que vou fazer à minha vida com uma mão imobilizada. E o resto, que é bem pior. Choro porque tenho raiva do mundo. Consegui chegar aqui, conseguimos chegar aqui. Não é justo.

À tarde, ligo à minha mãe. Tenho a desculpa das eleições. Já passou o choque. É tudo tão relativo. Falo por alto do que se passa, mas gozo com as desventuras do cão. É tão mais fácil brincar com as situações, não a quero deixar preocupada.

O Pascal volta com mais uma caixa de gelado de spéculoos. Percebo que também está preocupado. Faz festinhas ao cão, diz que o que ele fez é sinal de amor profundo ao dono. Que sentiu o meu medo. "Não estou com medo!", digo muito depressa. Ele vai buscar-me gelado, mas primeiro derrete-o um minuto no micro-ondas. O mesmo tempo do Vasco, informa-me.

Antes de me deitar, vou aconchegar o filho pequeno. Fico surpresa por ver a cama vazia.
 

Terça-feira, 6 de Outubro
Consulta de parodontia esta manhã. Estava marcada há meses, tinha-me esquecido. O Pascal, não. Peço encarecidamente ao médico que me dê pouca anestesia, que prefiro sentir alguma dor quando fizer a limpeza das raízes dos dentes. Percebo que não me liga nenhuma, quando o vejo substituir os frascos de anestesia uns atrás dos outros. Concentro-me nas imagens de Portugal que passam no ecrã fixado ao tecto do consultório.

Chegamos a casa mesmo a tempo de me pôr a caminho da cidade do Luxemburgo. Pensei muito se deveria fazer os testes para o concurso de tradutores da Comunidade Europeia, marcados para as 14h. Sei que não tenho hipótese, nunca passarei nas provas de matemática. Tenho uma mão ao peito. A cara completamente anestesiada do nariz ao pescoço. Chove a cântaros. Mas tenho de tentar, pelo menos tentar. Decido tirar a porcaria da tala que me imobiliza e escapulir-me pelas escadas abaixo. Quando o Pascal percebe, já eu arranquei de carro. Não posso continuar a deixar que o homem assuma tudo, a vida dele, a minha, a dos rapazes.

No caminho, fico sem gasolina. As estações de serviço são raríssimas nas auto-estradas na Bélgica, nunca percebi porquê. Ao fim de 50 km na reserva, saio da auto-estrada. Bem-dito Gps. Aproveito e compro um sumo de laranja… que não consigo beber sem entornar metade em cima do vestido. Vou matar o parodontista, já passaram horas desde a anestesia. Como não consigo comer, decido não arriscar a tomar os medicamentos. Percebo que, de facto, a tala resulta mesmo. As dores voltaram em grande.

Chego a horas, mas não arranjo estacionamento. Corro até ao centro de exames, chego 10 minutos atrasada. Um feito. Sou revistada e passo no detector de metais. Tenho de deixar as minhas coisas num cacifo. É estranho, estava a ver que me tiravam a tala. Duas horas e meia de intermináveis perguntas para responder em menos de dois minutos, dou a tortura por terminada. Lixei-me com a pergunta sobre o consumo de cerveja por habitante na República Checa em 2003. Vinha em tonéis para passar para litros. Depois de somar a quantidade consumida em garrafa, em lata, à pressão e mais qualquer coisa. Ah… e pediam a percentagem. Era isto, mais coisa menos coisa. Mas tínhamos uma calculadora à disposição. E dois minutos. Sempre soube que a matemática havia de me lixar a vida com F. Isso e a cerveja, claro.

Regresso a casa, exausta. O Pascal nem discutiu comigo por causa da fuga. Comprou-me mais gelado de spéculoos. Ao jantar, o filho crescido queixa-se do silêncio. "Faz falta o Vasco", disse. O Pascal concorda. Fiz-me de forte, já tenho tantas dores.
 

Quarta-feira, 7 de Outubro
Vamos buscar o Vasco à classe verte. Por 110 euros/três dias bem podiam ter trazido a criançada de volta. Fica estático a olhar para o meu braço imobilizado e não nos cumprimenta. Demora muito tempo a falar. Veio completamente rouco.

A mala veio imunda. A roupa veio imunda. A pouca que veio, claro. Os ténis e o kispo ensopados. E imundos. Mas, pelo menos, vieram. Já não é mau…

À noite, quase janta ao colo do Pascal. Atasca-se a mim aos beijinhos. A coisa pequena precisa de tempo. O Diogo ria, aliviado. Os meus homens todos em casa.
 

Quinta-feira, 8 de Outubro
Recebo um postal que o Vasco me enviou da colónia. Diz que chegou bem, que se está a divertir muito. Pergunta se me estou a divertir (?!). Diz que sente muito a minha falta. Soube depois que foi ideia do Pascal, que foi comprar postais e selos com ele, antes de partir.

Também recebo cinco e-mails do outro. Dizemos sempre “l’autre”, criatura sem nome. “Mas vai pagar?!”, pergunta o Pascal a rir. Claro que não. Criatura imoral. “Mas, pelo menos, ela inovou nos insultos?” Dizemos sempre “elle”, criatura-sombra. Claro que não. Até para isso é preciso imaginação. E inteligência. Já só peço correcção linguística. Insultada, sim, senhora… mas, de preferência, sem ser ao abrigo do “AO for Dummies” e sem erros que me dão urticária.

Jantamos cogumelos, mais uma vez. A sobremesa é gelado de spéculoos, para não variar. Preciso de esvaziar o congelador. Acho que nunca mais vou comer cogumelos na vida. Já nem os posso cheirar.