sexta-feira, 29 de abril de 2016

Notas soltas


(porque a última semana foi rica em coisas várias)



 

As melhores primas do mundo fizeram-nos uma visita-relâmpago. Nevava. Pouco deu para fazer, excepto estarmos uns com os outros. O essencial, portanto. Só faltava uma para a pandilha ficar completa (e fez falta). A caminho do aeroporto, lembraram-se que não tinham tirado fotografias. “Estive demasiado ocupada a viver para fotografar”, comentou a Sara (a prima que está mais perto da geração do Diogo do que da nossa). Fiquei a pensar naquilo. Percebi que também tenho feito isso, nos últimos tempos.

A reunião no safari de Aywaille, na segunda-feira passada, ficou marcada pela tristeza. Já lá tinha estado, no nosso primeiro ano na Bélgica. E não me lembro de ter sentido esta melancolia. Achei os espaços demasiado pequenos. Os animais pareciam deprimidos. Talvez fosse do frio. Não é bonito ver girafas debaixo da neve. Nem elefantes. Os orangotangos nem sequer saíram dos abrigos aquecidos. Se eu pudesse, teria feito a mesma coisa. Uma colega desculpava-se com as hormonas destrambelhadas pela amamentação. Mas nós – os outros três – não tínhamos qualquer desculpa. Excepto a triste realidade que nos rodeava. Sempre adorei jardins zoológicos e reservas de animais, pelo extraordinário trabalho de conservação e reprodução de espécies. Mas com boas condições e respeito pelos animais. Assim, não.

Filho grande voltou a adolescer com a lua. Não sei porque diabo chamam à adolescência a “idade do armário”. Só se for porque uma pessoa tem vontade de os atirar lá para dentro e trancar a porta. Seria melhor chamar-lhe a “idade Disneyland”: é só montanhas-russas, carrocéis, coisas de crianças pequenas e miúdos crescidos. Com muita parvoíce à mistura. É tãoooo cansativo. Ora está numa boa-disposição parva, ora está prestes a cortar os pulsos. Numa questão de segundos. Uma pessoa nunca sabe quem lá vem, quando a criatura desce as escadas. Despacha potes de meio quilo de iogurte e bolos inteiros à velocidade da luz. E está sempre com fome. Felizmente, arranjou trabalho para o Verão num restaurante. Estou seriamente desconfiada de que vai dar prejuízo à casa, mas pronto. Está a crescer feliz, é o que interessa. E continua a lambuzar-me de beijos, mesmo quando ralho com ele.

Filho pequeno continua a crescer pouquinho. Saudável e feliz e bicho-carpinteiro e espertalhão. Mas pequenino. A endocrinologista voltou a rever as suas previsões em baixa, nesta última consulta. E depois, pôs-se a olhar fixamente para mim. “Chegue-se lá aqui!” e aponta para o aparelhómetro para medir os minorcas que por lá passam. “Duvido muito que tenha 1.52 m, sabe?”. Encolhi os ombros. É o que diz o BI há tantos anos, nunca pensei muito nisso. Sempre convivi bem com o meu tamanho. Sou a Migalha desde que me conheço. Mas foi preciso chegar aos 40 para ficar a saber que sou mesmo pequenina: 1.48 m. Desatei a rir. “Não há milagres, certo?” Coisa pequena ficou com um sorriso de esperança... Teve na mesma que ir tirar muitoooo sangue, para mais uma bateria de testes. Os últimos, garantem-me. Caíam-lhe as lágrimas, mas não soltou um som. Eu ia desmaiando. Passamos o resto do dia a passear por Liège, mão na mão. Filho papel-químico. Filho cópia-conforme.

Tem nevado a semana toda. E faz um frio desgraçado. É difícil manter a boa-disposição. Ainda assim, o que me faz mais falta é a luz. Os miúdos seguem a moda reinante: é primavera, arrumam-se os Kispos. Parecem belgas (mas o Belga parece português, sempre a queixar-se do frio). Sinto-me gelar só de olhar para eles, tão pouco agasalhados. A verdade é que nunca passaram invernos como os últimos quatro, sem doenças, nem constipações. Eu mantenho os camisolões, os cachecóis, os gorros e as botas. E as mantas. A única vantagem de viver neste reino gelado é que tive direito a férias forçadas para a semana, porque estamos com um problema no aquecimento central no escritório. E a chefe ainda pediu desculpa pelo incómodo da pausa imposta…

Vou aproveitar o tempo livre para… trabalhar, pois claro! Estou tão feliz por ter voltado ao meu mundo da tradução e legendagem. Embora tenha sido difícil de gerir os tempos-livres, sinto que comecei a entrar numa certa rotina. Numa espécie de equilíbrio instável, possível. Até consegui manter os mesmos hábitos de leitura devoradores, que iniciei nas últimas férias-de-filhos-da-Páscoa. Assim a minha madrasta me mande finalmente o terceiro volume de “A amiga genial”... Também quero fazer mudanças, aqui em casa. Pintar uma parede da sala e alguns móveis pequenos. A Primavera exige uma nova decoração mais leve e luminosa. Tipo, a condizer com os grossos flocos de neve que caiem lá fora!

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Elefantes numa reunião de trabalho


(a vice-presidente medrosa versus a coordenadora temerária)


 


Vice-presidente: Já recebeste o e-mail com as indicações para a reunião de 2ª feira?
Eu: Ehhh… ainda não percebi bem o objectivo.
Vice-presidente: Como assim?! O objectivo é preparar a próxima Fête des Familles da associação, em Setembro.
Eu: Pois… isso eu já percebi. O que me está aqui a escapar é o porquê da minha presença na dita reunião. Qual é o papel do centro de documentação?
Vice-presidente: Rigorosamente nenhum. Tu não vais à reunião como coordenadora do centro de documentação, vais em minha representação.
Eu: Ah, ok… Não tinha percebido. E o que queres que faça?
Vice-presidente: Nada. Vais só ouvir. E ver…
Eu: Não é suposto falar?
Vice-presidente: Podes dar a tua opinião, claro. Mas não te esqueças de tomar nota de todas as actividades que o parque propõe. Os pontos fracos. Os possíveis problemas. Essas coisas todas, estás a ver? Não estou muito convencida quanto à escolha do lugar, este ano. Tenho um bocado de receio…
Eu: Porquê?
Vice-presidente: É pá… são bichos muito grandes, sabes? Elefantes, leões, girafas…
Eu: Hein?!
Vice-presidente: A propósito, não te preocupes com o carro. Estás coberta pelo seguro de trabalho.
Eu: O meu carro não tem problemas. Além disso, a reunião é aqui perto. Disseste que era num parque em Aywaille…
Vice-presidente: Pois, mas vais ter de atravessar o recinto com o carro, porque o escritório deles fica na outra extremidade. Olha, o melhor é ires com algum tempo de antecedência. Imagina que uma manada de rinocerontes fica parada à tua frente…
Eu: Mas é no safari?!
Vice-presidente: Sim. Foi exactamente por isso que me lembrei de ti. Eu sou um bocado medrosa, mas tu tens a casa cheia de bicharada! Já estás habituada, não é?
Eu: Quer dizer, eu só tenho animais domésticos... E de muitoooo pequeno porte.
Vice-presidente: É a mesma coisa! Depois, contas-me tudo, está bem?





segunda-feira, 18 de abril de 2016

Desambiguação


(onde se deixam momentaneamente de lado os aspectos subjectivos,

 para nos consagrarmos às questões legais e isentas de emoção)



 

Muito embora tenha defendido no último post que o Amigo Imaginário é uma “obra aberta”, no sentido semiótico de Eco, há um limite interpretativo que se impõe. Provavelmente já devia ter feito este esclarecimento há mais tempo, mas nunca me pareceu importante. Agora, dado o número crescente de leitores que aqui chegaram trazidos (vamos pensar assim…) pelo que escrevi sobre a alienação parental, creio que se tornou premente recuar um bocadinho na nossa história. 

Quando o meu casamento se aproximava do fim, ocorreu-me que um ano de afastamento poderia ser uma boa solução. Esta ideia foi de imediato aceite. Estávamos em 2012. Dado que já tinha feito um ano de intercâmbio na Bélgica e que tinha uma ligação emocional com este país, pareceu-me um destino lógico. Por outro lado, os meus “pais belgas” tinham uma casa grande onde nos poderíamos instalar, que começava a ficar vazia à medida que os últimos passarinhos abandonavam o ninho. Havia escolas de qualidade perto onde os rapazes poderiam estudar. Eu poderia continuar a traduzir à distância, caso não arranjasse um trabalho mais bem remunerado. 

Entretanto, tornou-se evidente que a empresa com a qual colaborava maioritariamente estava na falência. E o casamento terminou abruptamente. Bem como a confiança. Uma forte intuição dizia-me que devia afastar-me. E depressa. Quem se anuncia de forma tão vilipendiosa nunca poderia vir com boas intenções. Nessa altura, a ideia inicial de partir com os rapazes pareceu-me a única escapatória possível para uma vida que tinha deixado de fazer qualquer sentido. O que começou por ser uma ideia estapafúrdia para salvar uma relação moribunda transformou-se numa hipótese de recomeçar uma segunda existência livre e autónoma. Fui honesta e expliquei a quem de direito que, se conseguisse reconstruir a minha vida na Bélgica, talvez já não voltasse passado um ano. A situação tinha mudado por completo. A autorização para sair do país com os rapazes manteve-se. Apesar do estado psíquico e físico bastante frágil em que me encontrava. Apesar de não ter trabalho, nem quaisquer perspectivas a curto termo. Apesar das parcas reservas financeiras. Apesar de ter apenas uma velha carripana. Apesar de já ter percebido que, por razões várias, não poderia ficar em casa dos meus “pais belgas” como pensava. E de só ter conseguido arranjar uma casinha minúscula numa aldeia perdida das Ardenas. Absolutamente vazia de todos os bens essenciais. Apesar de tudo isto, fui legalmente autorizada a sair de Portugal com duas crianças de 10 e 5 anos. Até hoje não consigo perceber o que terá levado um pai a permitir isto, mas estar-lhe-ei sempre profundamente agradecida. 

A nossa vida, naqueles primeiros meses em Malempré, nunca me pareceu tão feliz. Senti uma liberdade que nunca tinha sentido na idade adulta – eu, que desde os 17 anos tinha vivido numa relação claustrofóbica. Creio que o facto de não ter rigorosamente nada me permitiu mesmo recomeçar do zero. Nem sempre sobrava comida para mim, mas nunca senti fome. Alimentava-me de outras coisas essenciais. Arranjei finalmente emprego no final de Outubro, quando as reservas tinham chegado ao fim. Um horário completo como professora substituta de Inglês, em Spa. Foi uma sorte inusitada. Hoje, não teria sido possível, porque as regras de contratação de professores mudaram. A parte negativa deste trabalho era que me obrigava a sair de casa muito cedo, deixando o Diogo e o Vasco sozinhos. Tomavam o pequeno-almoço, vestiam-se e iam para a escola da aldeia a pé. 

Em Novembro, o pai dos rapazes veio vê-los à Bélgica, juntamente com os avós, para festejarmos o 6º aniversário do Vasco. E confirmou com os seus próprios olhos a vida que levávamos. O avô dos miúdos perguntou-me se eu já sabia o que ia fazer, no final daquele ano. Respondi que ainda era cedo, mas que as coisas estavam a correr muito bem. À falta de uma sentença legal, precisei de um documento oficial que provasse que tinha a guarda dos meus filhos, para poder dar início ao processo de residência na Bélgica e, deste modo, termos acesso a uma cobertura social e médica. O pai deles foi comigo à Commune assinar este documento. Quando comentou que estava a passar-me um cheque em branco, concordei e expliquei-lhe que só assinava se quisesse. Assinou. 

Nos meses seguintes, o pouco que restava da nossa relação degradou-se a olhos vistos. Não tenho qualquer dúvida de que a minha intuição inicial estava certíssima. Quando o Diogo e o Vasco regressaram das férias de Natal, tivemos uma conversa sincera. Ambos me disseram que estavam muito felizes na Bélgica e que queriam ficar comigo. Em Janeiro de 2013, dei entrada com o processo de regulação das responsabilidades parentais. Teve início a minha aventura kafkiana no tribunal da família de Marche-en-Fammene. Algum tempo depois, recebi uma notificação do tribunal em Portugal para um processo idêntico. O pai dos rapazes escolheu não comparecer no tribunal de Marche, nem se fazer representar, prescindindo do direito mais básico de qualquer cidadão. No dia 17 de Setembro de 2013, consegui tudo o que tinha pedido: responsabilidades parentais partilhadas e a domiciliação efectiva dos rapazes comigo, na Bélgica. Um mês mais tarde, esta sentença foi aceite em Portugal, aquando da audiência no tribunal. O pai dos rapazes nunca a contestou, como seria seu direito. 

Um ano mais tarde, estávamos de volta ao tribunal por causa da pensão de alimentos. O advogado da parte contrária aproveitou o meu processo para pedir a guarda do Diogo, afirmando que eu tinha enganado o pai das crianças para conseguir uma autorização de viagem e pondo em causa as minhas competências parentais em toda a linha. Foram meses muito duros. O Diogo continua a dizer que não consegue explicar o que lhe passou pela cabeça para dizer que queria voltar para Portugal. O que quer que tenha sido, não ficou espelhado na audição que teve em privado com a juíza. A sentença original foi novamente confirmada. Ficou escrito preto no branco que eu tinha vindo para este país com a autorização do pai dos meus filhos. Ficou estabelecido um tempo de guarda, uma pensão, despesas partilhadas. Esta nova sentença também não foi alvo de recurso. Embora, para mim, o processo só tenha terminado verdadeiramente uns tempos depois, quando o Diogo me agradeceu por ter lutado por ele e confimou o desejo de permanecer comigo, na Bélgica. 

Se estes factos poderão ser discutíveis? Não. Uma coisa é o que se diz, o que se prefere acreditar, o diz-que-disse… outra coisa são as provas legais irrefutáveis.
Se considero que “roubei” os filhos à pátria e ao pai? Não. Os rapazes serão sempre portugueses e filhos deste pai. Nada nem ninguém poderá mudar isso.
Se me considero “alienadora parental”? Ah, ah, ah! Espera... ah, ah, ah!
Se me considero má mãe? É pá… faz-se o que se pode, com a certeza de que o Diogo e o Vasco sempre foram a minha prioridade e que os amo mais do que tudo na vida.
Se haveria mais a dizer sobre o antes, o durante e o depois de todo este processo kafkiano? Claro que haveria! Mas lá está... seriam aspectos da esfera privada, subjectivos e pouco interessantes para quem nos lê. Principalmente, creio que seriam ofensivos para as memórias que os meus filhos têm o direito de preservar.
 

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Narrador subjectivo

(porque a nossa vida voltou à doce e caótica normalidade

que a caracteriza)



Pouco depois de escrever o último post, arrependi-me. Já estava no posto da Polícia, era demasiado tarde para apagar. Foi apenas um desabafo, mas despoletou diversas reacções. Por vezes esqueço-me de que também sou lida pela família e amigos chegados, que se preocupam connosco. Fica sempre tanto por dizer, aqui! Este blog narra as nossas aventuras e desventuras diárias através dos meus olhos. Que não são omnipresentes. Muito menos omniscientes. Que são assumidamente subjectivos. Parciais. Por isso, esta é a nossa história contada por mim. Abomino certezas absolutas (e os detentores das ditas). Acho sempre que a vasta gama cromática de cinzentos é muito mais rica do que a dicotomia básica de preto e branco. Por isso, sei que haverá outras versões desta mesma história. E faço questão de me diferenciar dos pregadores da verdade universal, que expõem e ofendem publicamente sem pejos quem ousa transgredir a sua visão encerrada e poucachinha do mundo.
No dia em que um dos meus filhos me pedir que pare de falar dele ou de mostrar fotografias, deixarei imediatamente de o fazer. Por uma questão de respeito. Respeito esse que é extensível à família paterna do Diogo e do Vasco. Já aqui tenho falado de situações que se passam comigo – exclusivamente comigo. Já aqui tenho deixado desabafos pequeninos e velados de coisas que me transcendem, que não consigo compreender, que me magoam, que me deixam ofendida. Profundamente enraivecida. Às vezes, assustada. Mas penso que nunca abordei nenhuma questão sob outro ponto de vista que não o meu. Pessoal e intransmissível. Não ataco, não denigro, não ofendo. Principalmente, não exponho. Esta tem sido a minha linha de conduta, tanto na minha vida como na narração da minha vida. Espero que um dia, quando os meus rapazes forem crescidos, se lhe apetecer percorrer este blog para recordarem a sua infância e juventude (sob o ponto de vista da mãe), não sintam vergonha, nem sintam que a sua intimidade familiar foi devassada.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Guerra e Paz


(onde se mostra um cansaço sem fim)



A esta hora o Vasco devia estar a tentar ler às escondidas, em cima da cama. Enquanto fingia que calçava os sapatos. Eu devia estar a apressá-lo, aqui em baixo. Depois de ter arrancado à força um Diogo vaidoso do espelho da casa de banho. Depois de ter mandado um Diogo feliz para a escola. D. Fuas andaria aos saltos à nossa volta, a tentar ver se convencia alguém mais distraído a dar-lhe uma segunda refeição. O meu amor subiria as escadas em silêncio, para surpreender a coisa pequena em flagrante delito. A esta hora, o Vasco daria um pequeno grito de susto e desceria as escadas a correr. De casaco meio vestido e mochila a arrastar pelo chão. Eu já estaria à espera dele, na cozinha, com o saco do almoço na mão para lhe dar. Pronta para sair. Um bocadinho atrasada, como sempre. 

Há três anos atrás, nunca teria acreditado se me dissessem que, depois de tantas idas ao tribunal, eu estaria esta manhã desgastada a caminho da Polícia.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Crónicas do “plat pays” – Ostende

(onde se mostra um cão feliz… e não se fotografa mais nada)


 
Uma das últimas escapadas românticas que fizemos foi exatamente a Ostende, não há muito tempo atrás. Juntamente com Antuérpia, são duas cidades costeiras lindíssimas da Flandres cuja visita é incontornável. Desta vez, preferimos explorar a zona da costa com o cão, sem entrar na cidade. Visitámos igualmente outras pequenas localidades ali à volta, que povoam as memórias estivais de infância do meu amor. Uma das coisas que mais gosto na Bélgica é o respeito pelos animais. Os cães não só podem entrar em todo o lado, como são muitíssimo bem-recebidos. Nos raros sítios onde não podem entrar, há locais próprios para os deixarmos amarrados. E em quase todos os cafés há uma tigela de água à disposição. D. Fuas Roupinho passeia muito pouco connosco, porque é uma criatura selvagem e enérgica. Completamente cega e surda. Principalmente, caçadora de tudo quando mexa. Mas decidimos encher-nos de coragem e soltámo-lo na praia de Ostende, ao entardecer. Com as dunas escarpadas de um lado e o mar do outro, achámos que não havia muito por onde pudesse fugir. Apesar de sabermos que nunca vem quando o chamamos, pensámos que havia de cansar-se algures entre Ostente de De Haan. A realidade superou largamente as expectativas. A transbordar de felicidade canina, D. Fuas correu como um doido, atirou-se ao mar atrás das gaivotas, escalou dunas, rebolou na areia… sem nunca deixar de nos ir controlando. Sempre que deixávamos de o ver, acabava por voltar para trás para nos apanhar. Chamámo-lo por duas vezes, quando vimos uns cães com um aspecto mais ameaçador e, surpreendentemente, ele veio de imediato. Se em vez de vivermos no meio da floresta das Ardenas, vivêssemos na costa flamenga, tínhamos ali um companheiro de aventuras à altura.








quinta-feira, 7 de abril de 2016

Crónicas do “plat pays” – Gand

(onde se mostra uma pérola desconhecida

e se faz um bem-sucedido périplo linguístico)



Surpreendentemente, a segunda commune belga com maior densidade populacional é pouco conhecida no estrangeiro. Gand (ou Gent) é sem dúvida uma das minhas cidades flamengas preferidas, porque conjuga na perfeição séculos de história com a vida exigente dos tempos modernos. Ou seja, não se manteve parada no típico limbo intemporal das cidades com um forte património histórico e arquitectónico. Gand tem vida própria, não é uma cidade “para turista ver”. Mesmo se os turistas em questão forem belgas (ou arraçados, como é o meu caso). Se dúvidas houvesse, teriam caído por terra com o meu périplo para chegar à FNAC, onde nunca cruzei ninguém que falasse francês. É a terra do desenrascanço.
Estas férias, comecei a ler a saga de “A amiga genial” de Elena Ferrante. E fiquei, assim, a modos que enfeitiçada. Quando estivemos em Bruges, fui à procura do segundo volume. O senhor que me atendeu na FNAC falava um francês impecável. Sabia que a versão francesa tinha acabado de ser editada, mas anunciou tristonho que não tinham nenhum exemplar. Depois de muito vasculhar no computador (nenhum de nós sabia o título exacto), descobriu que a FNAC de Gand tinha dois exemplares em francês. Calhava mesmo bem, já tínhamos decidido que seria a nossa próxima visita. Desfiz-me em agradecimentos. Estava a preparar-me para me vir embora, quando o livreiro me pergunta a minha opinião sobre “A amiga genial”. Toda a gente andava entusiasmada com os livros, mas ele nunca tinha lido. Seguiram-se uns bons dez minutos de conversa bastante agradável sobre literatura. Ainda ganhei o dia, porque fiquei a saber que a autobiografia do David Lodge também já tinha sido editada. Quando cheguei à rua, o Belga ficou surpreendido por me ver de mãos vazias. Tanto tempo para nada. “Para nada, não!”, corrigi-o. E lá lhe expliquei que, no dia em que nos desenamorarmos, se não souber onde encontrar mulheres interessantes, pode sempre ir a uma livraria. Acho que nunca conheci um/a livreiro/a que fosse uma pessoa desinteressante. O meu amor agradeceu a dica, que prometeu aplicar caso um dia seja preciso, e seguimos o passeio por Bruges.
As hipóteses de desaparecerem, em apenas 24 horas, dois exemplares franceses de um livro italiano em terras flamengas eram reduzidas. Mas nunca fiando. Pelo sim, pelo não, mal chegámos a Gand pus-me à procura da FNAC. O único defeito tipicamente masculino que o meu amor tem é recusar-se a perguntar direcções. Por isso, tive de dar literalmente o peito às balas. O primeiro sujeito que abordei foi cuidadosamente escolhido. Apesar de Gand não ser muito turística, pensei que o empregado de uma conhecida esplanada se desenrascasse em francês. Enganei-me. De modos que iniciámos um diálogo franco-flamengo profundamente surrealista, que só poderia acontecer no pacífico reino da Bélgica. Até conseguir atravessar a cidade e chegar à FNAC, ainda tive de repetir este género de diálogo mais umas quatro vezes. Correu sempre muito bem, ninguém pareceu espantado. Acho que, quem nos visse de longe, pensaria que estávamos a falar a mesma língua. Pedia indicações em francês e as pessoas respondiam-me sempre em flamengo. No meio disto tudo, fazíamos grandes sorrisos e improvisávamos uma espécie de linguagem gestual. Meia hora depois, desencantei finalmente a FNAC. O meu amor seguia uns metros atrás, a gozar a cena. E, para mal dos meus pecados, a fotografá-la. Poupo-vos ao cómico de situação. O que interessa é que fiquei toda contente porque consegui comprar o segundo volume de “A amiga genial”. E a autobiografia do Lodge. Em suma, desgracei-me.
Entretanto, se alguém por aí tiver o quarto volume em português e me quiser emprestar, eu agradeço do fundo do coração. E prometo devolver intacto, juntamente com uma caixa de chocolates artesanais belgas. É que pelas minhas contas, só deve ser editado por cá daqui por largos meses e eu sou pessoa para desesperar. Ou para aperfeiçoar o meu italiano, lançando-me directamente ao original.
Eis as fotografias apresentáveis que o Belga foi tirando nos entretantos…
 













 
 

 

terça-feira, 5 de abril de 2016

Crónicas do "plat pays" – Bruges

(onde a visita exterior acaba por invadir o interior)



A seguir a Bruxelas, Bruges é provavelmente a cidade mais conhecida da Bélgica. É famosa por ser a “Veneza do Norte”. Nunca estive em Veneza e, a bem dizer da verdade, não morro de curiosidade. As cidadezinhas italianas fora dos circuitos banais que visitei deixaram-me apaixonada. Detesto sítios apinhados de turistas, que contaminam tudo de artificialidade. E de longas filas de espera. Bruges, pelo contrário, soube manter a autenticidade. Nunca me canso de passear pelas ruelas com vista para os canais e de admirar as casas com telhados aos quadradinhos. Descubro sempre qualquer coisa que me tinha escapado nas visitas anteriores. Desta vez foi um restaurante todo decorado com relógios, onde estive sempre à espera de ver aparecer o coelho da Alice. Inaugurámos satisfeitos a época do prato nacional: “moules et frites”.
A vantagem de revisitar cidades que conhecemos bem é que já percorremos as capelinhas todas. Podemos dar-nos ao luxo de “perder tempo”. De fazer programas alternativos. Decidimos ir ver uma exposição de Dalí. Na bilheteira, perguntaram-nos se queríamos o bilhete combinado para vermos igualmente a exposição de Picasso. Respondi que sim sem grande convicção. Parecia-me demasiada sorte apanhar duas boas exposições de pintura de uma só vez. De qualquer modo, a minha táctica na Flandres consiste em fazer sorrisos rasgados quando falam comigo, acenando entusiasticamente. Posso não perceber nada do que me dizem (e como o meu Belga fala flamengo, partem sempre do pressuposto que eu também falo…), mas ninguém me pode acusar de falta de simpatia. Saiu-nos a sorte grande. Há muito tempo que não via duas exposições de pintura tão fantásticas. A de Dalí parecia mesmo ter sido feita à minha medida. Tinha várias séries de quadros menos conhecidos inspirados em diversas obras literárias. Inúmeros trabalhos de ilustração, de gravuras… E lá estava a Alice, claro.
De repente, não sei explicar. Senti um tumulto de ideias, de memórias, de emoções. Senti umas saudades surdas de estudar. De aprender. De investigar. Pela primeira vez, desejei ardentemente que o tempo passe depressa. Quero ver-me livre de filhos. Ou melhor, quero ver-me livre da obrigação de educar e sustentar filhos. Fiz as contas por alto. Fiz as contas depressa. Talvez quando o Vasco entrar para o secundário – são só mais dois anos, o 5º e o 6º – eu consiga finalmente inscrever-me no doutoramento. Há anos que sonho com isso, mas agora tornou-se uma necessidade premente.
Uma pessoa vive os dias dividida entre três trabalhos e três homens (mais um cão). Não me limito a fazê-lo por obrigação. Ponho a minha alma toda nisso. Cuido da mais pequena necessidade de qualquer um deles com esmero e amor sinceros. Só que o tempo não dá para tudo. O tempo dos minutos, das horas e dos dias talvez até desse. O tempo-espaço da minha cabeça é que não dá mesmo. Os trabalhos e os homens ocupam a minha disponibilidade de espírito por inteiro. O pouco que sobeja é para ser tratar de ser feliz e não me voltar a perder no meio disso tudo.
Mas em Bruges, no meio daquela beleza inebriante, a aproveitar um tempo de ócio raríssimo, detestei-os a todos um bocadinho. Porque me roubam de mim. Afinal, a minha primeira descoberta inesperada desta visita faz todo o sentido: relógios infinitos.


 
 












 
 

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Crónicas do "plat pays" – De Haan

(onde se faz o relato de uns deliciosos dias longe do mundo virtual)



É espantoso como um país desta dimensão consegue ser tão díspar. Estamos na Flandres, o meu amor e eu. No “plat pays qui est le mien”, como cantava Brel. Numas merecidas férias a dois. Temos paisagem a perder de vista. Aqui, não há vales, montes nem montanhas. Muito menos florestas. É tudo plano. Estamos muito longe das nossas adoradas Ardenas. Principalmente dos ardeneses. Não saímos da Bélgica e, no entanto, é como se tivéssemos entrado noutro universo. Estamos na Flandres.
Sempre fugi um bocadinho ao mar do Norte, tão diferente do meu. Mas a verdade é que, quase quatro anos depois, este tornou-se o meu mar. Não é azul, é verde. Verde acinzentado. Parece mais pequeno. Menos selvagem. Não me dá aquela sensação de vertigem quando o contemplo de uma falésia. Por isso, é mais reconfortante. É um mar que aconchega o coração. O céu também parece mais baixo, porque não se perde no azul imenso do mar. E o sol não é estonteante. Não é só a escala de tamanhos que é diferente. Ou o relevo ou as cores. Não sei explicar, é uma coisa que se sente.
Estamos no início das férias da Páscoa. A praia está cheia de gente. Gente em movimento. As pessoas passeiam em grupos. Há muitas crianças, muitos cães. O céu está cheio de papagaios coloridos. A areia está coberta de pás e baldes, como os da minha infância. Junto ao mar, há enormes bandos de gaivotas. Acho que nunca tinha visto gaivotas bebés, são pretas e brancas. Grupos de cavaleiros avançam junto à rebentação. Um cavalo mais destemido trota feliz com a água pela barriga. Quando nos deitamos nas dunas, ouve-se aquele bruaá típico. Deixamo-nos embalar e dormitamos um bocadinho.
Andamos quilómetros sem nos cansarmos. A costa belga estende-se a perder de vista, de um lado e de outro. São 66 quilómetros de litoral, de La Panne à Knokke. Arrependemo-nos de não termos trazido o D. Fuas. O diabo do cão é tão imprevisível! Combinamos trazê-lo no dia seguinte, bem cedo ou ao entardecer, quando houver menos confusão. Tenho medo de soltá-lo, mas parece-me uma pena que não aproveite aquela imensidão de praia.
Embora esteja um dia bonito, está frio. Vou até ao paredão comprar um gorro. As crianças brincam na praia de galochas e combinações impermeáveis. Têm kispos, gorros e cachecóis. Ao princípio, estranho vê-las assim vestidas a brincar à beira-mar ou no areal. Parecem iguaizinhas às crianças que na minha infância enchiam as praias, inaugurando a época balnear nas férias da Páscoa. A alegria e as brincadeiras são exactamente as mesmas. Excepto que estão completamente vestidas. Bem agasalhadas.
Decidimos visitar a cidadezinha mais próxima, onde o tempo parece ter parado. De Haan é igual a uma qualquer estação balnear dos anos 70. Não há prédios, nem construções demasiado modernas que destoem da paisagem envolvente. As casas senhoriais são lindíssimas. A pequena estação dos caminhos de ferro é absolutamente amorosa. Por todo o lado se vêem crianças a conduzir carrinhos com grandes rodas. Há uns maiores, que levam quatro ou seis pessoas. Chamam-se “Cuistax”. Vamos até à zona comercial e ficamos agradavelmente surpreendidos. Não há grandes cadeias comerciais, apenas lojas típicas. Descubro uma loja de brinquedos igual às que havia quando eu era criança, com o mesmo tipo de jogos e bonecos. Entramos num café para comer um crepe. O meu amor tornou-se perfeitamente bilingue, nos anos que passou a estudar em Antuérpia. Aos poucos, começo a perceber algumas palavras. Muito poucas. O flamengo é uma língua difícil, que me desperta curiosidade. A ver se arranjo tempo para aprender. De qualquer modo, em De Haan vê-se bem que as fronteiras linguísticas na Bélgica têm relativamente pouco tempo. Ainda há muitos painéis antigos escritos em francês. O próprio nome da cidadezinha aparece diversas vezes na sua versão original: Le Coq-sur-Mer.
O sol começa a desaparecer. Fica frio e vento. As ruas continuam animadas e os cafés cheios. O carrossel ilumina-se. Ninguém parece querer arredar pé da praia. Hesitamos entre comer uma mariscada ou fazer jantar. Decidimos voltar à casinha de bonecas que alugámos perto da praia. O destravado do cão já passou demasiadas horas sozinho. Amanhã vamos soltá-lo no areal, está decidido.