segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Passeios de fim-de-semana – Prüm, Alemanha

(porque às vezes também é preciso partir à aventura a dois)


A coisa que eu mais gosto na Bélgica é a rapidez com que se consegue sair daqui, não me canso de repetir. Em pouco mais de meia hora, estamos noutro país completamente diferente. A paisagem é outra, a arquitectura é outra, as pessoas são outras, a língua é outra. A história e as estórias são outras. E isto – apenas isto – faz com que eu sinta que fui muito longe. Que me aventurei. Que mudei de ares. Que fui quase de férias. É ir ali num pulinho e voltar, em que aproveitamos para encher os olhos de coisas novas. Para aprender. O mundo é muito grande, infelizmente uma vida inteira não chega para o percorrer de lés a lés. A única maneira de lutar contra isso é tentar desbravar todos os caminhos que estão à minha volta. Com a sofreguidão própria de quem quer ir sempre mais além.

Partir à aventura a quatro é sempre uma delícia. Ver novas terras pelos olhos dos meus filhos é ter acesso a outros pormenores que escapam aos nossos olhos de adultos. Aos nossos olhos “poluídos”, como diz o meu amor. Ficou para a (nossa) história o passeio que fizemos a Aachen, na Alemanha, no pino do Inverno de 2012. Fazia um frio de rachar e nós andávamos a toque de caixa para não gelar. Até que os sinos da catedral começaram a tocar e o Vasco decidiu sentar-se calmamente no chão a apreciar o concerto inesperado. E dali não arredou pé durante quase 15 minutos, imune às nossas súplicas. Às tantas, desatou num pranto sentido. Estava comovido com a beleza da música, disse. A emoção do Vasco obrigou-nos a prestar atenção àquilo que para nós era apenas ruído de fundo, no meio da cacofonia do final de tarde na cidade. Acabámos por desistir e sentámo-nos todos a ouvir os sinos. De facto, a música era deslumbrante. E, hoje, o que recordamos desse passeio são os sinos da catedral de Aachen.

Desta vez, decidimos partir à aventura a dois. Vivemos exclusivamente em função dos rapazes durante o ano inteiro. Quando eles não estão connosco, aproveitamos para cuidar de nós, do nosso amor. Aproveitamos para namorar. E também é espantoso poder dar passeios mais longos, mais demorados, mais distantes. Passeios em que não temos de nos preocupar com nada. Sem horários, nem obrigações. Só nós os dois. E esta paixão comum pelo inesperado. Pegar no carro e partir. Sem saber ainda muito bem qual o destino final. Desta vez, nem GPS levámos… Fomos parar a Prüm, na Alemanha. Passeámos muito, pelas ruas da cidade e pelos campos em redor. Comemos a desoras num boteco tailandês. Como não percebíamos patavina da ementa, encomendámos ao calhas. Não nos arrependemos da escolha. Visitámos vários monumentos que, à primeira vista, parecem antigos, mas que agora sei serem réplicas exactas, típicas das cidades encalhadas nas Ardenas que foram completamente dizimadas durante a Segunda-Guerra mundial. E, mais uma vez, me espantei com a erudição do meu amor. O melhor dos cicerones. O melhor companheiro de aventuras. Passear com ele é mergulhar no passado, onde história e lendas se cruzam numa narrativa apaixonante.
 






quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A hora do almoço... e tudo o resto

(onde se fala da ausência de peneiras)


Hoje, desci da minha torre de marfim para picar o ponto à hora do almoço. Estava a meio do percurso e já ouvia gargalhadas. Na secretaria, estavam todos em amena cavaqueira. A secretária-mor andou na cave à procura de uns documentos e encontrou velhos álbuns de fotografias que encafuei na prisão*, à falta de ideia melhor.

Fui buscar o meu almoço e por ali fiquei, a ver fotografias do século passado. A rir ao reconhecer os carecas com cabelos. E as velhotas de mini-saia. Quando os meus 15 minutos da praxe acabaram, subi e comecei a lavar a loiça. O meu chefe veio atrás, pegou num pano da loiça e pôs-se a limpá-la. Uma das psicólogas da associação arrumou-a. A aprendiza de psicóloga fez mais café para todos. Depois, voltámos calmamente ao trabalho.

Esta é talvez a característica que mais gosto nos belgas: a falta de peneiras. A simplicidade. No trabalho, somos todos iguais. Todos nos cumprimentamos com um beijinho de manhã. Da senhora da limpeza ao director. Todos trazemos comida de casa, que aquecemos à vez no micro-ondas. Para economizar tempo e dinheiro. Da senhora da limpeza ao director. Almoçamos com quem está mais à mão, com quem precisamos de falar, em frente ao computador, se houver trabalho para acabar… sozinhos, se estivermos num dia não. Da senhora da limpeza ao director. Ninguém se rala por hoje fazermos uma coisa e, amanhã, outra. Não há cá mexericos, nem comentários. Reina a descontração.

A casa de banho é só uma e, às vezes, há fila. No início, fazia-me um bocadinho confusão fazer chichi, sabendo que o meu chefe estava à espera atrás da porta. Mas depois habituei-me. Tal como me habituei a vê-los descalços, nos dias mais quentes. Ou a percorrer os gabinetes para ver se alguém deixou um casaco esquecido, quando arrefece subitamente. Com o passar dos meses, comecei a sentir-me em casa.

A roupa que já não serve ao Vasco vai para os filhos da secretária mais nova que, depois, os dá à contabilista. A assistente social vai dar-me uma estante. As coisas passam de uns para os outros, simplesmente. Quem se quer desfazer de algo, passa primeiro a palavra para ver se alguém precisa. Não há desperdícios inúteis. Tal como toda a gente sabe que, se houver fruta a estragar-se no frigorífico, qualquer pessoa pode comê-la. É assim uma espécie de espírito comunitário, de microcosmos social, que resulta. E resulta bem. Sem peneiras.

 
[ *A sede da associação onde trabalho fica no antigo edifício centenário da Junta de Freguesia. Na cave, há uma prisão verdadeira, ao estilo dos Irmãos Dalton, que servia para curar bebedeiras e resolver disputas entre vizinhos. Actualmente, serve para arrumar tudo o que não tem arrumação. No sótão onde fica a “minha” biblioteca, há um chão falso com um buraco especialmente concebido para guardar tesouros. Infelizmente, está vazio. Nas traseiras do edifício, há uma salinha que comprometemo-nos a ceder a quem precisasse. Às terças-feiras de manhã, ouvimos os aplausos que pontuam as reuniões do WeightWatchers e, aos sábados, a cantoria inflamada dos seguidores de uma igreja africana qualquer. ]


 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Purgatório dos sonhos que já não temos

(conjuram-se orixás)


Ao longo da vida, vamos coleccionando sonhos vários. Bonecas russas de diferentes tamanhos que se encadeiam até ao infinito. Sonhos inalcançáveis, que servem apenas para nos aquecer o coração. Sonhos que gostaríamos de ver realizados a longo prazo, mesmo que seja difícil, mesmo que seja quase impossível. Mesmo que demore muito tempo. Sonhos que nos vão acompanhando ao longo da vida, metas que estabelecemos no horizonte longínquo e que norteiam o caminho. Sonhos que sabemos que vamos realizar a médio ou a curto prazo. Sonhos comezinhos, que proporcionam alegrias pequeninas quando finalmente os conseguimos alcançar. Balões de oxigénio que nos dão forças para continuar. A avançar e a sonhar, sempre.

Mas, um dia, a vida dá uma reviravolta. E temos a sorte de voltar à casa da partida. Aproveitamos para fazer o ponto da situação. Largar tudo o que já não precisamos para tornar a passada mais ligeira. Aconchegar junto ao coração quem mais amamos e esquecer tranquilamente quem já não nos diz nada. Ajustar a bússola interna. Rever posições. Reformular objectivos. E, claro, adaptar os sonhos. Refazê-los.

Há sonhos que percebemos que já realizámos. Às vezes são sonhos antigos, que ficaram perdidos, mas não esquecidos. E que um dia, sabe-se lá como, se realizaram sem que dessemos por isso. Há sonhos que mantemos. Fazem parte daquilo que somos. São os sonhos quase sempre impossíveis de realizar. Há sonhos que reajustamos à nova realidade. Sonhos que são necessários para conseguirmos concretizar o objectivo maior a que nos propomos. Metas menores que balizam o caminho.

E, depois, há sonhos que são abandonados por completo. Sem apelo nem agravo, sem remorsos, sem tristezas. Já não têm lugar na nova vida. Perderam todo o sentido.

Algures na nossa história de vida, criamos um cemitério de sonhos onde enterramos os mortos. Sonhos cremados, que desapareceram para todo o sempre numa nuvem de fumo. Sonhos enterrados a muitos palmos do chão, que se vão decompondo aos poucos, à medida que fazemos o luto.

O problema é que há sonhos moribundos que continuam a povoar as profundezas da nossa existência. Sonhos fantasmas. Sonhos que decidimos conscientemente abandonar, mas que não nos conseguem abandonar a nós. Que teimam em não se libertar. Sonhos que obstinadamente se recusam a partir para o céu dos sonhos, que vivem no limbo do purgatório. Ainda não descobri o que fazer para que parem de me assombrar. Eu, que os matei, que os enterrei, que os substituí por outros sonhos por estrear a condizer com esta nova vida que criei. No dia em que descobrir a conjuração secreta, estarei um bocadinho mais perto de alcançar a tão desejada paz.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Saudades da coisa pequena

(amo de um amor exactamente igual ambos os meus filhos,

mas à medida que o mais velho ganha asas

o coração de mãe também se vai adaptando)


Tenho saudades da minha coisa pequena. Umas saudades que me impedem de respirar profundamente, porque me dói o coração. É como se faltasse uma função vital do meu corpo. Falta-me o cheiro dele, os braços sempre à volta da minha cintura. O peso da sua cabeça contra a minha barriga. Morada primeira que diz não esquecer. Aquela voz que ri. Não sei explicar, mas o meu Vasco tem uma voz que ri. Uma felicidade natural. Pozinhos mágicos que espalha à sua passagem. E uma imaginação prodigiosa que nos transporta para outros mundos. Sinto saudades de tudo isso. Da presença física e da personalidade repleta de fantasia.

Às vezes dou por mim a espreitar pela janela, para ver se o vejo a brincar no quintal. Uma espada. Um pau. E o mundo à nossa volta transforma-se numa fracção de segundo. É preciso estar atento. Estamos debaixo de fogo inimigo. Criaturas selvagens saltam de onde menos se espera. Cuidado, atrás do arbusto mais insuspeito escondem-se seres vindos de outro mundo que nos querem apanhar. Por isso, o Vasco corre sem baixar a guarda. Ora à frente, ora atrás. Numa espécie de movimento intrínseco e constante.

Dou por mim a tentar ouvir a vozinha dele no meio do silêncio que me rodeia. Porque o meu Vasco passa a vida a cantar. Onde quer que esteja, ele canta. Ou cantarola, numa espécie de ruído de fundo que me embala. Umas vezes são canções inteiras, que narram aventuras e desventuras. Outras vezes, canções patetas, pirosas, que o divertem. Basta-lhe ouvir uma canção uma única vez para a saber cantar na perfeição, com uma voz cristalina e doce que comove.

Dou por mim à espera da próxima pergunta, curiosidade constante de quem quer engolir o mundo inteiro. Catapulta de interrogações, moinho de vento de pensamentos vários. O meu Vasco obriga-me a olhar com outros olhos para o que nos rodeia. Olhar inaugural de poeta. Mundo interior do qual só tenho vislumbres quando me faz perguntas, numa tentativa feroz de tudo compreender.

E o carinho… Dou por mim à espera de sentir aquelas mãos de mansinho nas minhas costas. Os abraços apertados. Os beijinhos sempre lambuzados. As declarações de amor inesperadas. E originais. O Vasco raramente diz “amo-te”, mas faz as declarações de amor mais perfeitas. Principezinho que cuida da sua rosa.

Espero que o tempo passe depressa. Já sei que não passa, mas tenho sempre esperança. Até lá vou vivendo em apneia. A ter vislumbres da presença mágica da coisa pequena pela casa. A montar aos poucos um enorme barco de Lego que comprei numa venda de garagem. A embelezar o poleiro que irá acolher o passarinho que o meu amor lhe prometeu. A escolher cuidadosamente o material para a escola, sabendo bem que a régua estará partida antes do final de Setembro. Os lápis perdidos e a borracha roída. Provas materiais de que a cabeça vive na lua.

 





[ Desde que pôs o aparelho para alargar o palato, o Vasco é absolutamente incapaz de fechar a boca nas fotografias. Porque o seu sentido de estética apurado manda que o omnipresente aparelho vermelho-sangue fique guardado para a posterioridade. ]

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A pessoa que hoje sou

(e os meus três pilares)


Faz este mês dois anos que cheguei à Bélgica disposta a reconstruir a minha vida. Começámos por uma casinha pequenina, numa aldeola perdida no meio das Ardenas. O único sítio onde consegui que me alugassem casa, a bem dizer da verdade. Os rapazes quiseram pintar as paredes de azul-turquesa. Eu preguei um mapa-mundo enorme na sala para dar asas à imaginação. E comíamos no chão, em loiça de plástico. Há dois anos atrás.

A escola começou, eu arranjei um trabalho. E uma mesa. Eles aprenderam a falar francês. Eu apaixonei-me perdidamente. A casa foi-se compondo. Passou-se um ano.

A escola recomeçou, o Diogo entrou para o secundário. Eu arranjei outro trabalho. Comprei um carro. Viajámos. Mudámos de casa. Plantámos uma árvore. Passou-se mais um ano.

Esta nova vida que inventámos tem-se feito aos bocadinhos. Um dia depois do outro. Umas vezes mais depressa, outras mais devagar. Dois passos à frente e um atrás. Nem sempre é fácil. Mas tem sido uma aventura que eu não trocava por nada deste mundo. Sinto que, pela primeira vez na vida, sou mais eu. Esta sou eu, finalmente. E, quando páro para pensar, vejo que essa foi a maior surpresa que me estava reservada. Porque uma coisa é sabermos que vamos recomeçar a nossa vida do zero, outra é percebermos que também nós nos vamos reconstruindo ao longo do processo. Que crescemos. Que nos transformamos. Dois anos depois, não é só a minha vida que é completamente diferente. Eu própria sou hoje uma pessoa diferente. Ninguém muda da noite para o dia, a meio do percurso. O que muda é a nossa forma de encarar a vida. A forma como nos relacionamos com as pessoas. O modo como enfrentamos os desafios, os problemas. À medida que ia estabelecendo as bases de uma outra existência, fui também mudando conscientemente a minha forma de estar na vida. Consolidei-me. Pacifiquei-me. Amadureci. Ganhei outra segurança e dimensão. Uma espécie de força interior, uma bússola que me vai mostrando o caminho. É como se as coisas à minha volta estivessem finalmente no lugar certo.

Por estranho que possa parecer, estou hoje muito mais perto da pessoa que eu era no final da minha adolescência, antes de ter tropeçado na criatura errada. O tempo que decorreu desde então até agora, foi apenas um hiato. Aos poucos, aquilo que é verdadeiramente importante para mim tem vindo à superfície. Aquela parte cristalizada da minha personalidade que esteve tanto tempo adormecida, subjugada, latente, tem ganho cada vez mais importância. Aquela que eu sou. Sem grandes certezas, sem grandes espertezas. Simplesmente eu. A educação que recebi, os valores que me foram transmitidos, a ética de vida que sempre me norteou, estão hoje mais nítidos do que nunca. Pedra basilar da pessoa que sou. O passado onde me revejo. Nunca estive tão longe da minha família e nunca me senti tão perto. A minha estrela polar.

E, depois, há a pessoa que tenho ao meu lado. Não à frente, não atrás. Exactamente ao lado. Em pé de igualdade. Descobri que há pessoas que têm a capacidade de nos iluminar. Literalmente de nos fazer brilhar, resplandecer. Porque conseguem potenciar o que temos de melhor. Porque temos vontade de nos tornarmos melhores, só para estarmos à altura do amor que sentem por nós. Não se trata de sermos muito parecidos ou de termos muitas coisas em comum. Trata-se apenas de partilharmos uma certa forma de ser e de estar na vida, regida pelos mesmos princípios. De cuidarmos um do outro. De estarmos lá um para o outro, aconteça o que acontecer. A concha e o âmago, numa espécie de simbiose em que um consegue ler na alma do outro e sentir o que o outro sente. Unidos por um amor, por uma amizade, por um respeito imensos. Pontuados de admiração. E de risos. Sem promessas vãs de amor eterno, sinais exteriores ou papéis. Um amor conjugado no presente. Tapeçaria de Penélope, que se faz e desfaz incessantemente e, assim, se vai prolongando dia após dia.

Por fim, o mais importante. O que não tem palavras e é pura poesia. O que apenas se sente. O amor imenso, infinito, incondicional. Visceral. O primeiro e último pensamento do dia. A razão de tudo o resto. Força motriz. Um filho grande que entrou na fase mais engraçada e complexa da sua existência. Um filho pequeno que ainda vive deliciosamente ancorado num mundo mágico. Filhos que não são meus filhos, são um empréstimo da vida. O futuro. Tela branca pintada de possibilidades infinitas. Reflexo daquilo que fui, daquilo que sou. Do que ainda me falta viver. Janela aberta para o mundo.

A pessoa que hoje sou depende destes três pilares que me sustêm: o meu passado, o meu presente e o meu futuro. Esta é a minha força que me deixa vacilar, mas nunca me deixará cair.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Famílias perfeitas

(M.E.D.O)


Fujo das famílias perfeitas. Pais perfeitos, filhos perfeitos. A roupa perfeita. O programa perfeito. A paisagem perfeita. O momento perfeito. A imagem da perfeição estampada nos rostos perfeitos.

As famílias perfeitas estão sempre felizes. Mas ficam ainda mais felizes se apregoarem essa felicidade. Se a mostrarem. Às famílias perfeitas não basta ser, têm de parecer. E de aparecer. Por isso é que as famílias perfeitas estão sempre a tirar fotografias, ao bom estilo selfie para terem a certeza de que estão todos perfeitos. Aliás, as famílias perfeitas nunca tiram fotografias desfocadas, ao longe, em movimento. Fotografias de alguém a fazer algo. Porque as famílias perfeitas não fazem, existem. E gostam de impor a sua existência, como se o paradigma da perfeição fosse universal e indiscutível.

As famílias perfeitas não são gordas. Nem feias. Muito menos doentes. O visual está sempre impecável. As crianças não se sujam, nem metem o dedo no nariz. Os adultos nunca estão cansados. O cão não perde pêlo. Por isso são perfeitos. Longe, muito longe, do comum mortal. Dos plebeus. Principalmente, longe dos plebeus. Porque as famílias perfeitas pertencem a outra estirpe, citadina e mundana. Consumista. O culto da boa vida faz parte do quotidiano das famílias perfeitas, cuja distinção se esgota na embalagem de marca.

As famílias perfeitas nunca discutem, nunca se zangam, nunca estão em desacordo. As famílias perfeitas funcionam como um único ser. Organismo uno que avança como um todo. Os membros das famílias perfeitas têm de ser todos iguais. Corte de cabelo e imagem perfeitamente simétricos, gostos e opiniões perfeitamente coincidentes. Porque a perfeição é una, como se sabe.

Tentei encontrar uma fotografia nossa em modo “família perfeita”, mas não consegui. Menos mal, quer dizer que somos sãos. Imperfeitamente reais. Isto somos nós, a lançar um papagaio que não gostava de voar. Um bocadinho antes de desatarmos a correr atrás de um cão que adora fugir. Uma velhota gritou connosco porque estávamos a estragar o feno que ainda não tinha sido apanhado. Dando razão ao Diogo que se zangou porque não gosta de invadir campos. Depois, choveu. Mas, que me lembre foi um bom domingo.


Se a família é o sítio onde aprendemos a ser, eu quero que os meus filhos aprendam connosco a não serem perfeitos. Quero que aprendam o reverso da medalha, o lado mais sombrio. Que aprendam a estar tristes, a terem de controlar a fome, a estarem doentes. Quero que aprendam a zangar-se e a discutir. A dizerem o que sentem, mesmo que isso magoe. Melhor ainda se aprenderem a dizer o que sentem sem magoar ninguém. Quero que aprendam a chorar e a pedir desculpa pelos erros. Que errem bastante. Que aprendam a andar descalços e sujos. Muito sujos. E a fazer disparates. Quero que aprendam a esperar por uma prenda no final do mês. Ou no mês seguinte. Que aprendam a desejar. A lutar. Quero, principalmente, que aprendam que a nossa família não é perfeita, mas que os aceita tal como eles são. Que é em família que se ensaia o lado negro, porque há espaço para exprimir sentimentos negativos. Para os integrar. Para os ultrapassar. Ninguém é perfeito, não há vidas perfeitas. Muito menos famílias perfeitas.
 

 

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Lição de humildade

(às vezes é mais fácil criticar do que compreender)


Agosto chega, arrastando uma vaga de emigrantes que regressam a Portugal nas férias. É a época dos carrões de matrícula francesa a voarem por esse país afora. Das festas nas aldeolas perdidas de Norte a Sul. Da música pimba e das idas espalhafatosas à praia. Dos gritos numa miscelânea de português e francês que provocam risos trocistas à volta. Porque onde uns vêem um regresso a casa, outros vêem um motivo de gozo.

A nossa emigração mudou muito nos últimos anos, mas o preconceito manteve-se. É como se continuássemos a ser portugueses de segunda, desprovidos de nacionalidade em prol de uma outra identidade que nos colaram à pele. Emigrantes! Nem carne, nem peixe. Terra de ninguém. Estereótipo da criatura ridícula e risível que poupou o ano inteiro para se armar em novo-rico no Verão. Que ri e fala muito alto, misturando duas línguas para se armar aos cucos. Que ralha com os filhos em francês, mas que ameaça em português quando a coisa descamba.

Para quem está de fora, esta é a principal característica do emigrante: saltita entre duas línguas. Tal como, dentro de si, saltita entre dois mundos. Dois países, duas vidas. Duas culturas que não se misturam. Uma existência no limbo, feita de concessões. Um país que o viu nascer e o forçou a partir. Outro país que o acolheu mas que não é o seu. Saudade e gratidão. E algures no meio disto, viver. Aprender a ser feliz na dualidade. Educar os filhos na dualidade.
 
Falar português ao acordar, francês enquanto trabalhamos. Falar português quando nos reencontramos, francês enquanto fazemos os trabalhos de casa. A lista das compras está em português, a lista das coisas a fazer em francês. Ouvimos música em português, lemos livros em francês. A televisão é francesa, mas os nossos comentários são em português. Falamos português ao telefone e francês ao telemóvel. Ao jantar falamos francês, que as crianças ainda estão a crescer e precisam de aprender a linguagem dos afectos que a escola não ensina. Mas “tira os cotovelos da mesa” e “come!” saem em português. Porque resvalamos sempre para a nossa língua para ralhar e mimar. Para amar. Mas, quando a luz se apaga, falamos francês…

“Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, dizia Pessoa (que também saltitava entre duas línguas e várias personalidades). Mas cansa. E ajudava tanto se em vez do gozo, à nossa volta houvesse compreensão. Humildade para respeitar uma estranha forma de vida completamente desconhecida.