(onde
se fala da ausência de peneiras)
Hoje,
desci da minha torre de marfim para picar o ponto à hora do almoço. Estava a
meio do percurso e já ouvia gargalhadas. Na secretaria, estavam todos em amena
cavaqueira. A secretária-mor andou na cave à procura de uns documentos e
encontrou velhos álbuns de fotografias que encafuei na prisão*, à falta de
ideia melhor.
Fui
buscar o meu almoço e por ali fiquei, a ver fotografias do século passado. A
rir ao reconhecer os carecas com cabelos. E as velhotas de mini-saia. Quando os
meus 15 minutos da praxe acabaram, subi e comecei a lavar a loiça. O meu chefe
veio atrás, pegou num pano da loiça e pôs-se a limpá-la. Uma das psicólogas da
associação arrumou-a. A aprendiza de psicóloga fez mais café para todos.
Depois, voltámos calmamente ao trabalho.
Esta
é talvez a característica que mais gosto nos belgas: a falta de peneiras. A
simplicidade. No trabalho, somos todos iguais. Todos nos cumprimentamos com um
beijinho de manhã. Da senhora da limpeza ao director. Todos trazemos comida de
casa, que aquecemos à vez no micro-ondas. Para economizar tempo e dinheiro. Da
senhora da limpeza ao director. Almoçamos com quem está mais à mão, com quem precisamos
de falar, em frente ao computador, se houver trabalho para acabar… sozinhos, se
estivermos num dia não. Da senhora da limpeza ao director. Ninguém se rala por
hoje fazermos uma coisa e, amanhã, outra. Não há cá mexericos, nem comentários.
Reina a descontração.
A
casa de banho é só uma e, às vezes, há fila. No início, fazia-me um bocadinho
confusão fazer chichi, sabendo que o meu chefe estava à espera atrás da porta.
Mas depois habituei-me. Tal como me habituei a vê-los descalços, nos dias mais
quentes. Ou a percorrer os gabinetes para ver se alguém deixou um casaco
esquecido, quando arrefece subitamente. Com o passar dos meses, comecei a sentir-me
em casa.
A
roupa que já não serve ao Vasco vai para os filhos da secretária mais nova que,
depois, os dá à contabilista. A assistente social vai dar-me uma estante. As
coisas passam de uns para os outros, simplesmente. Quem se quer desfazer de
algo, passa primeiro a palavra para ver se alguém precisa. Não há desperdícios inúteis.
Tal como toda a gente sabe que, se houver fruta a estragar-se no frigorífico, qualquer
pessoa pode comê-la. É assim uma espécie de espírito comunitário, de
microcosmos social, que resulta. E resulta bem. Sem peneiras.
[
*A sede da associação onde trabalho fica no antigo edifício centenário da Junta de
Freguesia. Na cave, há uma prisão verdadeira, ao estilo dos Irmãos Dalton, que
servia para curar bebedeiras e resolver disputas entre vizinhos. Actualmente, serve para
arrumar tudo o que não tem arrumação. No sótão onde fica a “minha” biblioteca,
há um chão falso com um buraco especialmente concebido para guardar tesouros.
Infelizmente, está vazio. Nas traseiras do edifício, há uma salinha que
comprometemo-nos a ceder a quem precisasse. Às terças-feiras de manhã, ouvimos os
aplausos que pontuam as reuniões do WeightWatchers e, aos sábados, a cantoria
inflamada dos seguidores de uma igreja africana qualquer. ]
Começo a achar que as peneiras são um exclusivo lusitano. Dispensava-o tão bem.
ResponderEliminarTodas as nacionalidades têm os seus "exclusivos" especialmente irritantes. Sem dúvida que as peneiras são apanágio do tuga! :)
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