terça-feira, 31 de março de 2015

A espera tem sido longa

(onde se mostra uma espécie de punching bag)


 
Há quase um mês que esperamos por uma decisão do tribunal que tarda, tarda, tarda… Tenho vivido este tempo em suspenso. Acho que nem sequer se pode chamar a isto viver. Tenho planado por estes dias. Mas a seco. Ou seja, sem ansiolíticos, soníferos, álcool ou tabaco. Não é fácil.

Às vezes, apetece-me extravasar o nervoso miudinho que vou acumulando à medida que os dias passam. Gastar energias. Descomprimir. Mas estou proibida de nadar. Quer dizer, a médica da medicina desportiva proibiu-me de praticar natação. Nadar, eu posso. O problema é que não sei nadar, só sei fazer piscinas como se não houvesse amanhã e isso dá-me cabo dos ombros. Creio que também daria cabo da fúria que sinto, mas pronto. Andar a cavalo teria o mesmo efeito, sei-o bem. Nunca me apeteceu tanto fazer ginástica de obstáculos. Simplesmente, não estou em condições de me aproximar de um cavalo. Eles sentem o nosso estado de espírito à distância. Acreditem, eu tentei. Resta-me a corrida, isso posso fazer à vontade. Mas correr ao frio e à chuva… acho que para mal já basta assim, como dizia a música da minha infância. O meu corpo não merece que lhe inflija uma tortura dessas.

Voltei-me para a única coisa possível. Não é considerada desporto, por isso não está na lista das actividades proibidas. Embora serrar, lixar, aparafusar, pregar e pintar cansem. Muito. Tenho as mãos numa miséria, cheias de feridas e de bolhas rebentadas. Todas gretadas e com as unhas partidas. Os ombros também me doem, claro. Vou deitar-me com o corpo cansado, mas um bocadinho mais descansada de espírito. As noites não são melhores que os dias.

O meu amor passa os dedos pelas feridas. Diz que ninguém teria encontrado uma forma mais produtiva de enfrentar este compasso de espera. Faz-me festinhas e curativos. Dá-me beijos. Diz que tem orgulho em mim. E elogia cada objecto construído de raíz que sai destas mãos. Mãos doridas, espelho do que me vai na alma.





sexta-feira, 27 de março de 2015

“Houve quem tivesse muito piores notas…”

(onde se avizinha uma conversa séria sobre a responsabilização)

 


O meu amor e eu atribuímos uma importância diferente à responsabilização dos rapazes. Ele defende a responsabilização preventiva, eu sou apologista da responsabilização a posteriori. Ou seja, para o meu amor é essencial que o Diogo e o Vasco aprendam a responsabilizar-se por fazer certas coisas. Sinceramente, eu preocupo-me menos com o meio para atingir os fins. O que conta é o resultado final. Acho importante que eles aprendam a assumir as consequências dos seus actos. Doa a quem doer. Se calhar, pensando bem, isto vai tudo dar ao mesmo, não sei. Eu exemplifico...

O meu amor, normalmente, estuda sempre com o Vasco antes dos testes. Faz exercícios e revisões com bastante tempo de antecedência. Lá está… responsabiliza-o para a importância do “estudo antecipado”, por assim dizer. Os resultados escolares da coisa pequena são, como se sabe, excelentes. O problema é que as sessões de estudo correm sempre bem, mas são precedidas de uma gritaria infernal. O meu amor avisa a coisa pequena meia hora antes e dá-lhe tempo para “se passar”, como ele diz. Depois de o Vasco se acalmar, começa finalmente o estudo. Eles lá se entendem os dois, à maneira deles. Mas esta choradeira inicial começou seriamente a incomodar-me. Sempre tive pouca paciência para birras. Acho que são um dispêndio de energia e uma tremenda falta de educação.

Desta vez, consegui a custo convencer o meu amor a deixar o Vasco gerir o seu próprio plano de estudos. Esta semana, houve exames. A coisa pequena sabia perfeitamente, porque duas semanas antes trouxe os cadernos para casa e a professora mandou o planning dos exames. Quando chegava a casa, no final do dia, cansado de todas as suas actividades, o Vasco preferia brincar. O estudo era rapidamente despachado. O que eu percebo perfeitamente, mas ele já está habituado a este sistema de ensino e sabia o que tinha de fazer. O que era esperado. Pela primeira vez, decidimos deixar andar. Deixar esticar a corda. Limitei-me a perguntar-lhe, diariamente, se já tinha estudado tudo o que era preciso para o exame do dia seguinte. Que sim, senhora. Que era evidente. Que a matéria estava mais que sabida. Vista e revista, pelo menos três vezes. Aliás, era tudo facilíssimo. O meu amor não se conseguiu conter e fazia-lhe umas perguntas rápidas antes de deitar, só para controlar o “facilitismo” da matéria em questão. As coisas até nem pareciam mal encaminhadas…

Ontem fui buscar o Vasco mais cedo à escola. Apanhei-o a jogar à bola à chuva. Seguiu a toque de caixa para o carro, emburrado. Não estranhei o silêncio que se seguiu. Quando chegou a casa, subiu logo para o quarto e atirou displicente: “Houve quem tivesse muito piores notas que eu, na minha turma…” Eis a maneira airosa que a coisa pequena arranjou de anunciar que já tinha começado a receber os resultados dos exames. E que não eram bons. O Diogo, não sendo nada com ele, até se encolheu. Sabe bem o quanto detesto a entidade “os outros”. Passo a vida a dizer que sou mãe destes, não dos outros. Com as más notas dos outros, posso eu bem. Achei melhor nem olhar já para os testes para não me enervar. Avisei-o que, quando recebesse o boletim na próxima semana, íamos ter uma conversa séria sobre responsabilização. Sobre assumir as consequências dos seus actos. E aprender com os erros. A coisa pequena ficou em pânico. Os meus filhos conhecem-me bem. Preferem largamente meia dúzia de berros, num ataque de fúria que me passa depressa, a uma conversa calma em perspectiva. “Por hoje, safas-te…”, concluí. “Não me safo nada! O Pascal vai querer ver os exames todos, um a um, de uma ponta à outra!”, respondeu-me o Vasco, desanimado.

Por enquanto, uma coisa parece ser certa... o facto de as teorias educativas serem diferentes, também faz com que os ralhetes dupliquem.

quinta-feira, 26 de março de 2015

É grátis, mas não é à borla

(por amor de Deus, cobrem-me uma mensalidade

e deixem-me em paz!)

 


Este mês foi um fartar de vilanagem. Começou com a venda de lasanhas, para a escola do Vasco. Diz que é para angariar dinheiro para pagar os ATL da manhã, as sopas da pré-primária e as “classes vertes” dos mais crescidos. Tudo gratuito. O facto de o Vasco não usufruir de nenhuma destas coisas não interessa nada. Também não importa que ninguém coma carne vermelha nesta casa. Haja espírito comunitário. Um por todos e todos por um, certo? Portanto, toca a comprar dez lasanhas. O máximo que o meu congelador comporta. Mas, depois, veio um novo papel para os miúdos venderem mais lasanhas. Parece que as vendas este ano superaram todas as expectativas e a escola mandou mais talões de encomenda. O Vasco estava triste, só tinha conseguido vender dez. Em desespero de causa, lembrei-me de levá-lo para a minha aula, olhos de Bambi em riste. Expliquei aos meus alunos que sabia que aquilo não era lá muito ético, mas que diabo… estamos aqui sozinhos, eles são o mais próximo que tenho de uma família. Fiquei comovida com o entusiasmo com que aquela malta respondeu ao meu pedido de ajuda. O Vasco angariou quase 150 euros em lasanhas e até ganhou uma bola de futebol como prémio de vendas.

Pensava eu que estava despachada até ao próximo mês. Sim, que nesta escola é tudo gratuito, mas sai-nos do corpo (e do bolso) quase todos os meses. Houve a venda de sumos de maçã caseiros, a marcha-de-não-sei-o-quê, o pequeno-almoço da associação de pais, o trabalho no ringue de patinagem… Estou desconfiada que se pusessem a directora de Saint-Joseph como ministra das Finanças em Portugal, endireitava as contas do país num ápice.

Dizia eu que pensava estar despachada até ao próximo mês, mas enganei-me. Faltava o jantar anual da escola… financiado pelos pais, pois claro. Para angariar dinheiro para as visitas de estudo. Que me lembre, o Vasco ainda não fez nenhuma, mas isso não é o mais importante. Paguei uma pequena fortuna por seis almondegas manhosas para nós os quatro (não sei se já disse que não se come carne vermelha nesta casa). No final, ainda passámos duas horas a levantar as mesas. É que, além de pagar para jantar num refeitório com centenas de criancinhas histéricas a correr à nossa volta, também é suposto os pais oferecerem-se para ajudar à festa. Das mil e uma propostas na distribuição de tarefas, escolhi a que me pareceu menos mal. Não me lembrei que íamos ter de carregar pilhas de loiça no meio das criancinhas histéricas… e já cansadas, no final do repasto. O Diogo conseguiu partir apenas dois pratos, menos mal.

Com o mês quase a terminar, pensei que estava livre de mais “angariações de fundos”. Enganei-me, uma vez mais. Desta vez foi a Académie de Musique. O espectáculo de ballet do Vasco, no próximo fim-de-semana, é pago. Oito euros para ver o meu filho dançar. Em Malmedy, para lá do sol-posto. Coisa que ele faz de graça em casa, se pedirmos com jeitinho e prometermos que não nos rimos. Segundo consta é para pagar as mensalidades gratuitas para as meninas que vivem na freguesia da escola que cedeu o espaço para as aulas. Não é o nosso caso, mas temos de ser uns para os outros. E ainda tenho de comprar base do tom de pele do Vasco. E blush, que nunca usei na vida. Parece que fica muito pálido em palco com aquelas luzes todas. Vendo as coisas pelo lado positivo, finalmente há alguém nesta casa que vai usar a minha maquilhagem antes que seque toda, como de costume.

terça-feira, 24 de março de 2015

Lançar sementes à terra

(e esperar que germinem)


 
Há cerca de um ano, o meu filho Diogo mudou. Não foi uma mudança que se fosse anunciando aos poucos. Um dia, voltou de férias assim. Meio fútil. A dar demasiada importância às aparências. À roupa de marca. Às iCoisas. Aos sinais exteriores de riqueza, como dizia o irmão desdenhoso. A anunciar aos sete-ventos que agora vivia na Lapa, o Bairro Fino de Lisboa. Assim mesmo, topónimo e epíteto seguidos. A dissertar sobre gadgets de carros de luxo. A falar de lugares in. De gente-que-conhecia-gente-conhecida.

No início, desvalorizámos. Achámos que aquilo acabaria por passar com o tempo. Mas, aos poucos, o comportamento dele também começou a mudar. A nossa relação passou por uma fase complicada. Tudo era alvo de críticas. Nós. As pessoas que nós somos. O nosso quadro de vida. O país onde vivemos. Os emigrantes.

A família tentava corrigir estas ideias com longas conversas. Chamava-o à razão, mostrava-lhe outros pontos de vista. Mandava livros. O Diogo teimava. Começámos a ficar preocupados. Eu comecei a ficar preocupada. O meu amor entrou claramente em pânico. Quem era aquele miúdo? Muitas vezes lhe fiz essa pergunta, meio a sério, meio a brincar: “Quem és tu e o que fizeste ao meu filho?!”.

No meio de tudo isto, tentávamos deslindar o novelo. Compreender o que se estava a passar. Que parte se devia à entrada na adolescência? Que parte se devia ao confronto natural com as figuras de referência? Que parte se devia a influências externas nocivas?

Acabei por desistir. Nisto de ser mãe, por vezes, é preciso desistir e saber esperar. Não desisti do Diogo, obviamente. Mas deixei de entrar em confronto com ele. Durante uns tempos, voltei a tratá-lo exactamente como quando tinha 2 anos e entrou naquela fase típica da oposição. Escolhi muito bem as minhas batalhas e só me bati por essas. Acabaram-se as longas conversas que não nos estavam a levar a lado nenhum. Acabaram-se as discussões e o interminável esgrimir de argumentos que nos deixavam exaustos e zangados. Havia coisas que eram como eu dizia e ponto final. Quer ele quisesse, quer não quisesse. Não havia disputa possível. Tudo o mais, era deixar andar. Ele que pensasse o que quisesse, que dissesse o que lhe apetecesse, que fizesse como muito bem entendesse. Entre mortos e feridos, alguém havia de escapar. O importante, naquele momento, era sobreviver. Ultrapassar aquela fase menos boa. E rezar ao deus dos ateus para que fosse breve.

O meu amor não compreendeu esta minha decisão. Expliquei-lhe que a melhor pedagogia é sempre o exemplo. É verdade que se trata de um método educativo penoso e demorado. É preciso esperar anos pelos resultados. Que exige persistência. E doses infinitas de paciência. Principalmente, é preciso ter fé. Acreditar que se deitarmos sementes à terra, mais tarde ou mais cedo, elas acabarão por germinar.

E assim fomos levando a nossa vida, tranquilamente. Uns dias, melhor… outros, pior, como é evidente. Mas, regra geral, o ambiente em nossa casa melhorou bastante. O meu amor não desistiu, inventou um método muito próprio que não interferia com o meu. Nunca ralhou com o Diogo, nunca o corrigiu. Se tinha alguma coisa a dizer, dizia-me a mim, em privado. Que me lembre, enervou-se apenas duas vezes, porque achou que o Diogo me tinha mesmo faltado ao respeito. De resto, esforçou-se por construir uma relação sólida com ele. Única, independente de mim e do Vasco. Tenta ao máximo ouvi-lo, estar presente, conhecê-lo. Aos fins-de-semana, vão jogar squash. Vão às compras sozinhos. Vêem filmes e séries que eu não gosto. Iniciaram o projecto do home cinema no sótão, de que falei aqui. Agora, com a chegada da Primavera, decidiram atacar o quintal. Cortam sebes, fazem vedações, recuperam a casa dos arrumos, constroem um galinheiro. O Diogo passa o dia na rua, como uma sombra, a segui-lo. Nunca pensei ver este meu filho de ferramenta na mão a trabalhar no duro. A fazer coisas sozinho, como gente grande.

Aos poucos, o Diogo começou a mudar. Voltou a ser o miúdo que sempre foi, mas com outra consciência das coisas. Às vezes, surpreende-nos com rasgos de lucidez. Faz comentários inteligentes, que reflectem uma visão mais madura. Ri-se imenso. É extremamente afectuoso. Vê-se que tem orgulho em nós, gosta de trazer cá os colegas. No outro dia, fez um amigo novo e disse que tinha “uma mentalidade como a nossa”. Trata o Vasco com uma meiguice de irmão mais velho que não lhe conhecia. Com uma certa distância. Voltou a interessar-se pelos animais e gosta de treiná-los. Está sempre disponível para nos ajudar no que for preciso. Muitas vezes, já toma a iniciativa sem sequer precisarmos de lhe pedir. Não tem medo de arregaçar as mangas. Já percebeu que as coisas feitas pelas nossas próprias mãos têm outro valor.

Este fim-de-semana, andámos a tratar do quintal e espalhámos terra pela casa fora. O Diogo varreu tudo sozinho, no Domingo à tarde. Ouvi-o pedir ao irmão para ter cuidado e tirar os sapatos antes de entrar em casa. Disse que tínhamos de arranjar uma caixa para pôr os sapatos na sala de jantar, junto à porta do quintal. “Não te preocupes, Vasquinho. O mano vai ver se arranja alguma coisa em segunda mão, que possamos recuperar. Ou, então, vai fazer uma.”

A Primavera, por aqui, já começou. As sementes que plantámos e que germinaram meses a fio, durante as estações passadas, começaram finalmente a nascer.

domingo, 22 de março de 2015

O que é a felicidade?

(onde sai contrariada e se volta reconciliada)


 
Ontem saí de casa zangada com o mundo. A “minha” biblioteca vai finalmente mudar de localização e queria acompanhar de perto esse processo. Mas o chefe decidiu que eu devia assistir ao colóquio anual da Down Syndrome Association, juntamente com os profissionais que trabalham na nossa associação. De modo que fiz-me ao caminho às 5h da manhã. Contrariada e ensonada. De mal com a vida.

O colóquio foi, de facto, interessantíssimo. E o chefe tinha razão, a minha presença acabou por ser útil. Só precisei da tradução simultânea para assistir às conferências em neerlandês e consegui ir apontando todas as referências bibliográficas no original. No final, ainda falei com alguns conferencistas para pedir mais informações, a pedido que alguns colegas. Espera-me muito trabalho de tradução, mas ficámos com pistas novas sobre uma série de estudos bastante promissores.

A dada altura, um conferencista falava da boa-disposição tão característica das pessoas com trissomia 21. Uma espécie de felicidade que irradiam à sua volta. E explicou que essa felicidade estava directamente relacionada com o facto de se sentirem satisfeitas consigo mesmas. Fiquei a remoer a ideia. Será que a felicidade depende mesmo da nossa auto-satisfação? Nunca tinha pensado nisso. Sempre achei que a felicidade era uma coisa muito subjectiva, demasiado difícil de classificar. Mas isso explicaria porque há pessoas cuja felicidade depende do sucesso profissional ou financeiro. Explicaria porque há pessoas que só estão felizes em constante movimento, sempre à procura de novos desafios. Ou, pelo contrário, a viver uma vida perfeitamente banal e rotineira, dedicada à família. Se cada pessoa atribuir a sua satisfação pessoal a factores individuais e únicos, é normal que a própria noção de felicidade seja indefinível. Por outro lado, também explica a predominância de “estados de felicidade” sobre um tipo de felicidade consensual, uno e eterno.

No final do colóquio, ouvimos o testemunho de uma pessoa com síndroma de Down. Uma mulher da minha idade, com uma lucidez tocante sobre a sua própria condição. Que nos mostrou fotografias à medida que ia falando sobre a sua vida, com imenso sentido de humor. Explicou-nos que em pequena tinha tido sérios problemas de desenvolvimento, mesmo para uma criança com trissomia 21. Não tinha tido uma infância fácil, mas os pais nunca desistiram. Aos dez anos começou a ser seguida pelo Professor Feuerstein, em Israel, que defendia a ideia de que a inteligência pode ser desenvolvida através da aprendizagem mediada. Um método exigente que mudou a vida de Peetjie. Conseguiu concluir o ensino secundário numa escola oficial. Escreveu um livro. Faz diversas actividades. Toca clarinete numa banda. Conduz um carro motorizado. Disse: “Sou uma pessoa feliz. Tenho os meus pais que sempre lutaram por mim, tenho o meu trabalho como auxiliar numa escola. Tenho a minha casa, onde vivo sozinha com o meu cão. Tenho uma amiga.” E isto, para ela, era a felicidade. Não me parece que esta felicidade, que alguns designariam de “simples”, se deva a um défice intelectual. Esta felicidade deve-se ao facto de Peetjie saber que atingiu o máximo das suas potencialidades e de isso a deixar satisfeita consigo mesma.

quinta-feira, 19 de março de 2015

O melhor pai do (meu) mundo

(porque acho que nunca lhe agradeci)

 

Obrigada por teres tido a loucura de fazer um filho por gosto, numa época conturbada, a muitos milhares de quilómetros de casa. E por ainda hoje gostares da minha mãe. Obrigada por teres ficado comigo, quando não existiam guardas partilhadas. Pela “madrasta má” que me arranjaste, que me continua a infernizar a vida. Obrigada pela infância deliciosa que me ofereceste. Tinha tudo o que uma criança precisa para crescer feliz: liberdade e amor. Rédea solta. Irmãos. Tios. Avós. Muitos amigos. Obrigada pelas colónias de férias. Obrigada pelos animais todos que me deixaste ter, apesar de resmungares. Pelo Miró, de quem tenho tantas saudades. Obrigada pela paciência com que assististe ao meu percurso escolar medíocre, único na nossa família. Por me fazeres acreditar que o problema não era meu, mas da escola. Por valorizares qualidades, por vezes, incompreensíveis. Por lutares por mim. Obrigada pelas centenas de livros que nunca tive de pedinchar. Por incentivares o saber. O questionamento A descoberta. A lucidez. A ética de vida. Por me ensinares a respeitar os outros. Pelas aulas de equitação, a minha grande paixão. Por fazeres de mim uma menina mimada, claramente insuportável. Mas muito amada. Obrigada por toda a atenção que sempre me deste.

Obrigada por me teres deixado ir viver contigo, quando me fartei de andar de mochila às costas todas as semanas. Obrigada por me deixares ser uma adolescente algo complicada. Por todas as actividades e desportos que pude experimentar, da azulejaria ao judo. Obrigada por me passares o gosto pelas viagens. Por conhecer o outro. Por me teres deixado partir, quando quis ir conhecer o mundo pela primeira vez, muito antes de ter idade para isso. Foi um ano difícil, que mudou a minha vida. Hoje, vejo que deve ter sido igualmente difícil para ti. Obrigada por me ensinares que os homens também choram. Obrigada por todas as cartas que me escreveste. Por incentivares a escrita. Por gostares das minhas histórias. Obrigada por me teres deixado escolher o meu próprio rumo, diferente do teu. Pelos anos de universidade absolutamente fantásticos, onde fui tão feliz. Pelo Mini, que me levava as mesadas todas. E por acolheres sempre de braços abertos os amigos que passavam por nossa casa. Por não ter horas de chegada. Por toda a confiança que depositavas em mim.

Obrigada por teres dito o que pensavas, quando percebeste que estava a cometer um erro. Não te enganaste, os anos deram-te razão. Obrigada por teres estado lá para me amparar a queda. E me puxares para cima. E obrigares-me a acreditar em segundas oportunidades. Recomeços. Por me mostrares que o caminho pode ser longo, pode ser duro, pode ser cansativo… tu estarás sempre lá para mim. Mesmo que ao longe. E eu sou capaz. Obrigada por, mais uma vez, lutares por mim. Pelos meus filhos. Obrigada pelo avô que és. Obrigada por teres sempre um novo livro para me dares a ler. Um artigo, um vídeo. Por continuares a interessar-te pelo meu crescimento enquanto pessoa. E por gostares de partilhar coisas comigo. Pelas nossas conversas. Obrigada por encurtares sempre a distância. Obrigada por todas as festinhas que me fazes na cara, depois de me dares um beijinho.
 
Obrigada por aquele dia, nas férias grandes, em que me acordaste de madrugada, para irmos os dois ver nascer o sol do cimo de uma montanha. Nunca me esqueci.
 
 

terça-feira, 17 de março de 2015

Ser alguém

(independentemente do estatuto)

 

No outro dia, estive à conversa com a nova empregada da limpeza, no meu trabalho. É uma senhora russa que emigrou há mais de 20 anos. Falámos muito sobre isto de sermos emigrantes. Da nossa terra. Dos novos começos. De deixar a família para trás. De trazer os filhos. Dos sacrifícios. Dos novos amores. Falámos da Bélgica, da nossa vida neste país. Da generosidade típica dos belgas, da entreajuda. Da simplicidade das pessoas.

Volta e meia, ela olhava em volta. Abanava a cabeça e sorria. Antes de se ir embora, fez-me uma festinha na cara. E disse-me, num francês macarrónico: “É bonito, o teu escritório. E grande! Tens um escritório só teu. Com o teu nome na porta e tudo. Tens uma linha telefónica. E falas tão bem francês! Mal se nota que és emigrante. Eu só desconfiei por causa do teu nome. Gosto de ver que a emigração mudou, nos últimos anos. Os homens já não vão para as obras e as mulheres para as limpezas. Tu estudaste, és chefe. Podes ter uma vida melhor. Os teus filhos vão ser alguém. Parabéns!”

Eu corei e agradeci, mas fiquei sem jeito. Estou farta de pensar que devia ter dito alguma coisa. Devia ter respondido que não é o estatuto social dos pais que faz com que os filhos sejam “alguém”. É a educação que lhes damos. Os princípios de vida que lhes transmitimos. E isso não muda consoante o cargo que ocupamos. O estatuto profissional é só mais uma roupagem, no meio de tantas outras que nos envolvem o corpo. Não condiciona em nada aquilo que sou, intrinsecamente. Eu quero que os meus filhos se tornem “alguém”, sim. Alguém que sabe tratar bem as pessoas, que gosta de ter uma palavra amável, que consegue ser humilde. Sem humildade não se aprende nada na vida.

O Diogo contou-me que ontem deixou a professora substituta de solfejo a chorar, no seu último dia de aulas. Agradeceu por tudo o que tinha aprendido. Disse que era um privilégio ter sido aluno dela.

A vizinha que faz as limpezas na escola do Vasco bateu-me à porta, esta manhã. Trazia um saco cheio de roupa que já não servia ao filho. Sabe que o Vasco perde muita roupa, porque anda sempre à volta do “caixote dos perdidos”. E, depois, disse-me baixinho: “Sabes, todos os dias ele vai dar-me um beijinho. E trata-me sempre por “Madame Nathalie”.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Parece que são como gatos…

(onde se apresenta o Bitoque e o Bifana)

 

Desde que a Belle morreu que o Vasco andava a pedir outro animal. Eu concordei, mas expliquei-lhe que não se podia simplesmente substituir um bicho por outro. Era importante aprender a fazer o luto. E que isso levava o seu tempo.

Como se sabe, a coisa pequena tem uma relação muito própria com o tempo. Passa sempre demasiado depressa. Portanto, lá fomos nós ao sítio do costume, mais cedo do que o previsto. A ideia era comprar outro bicho pequenino, para aproveitar a coisas que tinham ficado da Belle (caixa, comida, roda, etc.). Avisei-o de que escusava de se pôr com ideias mirabolantes. Tipo répteis viscosos que comem ratos. Ou chinchilas saltitonas, a sua mais recente paixão. Decidi jogar pelo seguro e deixar o meu amor em casa. Bastava-me levar um com queda para o disparate. Claro que nunca pensei deparar-me com um vendedor ultra-eficiente…

Eu: Olha ali aquele hamster anão tão fofinho, Vasco…
Coisa pequena: É minúsculo! Gosto mais dos gerbilos.
Vendedor: Os gerbilos são animais muito engraçados.
Coisa pequena: São parecidos com as chinchilas, não são?
Eu: Hum
Vendedor: Pois… mas não são tão sensíveis.
Coisa pequena: Posso ter um gerbilo, mãe? Posso?
Eu: E quanto tempo vivem, em média?
Vendedor: Cinco anos.
Eu: Hum
Coisa pequena: Posso, mãe? Posso?
Vendedor: Olhe que não dão trabalho nenhum. Nem deitam cheiro. Comem muito pouco, quase não bebem água…
Eu: Hum
Coisa pequena: Posso? Posso?
Eu: Mas são roedores como os hamsters? É que tivemos uma que dava cabo de gaiola atrás de gaiola… E que fazia um barulho desgraçado, quando se punha a roer durante a noite.
Vendedor: Não, nada disso. O gerbilo é um animal do deserto. Vai adaptar-se aos vossos horários num instante. Não fazem barulho nenhum à noite.
Eu: Hum
Coisa pequena: Então, posso? Posso?
Eu: E é um animal amistoso? Pode-se pegar nele?
Vendedor: Sim, sim… Isto mais parece um gato.
Eu: Hum
Coisa pequena: Posso? Posso? Posso?
Eu: Está bem, escolhe lá um.
Vendedor: Não se vai arrepender, minha senhora. É um animal muito engraçado.
Coisa pequena: Obrigada! És a melhor mãe do mundo! Quero o preto.
Vendedor: Pois… mas é melhor levar mais um. São animais que vivem em comunidade, sabe? Morrem de solidão…
Eu: Hein?! É melhor escolheres outro bicho, Vasco...
Coisa pequena: Mas tu disseste que sim, mãe! Quero o preto! O preto e o castanho! Levamos só dois, está bem?
Eu: Hum... Pronto, está bem.
Vendedor (já com os dois gerbilos enfiados na caixa de cartão): E gaiola, tem?
Eu: Tenho a caixa do hamster. Não serve?
Vendedor: Pois… é melhor, não. É que os gerbilos precisam de saltar. São tipo esquilos. É preciso mais do que um andar. Estas aqui, são perfeitas… E estão em promoção.
Coisa pequena: Levamos também a gaiola, não é, mãe? O senhor diz que é melhor...
Eu: Seja…
Vendedor: E comida, já tem comida?
Eu: Tenho a comida que sobrou do hamster. Não serve?
Vendedor: Servir, serve… mas é melhor misturar com comida própria para gerbilos. Esta aqui é muito boa…
Eu: Mas eles comem uma comida especial?!
Coisa pequena: É melhor levar um saco de comida, mãe... O senhor diz que é preciso.
Eu: Seja… Pronto, está tudo. Agora vamos embora.
Vendedor: Só falta a areia…
Eu: Mas qual areia?! Eu uso pallets e ainda lá  tenho um saco cheio!
Vendedor. Sim, claro. Pode pôr pellets no fundo da gaiola. Mas os gerbilos precisam de areia para limpar o pêlo. Têm de ter sempre um tupperware cheio com areia limpa. Vou só ali buscar um saco de areia muito em conta...

 
De maneiras que é isto… Saímos de lá com uma gaiola de dois andares, comida especial e um saco de areia minúsculo a um preço proibitivo. Mais a merda dos gerbilos, feitos histéricos dentro da caixa de cartão. E um prospecto informativo, que se eu tivesse começado logo por ler me teria refreado o “sim” inicial.

O que dizer dos gerbilos? Que no caminho de regresso de 15 minutos conseguiram roer as duas caixas de cartão onde vinham, obrigando-me a conduzir com uma mão no volante e outra no buraco cada vez maior, arrancando gargalhadas à coisa pequena. Que uma vez chegados a casa, os soltámos em cima da cama do Vasco e que nos vimos em sérias dificuldades para os apanhar. Que os gerbilos são uma espécie de bicho hiperactivo, que não se deixa agarrar nem por nada. Que quando os agarramos à força têm uma espécie de convulsões que aterrorizam qualquer um. Que o nível de "domesticabilidade" está muito abaixo de zero. Que roem tudo à sua volta e passam a noite a escavar túneis. Que mordem que se fartam. Resumindo, diz que são gatos... mas estou seriamente desconfiada que me venderam gato por lebre.






 

sexta-feira, 13 de março de 2015

Um gajo porreiro

(afinal, é tudo uma questão de perspectiva)


 
Conheço algumas histórias de divórcios. Na sua maioria, complicadas. Algumas bastante complicadas. Mirabolantes mesmo. Há dificuldades na separação propriamente dita, no resolver de coisas passadas, no lavar de roupa suja em público. Depois, na partilha dos bens, no acordo quanto à guarda dos filhos e no pagamento da pensão de alimentos. Na gestão da relação com as respectivas famílias. E no aparecimento de novas pessoas. Este processo implica sempre problemas mais ou menos graves. Mais ou menos duradouros e desgastantes. Problemas que, por vezes, acabam por se resolver. Ou nem por isso. Outras vezes, agravam-se.

Mas quando passo os olhos pela blogosfera, por mais estranho que pareça, só vejo histórias de sucesso. Estas relações são uma espécie de casas de revista, irreais de tão arrumadas e limpas. Intocáveis. Os ex-maridos nunca são ex-maridos, são “o pai dos meus filhos”. Uns gajos porreiros a quem se agradece tudo e mais um par de botas. Os melhores pais do mundo. Uns amigalhaços. Um orgulho. A melhor escolha que podiam ter feito. Tipos com os quais têm uma relação de sonho. O melhor exemplo de vida que podiam ter dado aos filhos. Trabalhadores incansáveis que põem a progenitura em primeiro lugar. Aliás, as crianças ficam sempre com as mães. Pai nenhum na blogosfera pede guardas partilhadas, porque o amor materno é sacrossanto. Mas estão presentes sempre que é preciso. Sempre que quiserem e os meninos pedirem. Depois do amor fica a ternura e a amizade construídas ao longo dos anos, coroadas pela magnífica descendência que os uniu para toda a eternidade e mais além. Gajos com os quais se pode sempre contar, desde um trabalho de última hora a uma saída para beber uns copos com os amigos. Gente fiável e da máxima confiança. Nem nunca há problemas de dinheiro. Que eles são homens para pagar de imediato a metade do lápis que o puto perdeu pela enésima vez na escola. Uns gajos porreiríssimos. Só não percebo por que raio de motivo se separaram, homens desses é conservá-los porque valem ouro.

Bem vistas as coisas, deve ser tudo uma questão de perspectiva. Só pode. De escolhermos a perspectiva que nos for mais favorável. Afinal de contas, eu também tenho um gajo porreiro na minha vida. Se calhar, não lhe dou é o devido valor. A seguir aos meus pais, foi a pessoa que mais contribuiu para o meu crescimento. Sem ele, nunca me teria transformado na pessoa que hoje sou. Às vezes, é preciso obrigarem-nos a bater mesmo no fundo. No fundo do fundo, no nível mais básico do nosso amor-próprio, para virmos ao de cima respirar. Agora sei que me podem tirar tudo. Eu consigo reunir os estilhaços e recomeçar do zero. Consigo perceber que a vida que ficou para trás não era vida para ninguém e que ainda bem que terminou, por muito que isso me tivesse custado naquele momento. Consigo não só perdoar, como sentir-me profundamente agradecida. E dar os créditos a quem de direito.

Claro que as coisas podiam ter ficado por aqui, já seria suficiente. Mas o gajo porreiro foi mais longe. É verdade que a pessoa que eu era, há quase três anos atrás, era apenas um esboço. Um rascunho vago e fluido de uma Rita que tinha sofrido e tal, mas que estava a conseguir reconstruir-se aos poucos. Portanto, o gajo porreiríssimo passou ao ataque. Ofendeu-me e agrediu-me à frente dos seres que mais amo. Acusou-me de mentiras, meteu processos e queixas-crime. Denigriu-me e incitou a que me denigrissem. E com isso obrigou-me a tornar-me ainda mais forte. Sólida. Quando ganhei a minha primeira batalha judicial, este ser fantástico decidiu atacar o lado prático da minha vida. Aí, vacilei. Mas descobri que, contrariamente ao que pensava, não estou só. Tenho uma família que me serve de escudo e um amor que me protege como uma armadura. Esta era, sem dúvida, a lição que me faltava aprender: não é vergonha nenhuma admitir que sozinhos não conseguimos, que precisamos de ajuda. E, mais uma vez, lhe agradeci. Fiquei ainda mais forte, percebi que estou rodeada de pessoas que me querem bem. Percebi que há quem acredite em mim e me admire. E isso faz cócegas na barriga. O mais engraçado é que – ajudas pontuais à parte, vindas das pessoas habituais e das mais insuspeitas – percebi que, afinal, consigo sustentar sozinha uma família. Nós. Eu chego para nós. Nunca pensei que isso fosse possível. O gajo porreiro também nunca deve ter pensado. Eu chego para nós graças ao meu trabalho. É muito bom.

Infelizmente, o disco continuou em looping. Um discurso repetitivo e contínuo que tem como único objectivo minar a minha confiança e auto-estima. Que sou louca, desequilibrada, instável. Histérica e descontrolada. Principalmente, mentirosa. Desfasada da realidade. Ladra. E muito, muito, má. Maldosa mesmo. Sou egocêntrica e ponho os meus interesses em primeiro lugar. Por isso, sou má mãe e faço mal aos meus filhos. Aliás, tenho uma relação péssima com o mais velho, um adolescente de risco. À beira da delinquência. E o pequeno para lá caminha. A culpa é minha, claro. Que os obrigo a viver numa ditadura. Que não estou a par das novas tecnologias. Afinal, transformei-me numa campónia. Talvez porque sou pouco inteligente. A minha vida é uma fraude e vivo no país das maravilhas. Eu e a Alice. Mais a Rainha de Copas e o Coelho. Todos a passar fome num país estrangeiro. Uma autêntica vergonha. Porque ser emigrante é uma vergonha. Cortem-lhes a cabeça! Falar uma língua estrangeira é esquecer o país que nos viu nascer. É ser fraco. Como se as vacas e os pedófilos que povoam este reino fossem melhores… Um país sem história, nem gente conhecida. Viver aqui é degradante. Humilhante. O melhor seria voltar. Arrepiar caminho e cingir-me à vida que outros escolheram viver. Porque eu mereço ser apenas espectadora, nunca actriz da minha própria existência.

Mas, caramba, parece impossível… a Justiça não me obriga a voltar. A falta de dinheiro não me obriga a voltar. Isto sim, é inadmissível. A solidão não me obriga a voltar. Chora para aí, minha parva. E a doença? Será que a doença me obriga a voltar? Hum… parece que também não. Impensável. Acima de tudo, a minha cabeça não me obriga a voltar. Não desisto. Rochedo que não vacila perante a tempestade. Tempestade, não… chuva miudinha, chuva molha-tolos. Nunca poderei agradecer suficientemente ao gajo porreiro que lança desafio atrás de desafio, sem nunca perceber que, às tantas, já funcionam como endomorfinas.

É verdade que o corpo acusou o cansaço destes anos de luta aguerrida. O filho mais velho também. Porque o gajo porreiro destila diariamente a sua mensagem, tipo seita. Usa o poderio económico para corromper. As novas tecnologias para seduzir. O laxismo educativo para aliciar. Sem outra solução, o gajo porreiro decidiu dar o golpe derradeiro e atacou o meu âmago. E o golpe foi duro. Não se separam irmãos. Nunca. Pedi tréguas, recebi novos ataques. Tipo milícia. Ataca e foge. Constante, como uma moinha que não me larga. Que me consome. Mas que não me mata. Porque agora sei quem sou, sei do que sou capaz. Conheço a minha força e a minha capacidade de resistência. De resiliência. Tenho um sistema de apoio bem estabelecido que vem de imediato em meu auxílio. Tenho novas memórias felizes que conseguem dissipar dias menos bons. Acredito profundamente na existência que estou a construir. Contrariamente ao gajo porreiro, eu consigo dar dois passos atrás e um à frente sem me preocupar.
 
A força telúrica que me faz avançar no caminho que decidi trilhar, com os pés bem assentes na terra, também me permite ter os olhos postos no céu. Sim, eu vivo no país das maravilhas. Sim, eu sou louca. Um bocadinho louca. Saudavelmente louca. Porque isso me permite ter coragem para enfrentar as adversidades. Os obstáculos que vão aparecendo. Porque me deixa perceber que, apesar de tudo, mantenho-me tal como sempre fui, fiel a mim mesma. À ética de vida que recebi dos meus pais. Não ataco, não faço mal, não ofendo. Tento nunca me deixar mover pela vingança. Não sou parva, mas recuso-me a deixar-me consumir pela raiva e a transformar-me numa pessoa negra que não me corresponde. A minha força advém exactamente do meu auto-conhecimento. As fraquezas e as forças. Os defeitos e as qualidades. A alegria de vida. A capacidade de sonhar, de me maravilhar, de me surpreender. Não controlo os acontecimentos, mas posso defender-me. Não controlo as pessoas que me querem mal, mas sei rodear-me de pessoas que me querem bem. Nem sempre assim foi e, às vezes, ainda tendo a vacilar. Mas não faz mal. Dois passos atrás e um à frente, lá vou trilhando o meu próprio caminho.

A vida dá e tira. Mas eu continuo a acreditar que, se virmos bem, a vida dá sempre mais do que tira. É só preciso esperar pelo momento certo e ter os olhos bem abertos. Postos no lado bom da vida. O gajo porreiro permitiu-me descobrir quem sou, conhecer as minhas capacidades, refazer a minha vida, encontrar e reencontrar imensas pessoas que me enriqueceram. Forçou-me a procurar soluções e a encontrar novos caminhos. Forças que nunca pensei ter. Uma paz que ainda me surpreende. Uma linha condutora. Uma ética de que muito me orgulho. E isto – tudo isto – este conjunto de características que fui aos poucos descobrindo, fizeram com que o meu amor se apaixonasse por mim. Pela pessoa que sou. “Gosto da pessoa que és”, diz-me ele muitas vezes. Eu também, eu também gosto da pessoa que sou. Aprendi a gostar. A aceitar. A lutar. A mudar, se preciso for.

Daqui por uns dias, saberei o resultado de mais um ataque do gajo porreiro. E estou tranquila. Serena, como nunca pensei ser possível. A paz, finalmente a paz que procurava. Tardou, mas afinal sempre esteve dentro de mim. Só precisava de perceber que, seja qual for a nova direcção, cabe-me a mim – e apenas a mim – decidir como vou vivê-la. Seja qual for o resultado, a minha decisão mantém-se. Não vou retroceder. Acredito na vida que estou a construir para a minha família. Sei que somos felizes. A guerra não vai terminar aqui, sei-o agora. Custou muito a aceitar, mas já percebi que ainda me esperam muitos anos de longas batalhas. Isto foi para mim a parte mais difícil de aceitar. Não faz mal, hei-de ultrapassá-las todas, uma a uma. O túnel pode ser mais longo do que o previsto, mas há uma luz constante ao longe. Gente para me acompanhar no percurso. Recursos que me permitirão chegar lá. Paz de espírito para enfrentar isto. Até há – pasme-se – uma certa gratidão por ter alguém sempre atrás de mim que me obriga a ultrapassar-me a mim mesma. A superar-me. A transformar-me numa pessoa melhor, mais forte, mais completa. A dar valor à vida que consegui reconstruir. Principalmente, a dar valor aos filhos que eu dava como adquiridos. Às vezes, damos tudo como adquirido e deixamos de lutar. Eu aceitei que terei de lutar o dobro por aquilo que quero, porque terei sempre o gajo porreiro a minar-me o caminho. Mas, hoje, encaro os meus rapazes com outros olhos. É um privilégio ser mãe deles. É um privilégio imenso tê-los ao meu lado, assistir ao seu crescimento. Eles merecem que trave todas as lutas do mundo com um sorriso estampado no rosto. E em paz. Se não exterior, pelo menos, interior. Suponho que deve ser por isso que lhe chamam paz de espírito…

quinta-feira, 12 de março de 2015

Contrariar a natureza

(ou a coragem de persistir contra tudo, contra todos,

 contra nós próprios)

 

Andar no ballet não é fácil para o Vasco. Depois de um período inicial de indecisão, nunca mais o ouvimos falar em desistir. Mas não é coisa que ele anuncie aos sete ventos. Ou seja, mantém esta sua actividade secreta, mesmo para a família.

A verdade é que os estereótipos ainda estão muito presentes na nossa sociedade. As meninas andam no ballet e os rapazes no futebol. Claro que pode haver cruzamento de actividades, mas é apenas no caso de crianças especialmente dotadas. Uma maria-rapaz craque na bola. Um menino que parece ter nascido para dançar. E quando se trata de um miúdo menos dotado? Será que alguém entende que um miúdo completamente descoordenado escolha uma actividade que vai contra todos os clichés… e contra o seu próprio jeito natural? Será que é assim tão bem visto um bicho-carpinteiro desastrado e desengonçado andar no ballet?

O Vasco é aquele tipo de miúdo que é incapaz de estar quieto. Quando passa, leva tudo à frente. E atrás e nos lados. Está sempre a cair, mesmo parado. É como se estivesse em perpétuo movimento, mesmo que aparentemente nem sequer se esteja a mexer. É assim uma espécie de movimento interior que extravasa quando menos se espera. O ballet obriga-o a contrariar tudo aquilo que ele é intrinsecamente. Força-o a controlar o movimento, o corpo, o gesto. Por isso, é tão complicado para ele dançar. Mas o Vasco gosta de desafios, adora ser posto à prova. É um miúdo corajoso. E apesar do secretismo, tenho imenso orgulho em ver que ele persiste numa actividade de que gosta, mesmo que seja tremendamente difícil. Mesmo que tenha recebido um boletim com notas fracas, pela primeira vez na vida. Mesmo que tenha de dançar ao lado de meninas que andam há três anos no ballet. Mesmo que tenha de ser corrigido e de repetir vezes sem conta os exercícios. Mesmo que esteja cheio de medo do espectáculo onde vai participar, no final do mês. Porque mais importante do que aprender na perfeição os passos e as posições, é aprender a superar-se. E, para isso, o Vasco tem imenso jeito.
 

 

 
 
 

terça-feira, 10 de março de 2015

Serviço público para emigrantes

(onde se brinda ao regresso da feijoada com vinho alentejano)

 

Não sei qual é o sentimento que os portugueses têm actualmente em relação ao Pingo Doce. Vim para a Bélgica no rescaldo da cena de pilhagem no 1º de Maio. Mas ontem… ontem, senhores, se apanhasse o Soares dos Santos a jeito, dava-lhe um beijo. E dos grandes. O grupo Jerónimo Martins teve a ideia de génio de fazer uma parceria com a cadeia de supermercados Delhaize, no Luxemburgo. Agora, os produtos de marca branca Pingo Doce estão presentes nas principais secções do Delhaize, para gáudio de quase 40% da população luxemburguesa de origem portuguesa. E de todos os portugueses que vivem em França e na Bélgica, perto da fronteira.

O mais interessante é que os preços também são “portugueses”, por assim dizer. Não percebo nada de economia. Não faço ideia como é que se consegue vender manteiga dos Açores mais barata do que a manteiga produzida mesmo ali ao lado, na Bélgica. Mas, para nós, é absolutamente fantástico. Nem temos de andar feitos parvos à procura dos produtos portugueses, porque estão sinalizados com um galo de Barcelos todo catita.

O Vasco já tem as bolachas Maria e as gelatinas de que tanto gosta. O Diogo já se pode voltar a encher de chamuças. E arrematar com meia-dúzia de pasteis de nata quentinhos. O meu amor já não tem de esperar pelas férias para beber o tinto alentejano que adora. E eu… eu já posso voltar a fazer feijoada sempre que me apetecer, porque tenho onde comprar farinheira. Pode parecer ridículo, mas somos pessoas muito mais felizes.
 

[ Resta-me agradecer à Véro e ao meu pai, que nos foram mandando mantimentos de primeira necessidade que nos permitiram sobreviver de barriga cheia e reconfortada até agora. ]

segunda-feira, 9 de março de 2015

Dos programas preferidos

(porque finalmente já cheira a Primavera)

 

Não me perguntem porquê, mas não há lugarejo nesta terra que não tenha um “parc animalier”. Ou seja, um parque de animais. Esta verdade universal belga tem o seu apogeu na região das Ardenas, onde moramos. O conceito não tem segredo nenhum, é espectacular de tão simples. Trata-se de um parque florestal que se estende por vários quilómetros, com diferentes animais num cercado bastante grande. Contrariamente aos jardins zoológicos, nestes parques os animais não estão fechados em “jaulas”. É quase como se os víssemos no seu habitat natural, mas mais restrito. Evidentemente, são quase sempre animais autóctones. E, na sua maioria, bastante amistosos. Normalmente, à entrada podemos comprar comida para lhes darmos, o que torna a experiência muito mais engraçada. Fora isso, não se volta a ver vivalma durante todo o trajecto. Excepto os outros visitantes, claro. Mas é quase como se estivéssemos a passear na floresta e nos deparássemos com diferentes animais.

Não será difícil deduzir que este é um dos nossos programas de fim-de-semana favoritos. Não sei por que razão nunca mostrei aqui fotografias destes passeios. O último parque que visitámos, em Setembro, era um bocadinho fora do vulgar. Ficava em Han e estendia-se por uma zona literalmente a perder de vista. Os animais estavam em liberdade e a visita podia ser feita num safari ou, para os mais aventureiros, seguindo um mapa com diferentes percursos pedestres que duravam várias horas. Nós começámos por seguir no comboio do safari, mas depressa nos fartámos daquilo. Era só crianças a berrar e gente histérica a tirar fotografias. Numa das paragens, decidimos eclipsar-nos discretamente. O problema foi que demos por nós num caminho que não estava incluído nos percursos pedestres apresentados e andámos por ali um bocadinho perdidos. Entretanto, deram pela nossa falta no grupo do safari e vieram à nossa procura. Toda uma aventura, portanto.

Depois de um Inverno rigoroso, estávamos desejosos de retomar estes nossos passeios pelos parques de animais. Este fim-de-semana já cheirava a Primavera, embora ainda estivesse fresco (para mim, que os miúdos nunca têm frio). Decidimos aproveitar o sol e fomos conhecer o "Parc à gibier" de La Roche-en-Ardenne, bem pertinho de nós. Fica a reportagem fotográfica, pela lente do meu amor.
 








 

 



 




 








 
[ Este meu filho crescido se calhar é um bocado mimalho...
e o pequeno demasiado selvagem! ]

sexta-feira, 6 de março de 2015

O meu leitor crescido

(e o poder redentor da literatura)


 
O Vasco passou os seus primeiros meses de vida a chorar. Interruptamente. E a mamar de duas em duas horas. Noite e dia. Eu andava em modo de sobrevivência pura, sem capacidade para fazer muito mais. O Diogo decidiu lidar com aquele pesadelo refugiando-se no quarto a ler. Sempre foi um leitor insaciável, com apenas cinco anos tornou-se um leitor independente. Um dia, estava eu especialmente exausta e o Vasco especialmente chorão, zangou-se comigo. Declarou que ia aprender a ler sozinho, já que eu não tinha tempo para lhe ler uma história. E aprendeu mesmo. Ninguém percebeu muito bem como, mas o Diogo aprendeu a ler sozinho. Nunca mais me pediu para lhe ler uma história.

A escola primária foi um período especialmente difícil para o Diogo, que mais uma vez se refugiou na leitura. Enquanto esperava que os colegas terminassem os exercícios. As cópias e as operações de Matemática. Os desenhos. Os jogos de futebol onde não era bem-vindo. As brincadeiras no recreio onde não podia participar. As horas de almoço que se eternizavam. Levava diariamente um ou dois livros novos para a escola. Durante todo o quarto ano, andou sempre com a Mensagem do Pessoa na mochila. Adorava poesia. De teatro, gostava mais de ver que de ler.

Rapidamente deixou para trás os livros infantis. As bandas desenhadas e os livros de aventuras. Nunca tocou naquele nicho de mercado recente que são os livros para adolescentes. Acho que o repugnava. Passou directamente para a ficção científica. O fantástico, o policial, o romance histórico. Ainda hoje mantém estas preferências. Pouco depois, começou também a ler livros técnicos sobre os mais variados assuntos, em especial, psicologia.

Quando viemos para a Bélgica, por falta de espaço, trouxe apenas três livros novos em português para o Diogo ler. Três romances históricos com muitas páginas, que ele leu de uma assentada. Mais páginas que qualidade, diga-se em abono da verdade. Mas eu esperava que fossem suficientemente extensos para lhe permitirem aprender algum francês entretanto. Quando acabou estes três livros, releu-os. E, depois, com mais ou menos dificuldade, atacou entusiasticamente os seus géneros literários de eleição em francês.

Nessa altura, eu ainda me debatia com a dificuldade em encontrar livros sem grandes descrições de sexo, que me pareciam incompatíveis com os seus 11 anos. Um ano depois capitulei, quando o Diogo me pediu pela enésima vez para ler a Guerra dos Tronos. Pedi-lhe apenas que saltasse as páginas mais escabrosas. Ele disse que sim, mas eu não acreditei. O meu amor, com o seu pragmatismo habitual, disse que pelo menos o Diogo ia aprender os “termos técnicos” todos em francês, sem me fazer perguntas embaraçosas. Fiquei convencida.

O primeiro ano que o Diogo passou na Bélgica foi suficientemente exigente para o obrigar a trabalhar durante as aulas. Já não havia margem para grandes leituras. Mas havia tempo para fazer amigos e brincar no recreio, como qualquer criança. Pela primeira vez na vida, o Diogo substituiu as personagens por pessoas reais, com as quais – imagine-se! – até se conseguia entender. A primeira vez que foi dormir a casa de um amigo levou a almofada, não a leitura obrigatória da noite. Eu chorei. No final desse primeiro ano, o Diogo voltou a levar livros para ler nos recreios. A professora descansou-me. Ele já sabia fazer amigos, agora precisava urgentemente de mais vocabulário. Em Junho, o Diogo fez 12 anos e os exames nacionais de acesso ao ensino secundário na Bélgica. Foi o melhor aluno de todo o concelho de Manhay, com uma média absolutamente extraordinária. Em Malempré, o meu orgulho foi partilhado por todos. Tenho muita pena, pelo meu filho Diogo, que o outro lado tenha denegrido tanto este quadro de vida, o sistema escolar belga e os amigos “campónios” e "infantis". Pela minha parte, estarei eternamente agradecida à miudagem e às professoras da escola de Malempré. Guardo um carinho muito especial por todos os que permitiram ao Diogo sarar velhas feridas.

Quando entrou para o Secundário, o Diogo era um miúdo completamente diferente da criança que tinha chegado à Bélgica um ano antes. Extrovertido, positivo, sociável, seguro. Tinha autoconfiança suficiente para se apresentar tal como é… um adolescente um bocadinho diferente, inteligente sem precisar de ser palhaço. Um intelectualóide assumido, bem resolvido. Continua a levar livros para ler na escola. Continua a recusar as listas de livros de leitura obrigatória, em Francês e em Inglês. A propor alternativas que se adaptam mais ao seu gosto literário. Felizmente, neste país, a diferença não é apenas aceite, é encorajada. Cada miúdo pode seguir o seu próprio ritmo. O Diogo é obrigado a ler alguns livros que vão ser trabalhados mais exaustivamente nas aulas, mas os professores também lhe sugerem outros, que acham que se adequam melhor aos seus gostos e capacidades. Aceitam algumas das suas sugestões. O resultado é um miúdo que continua apaixonado pela literatura, que pode ler o que gosta. Que, por vezes, descobre outros livros que também gosta, porque assim é obrigado. Ou, então, dos quais não gosta nada. Mas, nesse caso, aprende a desenvolver o seu sentido crítico. O resultado é um miúdo que há dois anos é incentivado pelos professores a ir mais longe do que a leitura e a passar para o papel o que lhe vai na alma. Tenho lido poemas e contos muito, muito bons, que saem daquela sua cabeça de 13 anos meia tresloucada.

Há pouco tempo, sucedeu algo que eu senti como especialmente ternurento. Sei que ele também. Na disciplina de Francês teve de reler o Principezinho, que tínhamos lido os dois juntos há tantos, tantos, anos atrás. E foi engraçado ver que o meu filho crescido já entrou na fase em que relê livros infantis com olhos de gente grande. Com outra distância. Que compreende coisas que o Diogo pequenino não tinha capacidade para perceber. Certamente, um dia voltará a lê-lo com outro olhar mais maduro. E isto – a compreensão de que cada leitura é sempre uma nova viagem – é o graal da literatura.