(e
o poder redentor da literatura)
O
Vasco passou os seus primeiros meses de vida a chorar. Interruptamente. E a
mamar de duas em duas horas. Noite e dia. Eu andava em modo de sobrevivência
pura, sem capacidade para fazer muito mais. O Diogo decidiu lidar com aquele
pesadelo refugiando-se no quarto a ler. Sempre foi um leitor insaciável, com
apenas cinco anos tornou-se um leitor independente. Um dia, estava eu especialmente
exausta e o Vasco especialmente chorão, zangou-se comigo. Declarou que ia
aprender a ler sozinho, já que eu não tinha tempo para lhe ler uma história. E
aprendeu mesmo. Ninguém percebeu muito bem como, mas o Diogo aprendeu a ler
sozinho. Nunca mais me pediu para lhe ler uma história.
A
escola primária foi um período especialmente difícil para o Diogo, que mais uma
vez se refugiou na leitura. Enquanto esperava que os colegas terminassem os
exercícios. As cópias e as operações de Matemática. Os desenhos. Os jogos de
futebol onde não era bem-vindo. As brincadeiras no recreio onde não podia
participar. As horas de almoço que se eternizavam. Levava diariamente um ou
dois livros novos para a escola. Durante todo o quarto ano, andou sempre com a Mensagem do Pessoa na mochila. Adorava
poesia. De teatro, gostava mais de ver que de ler.
Rapidamente
deixou para trás os livros infantis. As bandas desenhadas e os livros de
aventuras. Nunca tocou naquele nicho de mercado recente que são os livros para
adolescentes. Acho que o repugnava. Passou directamente para a ficção científica.
O fantástico, o policial, o romance histórico. Ainda hoje mantém estas
preferências. Pouco depois, começou também a ler livros técnicos sobre os mais
variados assuntos, em especial, psicologia.
Quando
viemos para a Bélgica, por falta de espaço, trouxe apenas três livros novos em
português para o Diogo ler. Três romances históricos com muitas páginas, que
ele leu de uma assentada. Mais páginas que qualidade, diga-se em abono da
verdade. Mas eu esperava que fossem suficientemente extensos para lhe permitirem
aprender algum francês entretanto. Quando acabou estes três livros, releu-os.
E, depois, com mais ou menos dificuldade, atacou entusiasticamente os seus
géneros literários de eleição em francês.
Nessa
altura, eu ainda me debatia com a dificuldade em encontrar livros sem grandes
descrições de sexo, que me pareciam incompatíveis com os seus 11 anos. Um ano
depois capitulei, quando o Diogo me pediu pela enésima vez para ler a Guerra dos Tronos. Pedi-lhe apenas que
saltasse as páginas mais escabrosas. Ele disse que sim, mas eu não acreditei. O
meu amor, com o seu pragmatismo habitual, disse que pelo menos o Diogo ia
aprender os “termos técnicos” todos em francês, sem me fazer perguntas
embaraçosas. Fiquei convencida.
O
primeiro ano que o Diogo passou na Bélgica foi suficientemente exigente para o
obrigar a trabalhar durante as aulas. Já não havia margem para grandes
leituras. Mas havia tempo para fazer amigos e brincar no recreio, como qualquer
criança. Pela primeira vez na vida, o Diogo substituiu as personagens por
pessoas reais, com as quais – imagine-se! – até se conseguia entender. A
primeira vez que foi dormir a casa de um amigo levou a almofada, não a leitura
obrigatória da noite. Eu chorei. No final desse primeiro ano, o Diogo voltou a
levar livros para ler nos recreios. A professora descansou-me. Ele já sabia
fazer amigos, agora precisava urgentemente de mais vocabulário. Em Junho, o
Diogo fez 12 anos e os exames nacionais de acesso ao ensino secundário na
Bélgica. Foi o melhor aluno de todo o concelho de Manhay, com uma média absolutamente extraordinária.
Em Malempré, o meu orgulho foi partilhado por todos. Tenho muita pena, pelo
meu filho Diogo, que o outro lado tenha
denegrido tanto este quadro de vida, o sistema escolar belga e os amigos “campónios”
e "infantis". Pela minha parte, estarei eternamente agradecida à miudagem e às
professoras da escola de Malempré. Guardo um carinho muito especial por todos
os que permitiram ao Diogo sarar velhas feridas.
Quando
entrou para o Secundário, o Diogo era um miúdo completamente diferente da
criança que tinha chegado à Bélgica um ano antes. Extrovertido, positivo, sociável,
seguro. Tinha autoconfiança suficiente para se apresentar tal como é… um adolescente
um bocadinho diferente, inteligente sem precisar de ser palhaço. Um intelectualóide
assumido, bem resolvido. Continua a levar livros para ler na escola. Continua a
recusar as listas de livros de leitura obrigatória, em Francês e em Inglês. A
propor alternativas que se adaptam mais ao seu gosto literário. Felizmente, neste
país, a diferença não é apenas aceite, é encorajada. Cada miúdo pode seguir o
seu próprio ritmo. O Diogo é obrigado a ler alguns livros que vão ser
trabalhados mais exaustivamente nas aulas, mas os professores também lhe sugerem
outros, que acham que se adequam melhor aos seus gostos e capacidades. Aceitam
algumas das suas sugestões. O resultado é um miúdo que continua apaixonado pela
literatura, que pode ler o que gosta. Que, por vezes, descobre outros livros
que também gosta, porque assim é obrigado. Ou, então, dos quais não gosta nada.
Mas, nesse caso, aprende a desenvolver o seu sentido crítico. O
resultado é um miúdo que há dois anos é incentivado pelos professores a ir mais
longe do que a leitura e a passar para o papel o que lhe vai na alma. Tenho
lido poemas e contos muito, muito bons, que saem daquela sua cabeça de 13 anos meia tresloucada.
Há
pouco tempo, sucedeu algo que eu senti como especialmente ternurento. Sei que
ele também. Na disciplina de Francês teve de reler o Principezinho, que tínhamos lido os dois juntos há tantos, tantos,
anos atrás. E foi engraçado ver que o meu filho crescido já entrou na fase em
que relê livros infantis com olhos de gente grande. Com outra distância. Que compreende
coisas que o Diogo pequenino não tinha capacidade para perceber. Certamente, um
dia voltará a lê-lo com outro olhar mais maduro. E isto – a compreensão de que
cada leitura é sempre uma nova viagem – é o graal da literatura.
Sem dúvida!
ResponderEliminarApesar de também ser adepta do avacalhanço e de ler coisas só porque apetece, sem estar com grandes apreciações críticas ;)
Claro que sim, Gralha! Ler deve ser sempre um prazer, a tal "viagem"... Eu gosto tanto de sushi como de uma boa bifana! :)
ResponderEliminarPS: Não estou a falar daquele sushi merdoso de centro comercial, hein?! Mas estou a falar da bifana a escorrer molhenga das roulottes!
Que texto maravilhoso!
ResponderEliminarA leitura oferece-nos um mundo (ainda mais) cheio de possibilidades e viagens, mesmo que sejam imaginárias!
Fico curiosa para saber o que vai fazer o Diogo no futuro!
:)
Obrigada, Ana! :)
ResponderEliminarPor enquanto, o Diogo diz que quer ser juiz de instrução criminal... :D
Uau... aprender a ler sozinho é coisa de monta! Grande Diogo!
ResponderEliminarE ainda bem que as preferências literárias são encorajadas, aqui forçam-te a ler o que lhes dá na gana (eu e o Eugénio de Andrade nunca nos entendemos muito bem...)
O meu já sabe ler e ainda nem entrou para a escola primária... e eu tenho medo, muito medo... que ele tenha de começar tudo do zero, coisas que ele sabe e domina há uns dois anos pelo menos... que ele se desmotive porque já sabe aquilo tudo...
Pois, Naná... esse foi exactamente o problema do Diogo, quando entrou para o 1º ano. A professora achava que não havia meninos especiais e que tinham todos de fazer a mesma coisa, seguindo o ritmo da turma. Começou logo com o pé esquerdo e nunca mais se endireitou. A questão é que os problemas que os miúdos enfrentam na sala de aula reflectem-se de imediato no recreio, na relação com os colegas... E cria-se muito rapidamente um ciclo vicioso do qual é difícil sair.
ResponderEliminarIsto foi a minha péssima experiência com o ensino primário em Portugal e, acredita, uma das razões que me fizeram sair desse país. Eu não estava mesmo nada a ver um miúdo como o Vasco a conseguir entrar num sistema quadrado destes...
Espero sinceramente que vocês tenham mais sorte, pois tudo depende muito da professora que apanharem. É como em tudo, há pessoas extraordinárias que conseguem encontrar soluções mais adaptadas aos miúdos que têm pela frente.