sexta-feira, 28 de abril de 2017

Da seitas

(onde o pensamento nos foge de imediato para os nossos)



Sabem aquela história dos pais que não vacinam os filhos? Uma pessoa pensa sempre que são os “outros”, gente algo estranha que certamente não faz parte do nosso círculo de amigos. É um daqueles problemas algo abstractos, que discutimos sempre no plano teórico. E, depois, recebemos um SMS aflito do nosso filho. Hoje há “visite médicale” lá na escola. E ele acabou de descobrir que a namorada não é vacinada. Que não toma medicamentos e só segue medicinas alternativas, já nós sabíamos. Do alto dos seus 15 anos, não sabe explicar porquê. São coisas de família. Não se questiona. E o melhor é nem sequer ouvir argumentos contrários. Filho grande está desde as 8h30 da manhã a mandar-me SMS. Alterna entre zangado, incrédulo, furioso, desamparado, consternado, preocupado. Não consegue aceitar, nem perceber. E eu não sei que lhe diga… Só penso naquela miúda de 17 anos que morreu há pouco tempo em Portugal. Gosto muito da Marie. Mas, depois, penso no meu. É automático.

O Diogo tinha um grave problema de imunidade, quando era criança. Passou a infância toda a repetir as chamadas doenças infantis que só se apanham uma vez. Lembro-me bem da varicela. Foram cinco vezes. E da escarlatina. Foram quatro. Mais o exantema súbito. A quinta doença… Perdi-lhes a conta. Foram tantas e tantas vezes nas urgências de um hospital a discutir com os médicos. Já conhecia de cor a sintomatologia, o diagnóstico e o tratamento. Sim, já tinha tido aquilo antes. Sim, era vacinado. Não, não era impossível. Pois claro que podia dar o número da pediatra, ligue lá para confirmar… No final da infância passou, parecia milagre. E eu fiquei sempre chateada com o facto de, no meio de tanta doença diferente repetida, o miúdo nunca ter apanhado papeira. Porque já se sabe que é extremamente perigoso um adolescente apanhar papeira. Mas, pronto, nesta idade o risco é bastante menor. Já todos receberam vacinas e reforços, certo? Excepto a Marie. Que até tem uma irmã mais nova na Primária e está mais exposta às doenças infantis, visto que os recreios das crianças dos 2 anos aos 12 são partilhados. Só tenho vontade de bater naqueles pais, a sério. Ainda bem que fui beber um café com eles há pouco tempo, agora duvido que me voltem a apanhar. Gente inconsciente, pá!

quarta-feira, 26 de abril de 2017

terça-feira, 25 de abril de 2017

A liberdade de hoje

(porque este 25 de Abril foi em pleno)



Liberdade para sermos quem somos (sem esquecer o nosso outro país)
Liberdade de pensamento, porque sonhar é permitido
Liberdade de escolha para mudar de vida (porque o país onde vivemos assim o permite)
Liberdade para amar este homem um bocadinho mais todos os dias
Liberdade de mudança, sem dogmas e muito poucas certezas
Liberdade de ter uma casa que permita ver os filhos a brincar no quintal
Liberdade de movimentos (o mundo é tão grande…)
Liberdade para ser a mãe que sonhei (ir buscá-los às 16h e irmos correr juntos)
Liberdade financeira (para ver a felicidade do meu filho perante o seu novo violino)
Liberdade de horários que me permite parar e respirar (sem pausas, ninguém é livre)
Liberdade para partir à aventura, assim, de repente (só porque nos apetece)
Liberdade para pôr a nossa música a tocar (e explicar tudo, mais uma vez)

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Nem sempre é bom

(onde o esforço compensa, mas cansa)



Nem sempre é bom, isto de ser mãe. Estamos a entrar numa fase em que sinto que os meus actos terão consequências importantes. Provavelmente, as mais importantes dos nossos quase dezasseis anos. E isso pesa. Deixá-los errar, pesa. Obrigá-los a seguir determinado caminho também pesa. Porque será que ninguém diz que o fardo é tão pesado?

Obriguei o Diogo a ir ao seu primeiro ensaio com a banda dirigida pelo professor de trompete. Até pode chumbar no exame do final de ano, é irrelevante. Ninguém estuda um instrumento durante sete anos para obter um diploma. Um pedaço de papel que ateste as suas competências. Ele não quer entrar para a escola superior de música, acredito que aquele certificado de pouco lhe irá servir na vida. Mas a atitude está errada. Baixar os braços sem lutar, está errado. Não se deve desistir à primeira contrariedade. O medo não pode ser paralisante. Mas explicar isto a um adolescente é muito complexo. Porque não é palpável, nem concreto. O mais difícil é impor decisões abstractas. É complicado justificar uma obrigação dizendo que o meio interessa mais do que o fim. Explicando que a força de vontade para se superar é infinitamente mais importante do que o resultado final escrito numa folha de papel.

Por isso, obriguei-o a ir. Desde o final de Fevereiro que andamos nesta luta. É esgotante. Tive de ser eu a andar atrás do professor para combinar as coisas. Tive de ser eu a insistir. Tive de ser eu a fixar datas, horas e locais em que a banda iria iniciar um novo repertório e o Diogo poderia entrar. Foi na sexta-feira passada. E após meses de discussão, ainda passámos o dia a trocar mensagens. Porque o Diogo não queria mesmo ir. Acabei a dizer que quem mandava era eu. Que ele não tinha escolha. Mas custou-me. Vai contra tudo o que eu acredito, no que à pedagogia diz respeito. Mas é a minha filosofia de vida, que considero ter obrigação de lhes transmitir. Quem foge de medo são os cobardes. Quem vai em frente com medo são os corajosos. E eu quero que os meus filhos aprendam a ser corajosos. Que aprendam a ter medo, que tomem consciência do medo, que consigam verbalizá-lo. E, depois, agir em consequência.

Foi difícil arrancá-lo de casa. Arrastá-lo para dentro do carro. A técnica é sempre a mesma: enrolar até já estar tão atrasado que nem vale a pena ir. E houve gritos. E ameaças. E zangas. Por fim, lá fomos. O Diogo estava tão nervoso, que o jantar lhe caiu mal. O habitual, portanto. Comigo sucedeu o mesmo, mas não lhe disse nada. Estava tão nervosa quanto ele. Parei à porta, deixei-o sair e arranquei de imediato sem olhar para trás. O professor estava à espera dele, se não aparecesse logo me havia de telefonar. Não telefonou. Duas horas depois, fui buscá-lo. Vinha feliz como há muito não o via. Que tinha sido extraordinário. Que tinha adorado. Que no início estava nervoso, mas depois passou. Que devia ter cometido muitos erros, porque não conhecia as partições, mas que não se ralou e deixou-se ir. Que se libertou. Que para a semana estava lá caído. Sem sombra de dúvida. Que aquilo era uma maravilha.

Para rematar, o já costumeiro agradecimento: “Muito obrigado, mãe, por me teres obrigado a vir. Tinhas razão”. Tentei brincar... “Como sempre. Tens de dizer: Tinhas razão como sempre, mãe.” E o Diogo disse-o, com um grande sorriso. Noutros tempos, aquilo teria bastado para me aquecer o coração. Mas hoje sinto-me cansada. Exausta de lutar contra a vontade de um adolescente de quase dezasseis anos que já é bem maior do que eu. E contra um professor que andava há anos a repetir o convite e que já tinha desistido. Estou cansada de lutar contra a minha própria cabeça, para tentar saber onde posso deixá-lo errar e onde devo impor-me. Por isso, mesmo que ninguém o diga, não tenho vergonha de admitir que nem sempre é bom, isto de ser mãe.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

E as saudades que eu tinha disto?!

(onde nos armamos em bons para salvar a situação 

e acabamos aos pinotes)



O meu amor fez anos. E eu decidi organizar um dia em grande, só para nós. Começamos por utilizar finalmente a Wonderbox que o Diogo nos tinha oferecido aqui há uns tempos. Fomos tomar um pequeno-almoço com champanhe num salão de chá muito elegante. Filho grande ainda não deve ter percebido que a mãe dele não está à altura de tanta sofisticação. Felizmente, o Belga não se fez rogado e emborcou as duas taças de champanhe com um sorriso. Ainda nem sequer era meio-dia.

Seguimos para uma espécie de jogo de pista. Marquei um passeio a cavalo para o início da tarde. Num sítio novo, visto que a nossa vizinha de Malempré perdeu o Zorro com um vírus fulminante, ficando apenas com dois cavalos. Como há bastante tempo que não fazíamos um passeio destes pelos bosques, achei que seria uma surpresa engraçada. O problema é que desencantei um sítio na net, que não conhecia de lado nenhum. E depressa percebi que tinha entrado num daqueles programas misteriosos onde as pessoas recebem indicações para irem ter a um local desconhecido, sem saberem muito bem ao que vão. A explicação é simples. Vão mudando os cavalos de pasto consoante o tempo que faz. E nunca se sabe muito bem que tempo faz nesta terra. Quer dizer, a única garantia que temos é que estará frio. Esta terça-feira nevou, acho que ainda não vos tinha contado. Por isso, só recebi as indicações exactas da localização na noite anterior. E eram tão complicadas que fiquei seriamente desconfiada de que não conseguiríamos encontrar os ditos cavalos. Bom, também há uma justificação para tantas precauções. Os cavalos são amistosos e estão habituados às pessoas. Se os diferentes prados onde se encontram fossem conhecidos, poderiam ser facilmente roubados. Daí tanto secretismo.

Apesar de conhecermos bem a região de Aywaille, demorámos algum tempo a dar com o caminho, seguindo atentamente o papel com as intricadas explicações. Nesta altura do campeonato, o meu amor pensava que íamos fazer um percurso de trekking ou de orientação. Pouco depois de chegarmos, apareceu um velhote que nos perguntou: “Vous allez monter?” Respondi que sim, pensando que a surpresa estava estragada. Afinal, estávamos mesmo ao lado de um terreno com cavalos. E de uma zona que se via perfeitamente que servia para os selar. Mas o Belga é meio tolinho e pensou de imediato que íamos fazer escalada, dado o sentido dúbio da palavra “monter”. Menos mal, pensei. De facto, no cimo dos bosques via-se umas rochas escarpadas. Preferia morrer a subir por ali acima, mas pronto. Entretanto, chegaram os donos do clube, já com as cabeçadas na mão. Nem assim o meu amor percebeu. De onde se depreende que é muitoooo fácil surpreender este homem!

Logo para início de conversa, o dono começou a fazer-nos perguntas sobre a nossa experiência equestre. E o Belga mostrou-se humilde. Demasiado humilde, como sempre. O problema é que no site avisavam insistentemente que só faziam passeios com cavaleiros bastante experientes. O meu amor andou muito tempo num centro equestre, mas só começou a fazer passeios ao ar livre quando me conheceu. Mesmo assim, já lá vão quatro anos… e o homem continua modesto. Parece que o cavalo que lhe tinham destinado era “especial”. O meu era um pónei reguila, como sempre. Tendo em conta que era preciso descriminar a altura e o peso na ficha de inscrição, calculei que fosse esse o resultado. É sempre. Mas eu adoro os póneis. Contrariamente ao que se pensa, têm um feitio dos diabos. São teimosos e cheios de genica.

Mas, ontem, comecei a ver o caso mal parado. Os donos estavam com medo de deixar sair o Belga naquele monstro e o Belga também já estava a ficar com receio de tanto os ouvir discutir. Mas não havia mais cavalos disponíveis, naquele prado. E, bom, decidi que o melhor era enaltecer as minhas qualidades para ver se saíamos do impasse. O meu amor é um homem magro, o meu pónei aguentaria bem com ele. Só tinha de os convencer que, do alto do meu metro e meio (que agora até sabemos ser 1.48m, para sermos mais rigorosos), conseguiria montar o maior cavalo que ali estava. Eu nem sequer lhe chegava ao garrote. E vai de começar a falar dos meus anos na Sociedade Hípica Portuguesa, dos tempos tenebrosos dos saltos de obstáculos e da delícia quando finalmente comecei a fazer alta escola. Dressage, como se diz por aqui. Consegui convencê-los. Que sim, senhora, aquele cavalo vinha de uma escola e não estava habituado a movimentos demasiado bruscos. Estávamos com sorte, é assim que eu sei andar a cavalo. Costumo fazer figura de parva, quando vamos nestes passeios aventureiros, porque mantenho a posição e a discrição de movimentos que interiorizei ao longo dos anos. O resto do pessoal vai com as duas rédeas numa só mão, costas curvadas e pouco ou nada usa os pés. Às vezes, dou por mim a rir para dentro a imaginar qualquer um dos meus professores a chorar perante aquele espectáculo.

Cavalos bem alimentados, escovados, selados e lá fomos nós… O dono num pónei branco terrorista que passou o passeio todo às cangochas, o meu amor no meu/seu pónei cheio de speed, eu no mostrengo bem-educado… e o tal velhote que quase tinha estragado a surpresa. Ontem foi um daqueles dias em que tivemos uma valente lição de vida. O velhote tinha 83 anos e aparentava-os bem. Mas ainda faz 20 km diários de bicicleta. E estava ali para experimentar aquela égua, pois queria comprá-la para voltar a dar passeios a cavalo. Já estava meio desabituado… há três meses que não montava. A verdade é que o passeio demorou muito mais do que o previsto. Havia umas árvores caídas a cortar o caminho e gravilha fininha onde uns dias antes era só terra batida. E também nos perdemos, quando estávamos a galope. Seja como for, o velhote aguentou-se direitinho. Já nós… às tantas, estávamos um bocado mortos. Foram quase quatro horas de muitas subidas e descidas complicadas. E paisagens lindas. Não faço ideia como o dono se orientava, as árvores pareciam-me todas iguais. Mas, quando é assim, quem nos guia são os cavalos que sabem sempre escolher o melhor caminho.

Eu ia a fechar o pelotão. O mostrengo assim o decidiu. De vez em quando ia lado a lado com o meu amor, para falarmos um bocadinho. Mas o mostrengo gostava de manter as suas distâncias. Estranhamente, portou-se muito bem. No início, o dono lançava-me uns olhares preocupados. Mas, quando me viu já sem estribos a esticar as pernas, riu-se muito e disse que quando há técnica, não é preciso mais nada. Nem tamanho, nem força. O bicho era pacífico, mas com um trote largo e um galope veloz como o vento. Fartei-me de chorar com a ventania! Cruzamos tractores, cães, muitos cavalos e uma manada de vacas demasiado amistosas. Só se assustou quando, numa descida íngreme, nos saltou um ciclista pela frente. Acho que nos assustámos os quatro, bicicleta incluída. Azar dos azares, já me doía tudo e mais alguns músculos que nem sabia existirem. E estava sem estribos a esticar as pernas. A besta deu um salto atrás e vai de desatar aos pinotes. Mas acalmou depressa, passado o susto. E desceu o monte com um salto. O meu amor agradeceu-me por todos os santinhos ter-me armado em boa para salvar o passeio, porque dizia que teria ido de cabeça ao chão pela certa. O velhote afiançou que não queria o mostrengo, nem que fosse oferecido. E o dono disse que voltasse quando quisesse.

Quando já estávamos a chegar, os cavalos começaram a ficar mais nervosos e fizemos o resto do caminho a pé. A puxar por aquele brutamontes, que estava decidido a comer a erva toda que estava na berma do caminho. Daí o ar zangado, da última fotografia… J

O final do dia foi muito… como dizer? Doloroso. É que nem o banho quente nos valeu, caraças. Os miúdos ofereceram uma edição vintage da velhinha consola Atari ao meu amor. Foi engraçado vê-los à rasca com os joysticks. Já o meu amor estava perfeitamente à vontade. Uma pessoa esquece-se que aqueles jogos antigos tinham piada, mas a musiquinha enervante dá cabo do sistema nervoso. Seja como for, foi complicado arrancar os quatro dali. O Vasco tinha duas horas de solfejo em Stavelot e decidimos aproveitar para fazer um jantar romântico enquanto esperávamos. O Diogo quis ficar em casa, com a desculpa de que tinha de estudar para um teste. Mas acho que foi só um querido e deixou-nos aproveitar o resto do dia a dois. Tinha programado um filme para o serão, mas achámos melhor rendermos-nos às evidências de que os rabos doridos precisavam de descanso…


 








quarta-feira, 19 de abril de 2017

Resumo

(onde uns vão futilmente às compras e outros apreendem conteúdos novos por osmose… ou coisa que o valha, ainda não percebi bem)



Ontem, o meu amor foi buscar um livro que eu tinha encomendado. Mentira, ele é que o encomendou numa livraria universitária. Eu cá sou mais despachada, fui directamente ao site. Antes de fazer o pagamento, reclamei em voz alta que parecia incrível um livro demorar uma semana a vir de França. A Fnac Portugal despacha livros à velocidade da luz. No máximo, 72 horas. Mas os contos da Ferrante chegaram cá um dia depois de ter feito a encomenda. Ainda hoje o carteiro se lembra da minha cara de parva a olhar para ele. Daí o meu espanto pela demora daquela editora francesa. O meu amor achou que seria muito mais rápido encomendá-lo numa livraria no centro de Liège. Argumentou que funcionava que era uma maravilha. Céleres e prestáveis. E sempre se poupava nos portes. Seja. Precisava daquele livro o mais depressa possível.

Quinze dias depois, ligaram da livraria a dizer que o livro tinha finalmente chegado. A culpa era da editora, claro. O meu amor prontificou-se logo a ir buscá-lo. Não que eu andasse há mais de uma semana a falar constantemente do assunto. Nem que tivesse amaldiçoado a sua ideia peregrina umas mil vezes. Sou pessoa de bom feito e carácter agradável, como se sabe. A razão era outra. Bastante menos altruísta, por sinal.

Decidi aproveitar a ida à cidade, para ir às compras. E o meu amor achou por bem escapar airosamente ao suplício, oferecendo-se para ir buscar o livro. Pela primeira vez na minha vida, precisei de ir comprar calças de ganga ao filho pequeno, porque as que tem deixaram de lhe servir. Não estão rasgadas. Não têm joelheiras. Não estão verdes de tanto esfregar na relva. Simplesmente, deixaram de servir. Uma vitória completamente inédita. Filho grande também estava a precisar de calças. Depois de, incrédulo, se ter apercebido que também não cabia nas que tem. Depois de muito se ter espremido. E comprimido. Mas nem quase asfixiado aquilo fechava. O problema não é o rabo gordo, herança materna que o irmão ostenta orgulhoso (porque diz que tem um rabo musculado graças ao ballet). O problema são os ossos largos (eu não disse que também são herança materna, dado que ele não parece apreciá-los por aí além). Seja como for, os filhos precisavam de calças. E a filha do vizinho de meias anti-derrapantes (sim, sim… ofereci-me para o que fosse preciso). Eis-me então às compras, em pleno centro de Liège, enquanto o meu amor se pôs ao fresco.

O problema, quando uma pessoa desce à cidade, é que a oferta é mais que muita. E já que é para a desgraça, que seja a valer. Ando há tanto tempo à procura de um distribuidor de sumos para fazer água com frutos. E também havia a questão da manete da Xbox que o Vasco partiu com os nervos e que o irmão o obrigou a pagar e que eu fui incumbida de comprar no Media Markt. E as novidades na Fnac. E andar à procura de uma máquina de pão no Cash Converters. E ainda me faltava uma prenda de anos para o meu Belga preferido. Coisas várias, portanto. O meu amor descobriu por artes mágicas a Dadá, no meio das muitas centenas de carros que estavam naquele parque de estacionamento. E mandou mensagem a dizer que não me apressasse, que ele tinha assentado arraiais no capot (eu tinha ficado com a chaves, na esperança de o obrigar a dar uma ajudinha a carregar os sacos). Apesar de tudo, fui rápida. Juro que me despachei em menos de duas horas. Tendo em conta que ele ainda teve de ir à livraria e voltar, deve ter ficado à minha espera no estacionamento cerca de uma hora e pouco.

Ora, afinal, o que tem esta história de extraordinário? Pois que o meu amor veio o caminho todo até casa a debitar o meu livro. 45 minutos de um excelente resumo de 250 páginas. Muito melhor do que os resumos da Europa-América. Ou das sebentas amarelas. Ou de uma fantástica colecção de resumos de uma editora francesa que me permitiu apenas ler o primeiro e o último volume de À la Recherche du Temps Perdu, quando já estava na faculdade (e, se bem me lembro, até tive 14 valores nessa cadeira). Não faço ideia como é que o homem (o meu, não o Proust) conseguiu tal proeza. Mas fiz bem em esperar tanto tempo. E em fazê-lo sentir-se muito ligeiramente culpado por isso. Estou desconfiada que já nem sequer preciso de ler alguns capítulos. Principalmente, tendo em conta que não percebo nada do assunto (ele também não percebia…). Às tantas, deixei de o ouvir e comecei a ver o meu amor pequenino, sobredotado e ostracizado a saltar de ano sem qualquer esforço. E amei-o ainda mais um bocadinho. Ninguém se torna sociopata por acaso. E ontem percebi a razão. É que no meio de um ímpeto de amor, tive vontade de lhe atirar com o livro à cabeça ao ver que não só tinha conseguido ler aquilo tudo a correr, como conseguia reproduzir fielmente o texto, capítulo por capítulo. Parecendo que não, uma pessoa fica a sentir-se um bocadinho estúpida com tanta inteligência.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Na última semana, quando tudo mudou

(porque se vivem tempos insólitos por aqui)



- Corri todos os dias (e ontem consegui finalmente arrastar o meu amor)
- Decidi voltar à escola (mas descobri que continuo a gostar de demasiadas coisas diferentes)
- Não comi açúcar (excepto um nadinha no café)
- Fui até Eindhoven visitar o bebé mais loirinho que conheço (de permeio vi a avódrasta e o mano… e trouxe farinheiras)
- Encerrei uma página da minha existência (sem verter uma lágrima)
- Não telefonei uma única vez aos rapazes (mas recebi um SMS que dizia: “Podemos falar hoje, mãe querida?”)
- Adoptei um novo regime alimentar, devagarinho e sem fundamentalismos (excepção feita para as farinheiras)
- Fui ao cinema várias vezes (um dos filmes, fez-nos mudar radicalmente de ideias)
- Soltei os passarinhos todos (primeiro, aprenderam a voar na estufa)
- Conversei com muitos amigos e família (e às vezes faltavam-me as palavras em português)
- Decidi arriscar, perdi o medo, dei o salto (com borboletas na barriga, claro)
- Andei a ver terrenos (e a sonhar com cavalos)
- Percebi que nos podemos apaixonar vezes sem conta pelo mesmo homem (porque nos reinventamos ambos)
- Vivi feliz (cheia de projectos)
- Mudei de vida (sem olhar para trás)

domingo, 9 de abril de 2017

O novo vizinho

(onde os preconceitos são postos à prova)


Acordo uma manhã com a voz do senhorio da casa ao lado. Ainda não deviam ser oito horas. De um Sábado. Espreito pela janela e vejo-o a mostrar o jardim a um potencial interessado. Um homem, meia-idade já passada, com um bebé ao colo. Estranho a hora matutina. E o facto de não ver mais ninguém.

À tarde, batem à porta. Vou abrir e deparo-me com o “visitante”, acompanhado por um jovem mal-amanhado. Nem bom-dia, nem boa-tarde. Muito menos uma apresentação formal. De chofre, perguntam-me se o carro que está estacionado à porta é meu. Respondo que não e olham-me com ar desconfiado. Que precisam de espaço para estacionar o camião das mudanças. Explico que o meu carro está na garagem e indico a casa do dono do carro em questão. Sem demoras, viram-me costas e vão bater à porta do vizinho. Sem um obrigado, nem adeusinho.

A mudança é feita. E, dentro de casa ao lado, muita gente. Não dá para perceber quantos são. Uma coisa é certa, há um bebé. Ouvimo-lo chorar. Nós começamos a ver a vida mal parada. Até mesmo porque tínhamos um acordo com a antiga vizinha que funcionava na perfeição. Uma pequena parte do quintal pertence à casa ao lado e não está murado. Como aquela terra não interessa a ninguém, nós tratamos dela. Cortamos a relva, aparamos a sebe, impedimos que o matagal de silvas se propague. Em contrapartida, o intrépido D. Fuas Roupinho é rei e senhor da totalidade do espaço. E nós apanhamos quilos de amoras, no Verão. A vizinha só usava o seu espaço para estender a roupa e apanhar banhos de sol, sem ter o incómodo de tratar do terreno. E assim se passaram dois anos, de boa vizinhança.

No Domingo de manhã, debatemos o assunto à mesa do pequeno-almoço. Decidimos que temos de ir falar com os novos vizinhos para discutir a questão da divisão do terreno. O tempo urge. Se por acaso houver um cão, vai haver guerra. D. Fuas não admitirá a co-propriedade. Se houver um gato, ainda pior. É morte certa. Nisto, coisa pequena começa a chorar. Grossas lágrimas caem-lhe pela cara abaixo. Depois de muito puxarmos por ele, lá começa a contar a sua história. No dia anterior, tinha ido para o quintal brincar com a carabina. Como sempre, o campo inimigo mantinha o fogo cerrado. Um problema. E ele disparava em todas as direcções para se proteger. Inclusivamente contra a janela dos novos vizinhos. Até que o tal senhor de meia-idade abriu a janela e se pôs a gritar com ele. Que não o queria voltar a ver com brincar com armas no quintal ou ia chamar a Polícia. E, para rematar, mimou uma pistola com a mão e deu-lhe um tiro. Coisa pequena ficou aterrorizada.

Lá me apresso a ir falar com o homem. Um bocado irritada, confesso. Nem deixei o Belga levantar-se. Metem-se com os meus filhos e viro leoa. Bato à porta do lado e apresento-me. O vizinho convida-me a entrar. De imediato, conta-me a mesma história que o Vasco tinha acabado de nos contar. Palavra por palavra. Explica que ficou assustado, quando viu uma criança sozinha a brincar com uma arma no quintal. E quando ele apontou a espingarda à janela, entrou em pânico. Digo que compreendo, que é certo que se trata de uma carabina verdadeira que impõe respeito. Mas que, na realidade, é uma velharia do início do século XX, que o Vasco comprou num antiquário por tuta e meia. Que obviamente não funciona. Os únicos chumbos que dispara são fruto da imaginação infantil mirabolante. O homem ri-se. E eu aproveito para lhe dizer que, na próxima vez, antes de ameaçar o meu filho, talvez seja melhor começar por vir falar connosco. Que há assuntos que se resolvem entre adultos, sem intimidar as crianças. O homem dá-me prontamente razão e desculpa-se. Tinha a filha ao colo, assustou-se. Que anda uma pilha de nervos, ultimamente. E, nisto, começa a contar-me a sua história.

É inválido e vivia na República dos Camarões, com a mulher. Entretanto, tiveram uma filha. E tudo mudou. A sua visão das coisas mudou. A casa onde viviam sem água quente, nem electricidade a todas as horas, começou a parecer-lhe uma barraca. Aquele país sem eira, nem beira, começou a parecer-lhe perigoso. Os cuidados médicos inexistentes, insuportáveis. E a família da mulher, unida como um clã de mafiosos, demasiado intrometida. Decidiu voltar para a Bélgica. A pensão por invalidez era reduzida, mas haveria outras ajudas. A mulher não conseguiu obter o visto e ele teve de vir sozinho com a filha de meses. Registou a menina, arranjou casa. Carro, não tinha. E o visto foi novamente negado. Por três vezes. Ele já está a desesperar. A mulher pede-lhe que não volte, que a menina pode ter uma vida incomparavelmente melhor na Bélgica. Que é muito bonita, a menina. Um doce de criança. De vez em quando chora, claro. Principalmente, porque teve de apanhar as vacinas todas quase de enfiada. E eles chegaram no pino do Inverno. Ele, às vezes, passa-se. Grita. Está cansado. Já não é novo. É doente. E está completamente sozinho. Só tem os padrinhos da menina, que tinham ajudado na mudança precipitada. Porque as coisas se passaram muito mal, no anterior apartamento. Os vizinhos de cima faziam muito barulho, acordavam o bebé. Gente jovem, de pouco respeito. E ele reclamou. Como retaliação, fizeram queixa dele à Polícia por maus tratos. “A senhora sabe o que dói ser acusado de mal tratar um filho? Ter de ir à Polícia prestar declarações?” Sei, por acaso sei muito bem. Pensei, mas não disse. Só disse que sabia o que era estar sozinha num país com duas crianças. Que se precisasse de qualquer coisa, podia contar connosco. Bastava gritar à janela. Se quisesse que eu ficasse com a menina para ir arejar as ideias, bastava pedir. Agradeceu, mas recusou categoricamente. A menina só ficava com ele. O clã da mulher não estava contente com a situação. Nunca tal se tinha visto, um homem já velho a cuidar sozinho de um bebé. E ele tinha medo, porque havia muitos emigrantes dos Camarões nesta região. Ele via-os pela janela. Mas ele cuidava bem da menina. Era o seu tesouro. Mas, às vezes, gritava. Era o cansaço a falar.

Passaram-se três semanas. Já o tenho ouvido ralhar aos gritos. E o bebé chora um bocadinho depois. De resto, não os ouço. Nem os vejo no quintal. É pena, a menina devia aproveitar o sol radioso deste início de Primavera. De vez em quando, vejo-o a passear com carrinho do bebé na rua. Depois da carrinha da Cruz Vermelha passar, no final do dia, para recolher os refugiados. No outro dia, a vizinha do outro lado quis saber como se passavam as coisas. Já sabia a história toda do homem, inclusivamente a queixa por maus tratos. Disse que a vizinhança estava de pré-aviso. Que não era normal um homem já velho cuidar sozinho de um bebé. Se calhar, a menina não era bem tratada. Admiti que já o tinha ouvido gritar com o bebé. Mas que ela quase não chorava. Parecia feliz e sorridente. De facto, é lindíssima. E nós não sabemos tudo o que aquele homem está a sofrer. Afinal, o preconceito num país nórdico não parece assim tão distante do preconceito africano. Talvez seja por isso que aquele homem vive quase recluso com a filha. Sinto nojo. Nojo desta Europa que não deixa que um casal se reúna, só porque a mulher teve o azar de nascer no país errado. Nojo deste mundo que prefere criticar a ajudar um pai sozinho. Nojo do preconceito, da crítica fácil, do apontar de dedo.


Aquele homem precisa de ajuda, é evidente. A única vez que nos bateu à porta foi para perguntar as horas. A hora tinha mudado e ele estava meio perdido. Também deve estar perdido em diversos outros sentidos, mas não sei como poderei ajudá-lo. Tenho-me limitado aos sorrisos e acenos amistosos. Na esperança de que a simpatia quebre algumas barreiras. Mas sinto que é pouco para o muito que ele deve estar a precisar.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Inversamente proporcional

(onde já nem sequer conseguimos disfarçar a felicidade

 na porta de embarque)




Os meus rapazes partiram. Finalmente. Quinze dias inteirinhos de férias de mãe. Um descanso merecido e muitooooo desejado. Desejado por mim, convém especificar. Porque quem nos segue sabe que nem sempre assim foi. Tempos houve em que estas ausências me custavam imenso. Agora, quero é vê-los pelas costas. Até me fica mal dizer isto, mas é a mais pura das verdades. Gosto muito da nossa vidinha e coiso e tal. E adoro os meus rapazes, como é evidente. É pá… mas isto de ser mãe non stop é extenuante. Por isso, espero ansiosamente pelos dias sem filhos, sem horários, sem obrigações. Para ser totalmente honesta, não são só os filhos que se tornam progressivamente mais independentes e autónomos. Estou seriamente desconfiada de que as mães também começam a ansiar por liberdade. Por novos voos. Quando penso que faltam apenas dois anos para o Diogo ir assentar arraiais para outra freguesia até dou pulos de alegria. Acho que estamos os dois no bom caminho. E – mais importante – estamos em perfeita sintonia. Ele a adolescer a olhos vistos e eu a desmaternar na mesmíssima proporção. O único problema é o filho pequeno, que ainda vai andar uns bons anos agarrado às minhas saias. OK… às calças de ganga. Mas vai dar ao mesmo. Filho pequeno não adolesce tão cedo. É esperto que nem um rato e já percebeu que crescer dá uma trabalheira desgraçada. Esta manhã, começou a choramingar em ainda nós estávamos em casa. Desta vez até o Belga teve direito a abraços chorosos. Noutros tempos, teria sentido uma pontada de ciúmes. Hoje, deu-me para lançar uma boa gargalhada. Filho crescido também arrastava os pés. Obviamente, o motivo é outro. O adolescente prefere a namorada à confusão familiar que o espera em Portugal. Resultado: tive de empurrá-los porta fora, já tarde e a más horas. Estava a ver que perdíamos o avião, para gáudio da rapaziada. Despedi-me deles feliz da vida. Coisa pequena limpava as lágrimas. O adolescente desfazia-se em declarações de amor e promessas de muitas saudades. Sim, sim… Adeuzinho e até daqui a duas curtíssimas semanas! J