(onde os preconceitos são postos à prova)
Acordo
uma manhã com a voz do senhorio da casa ao lado. Ainda não deviam ser oito
horas. De um Sábado. Espreito pela janela e vejo-o a mostrar o jardim a um
potencial interessado. Um homem, meia-idade já passada, com um bebé ao colo.
Estranho a hora matutina. E o facto de não ver mais ninguém.
À
tarde, batem à porta. Vou abrir e deparo-me com o “visitante”, acompanhado por
um jovem mal-amanhado. Nem bom-dia, nem boa-tarde. Muito menos uma apresentação
formal. De chofre, perguntam-me se o carro que está estacionado à porta é meu.
Respondo que não e olham-me com ar desconfiado. Que precisam de espaço para
estacionar o camião das mudanças. Explico que o meu carro está na garagem e
indico a casa do dono do carro em questão. Sem demoras, viram-me costas e vão
bater à porta do vizinho. Sem um obrigado, nem adeusinho.
A
mudança é feita. E, dentro de casa ao lado, muita gente. Não dá para perceber
quantos são. Uma coisa é certa, há um bebé. Ouvimo-lo chorar. Nós começamos a
ver a vida mal parada. Até mesmo porque tínhamos um acordo com a antiga vizinha
que funcionava na perfeição. Uma pequena parte do quintal pertence à casa
ao lado e não está murado. Como aquela terra não interessa a ninguém, nós
tratamos dela. Cortamos a relva, aparamos a sebe, impedimos que o matagal de silvas
se propague. Em contrapartida, o intrépido D. Fuas Roupinho é rei e senhor da
totalidade do espaço. E nós apanhamos quilos de amoras, no Verão. A vizinha só
usava o seu espaço para estender a roupa e apanhar banhos de sol, sem ter o
incómodo de tratar do terreno. E assim se passaram dois anos, de boa
vizinhança.
No
Domingo de manhã, debatemos o assunto à mesa do pequeno-almoço. Decidimos que
temos de ir falar com os novos vizinhos para discutir a questão da divisão do
terreno. O tempo urge. Se por acaso houver um cão, vai haver guerra. D. Fuas
não admitirá a co-propriedade. Se houver um gato, ainda pior. É morte certa.
Nisto, coisa pequena começa a chorar. Grossas lágrimas caem-lhe pela cara
abaixo. Depois de muito puxarmos por ele, lá começa a contar a sua história. No
dia anterior, tinha ido para o quintal brincar com a carabina. Como sempre, o
campo inimigo mantinha o fogo cerrado. Um problema. E ele disparava em todas as
direcções para se proteger. Inclusivamente contra a janela dos novos vizinhos.
Até que o tal senhor de meia-idade abriu a janela e se pôs a gritar com ele.
Que não o queria voltar a ver com brincar com armas no quintal ou ia chamar a
Polícia. E, para rematar, mimou uma pistola com a mão e deu-lhe um tiro. Coisa
pequena ficou aterrorizada.
Lá
me apresso a ir falar com o homem. Um bocado irritada, confesso. Nem deixei o
Belga levantar-se. Metem-se com os meus filhos e viro leoa. Bato à porta do
lado e apresento-me. O vizinho convida-me a entrar. De imediato, conta-me a
mesma história que o Vasco tinha acabado de nos contar. Palavra por palavra. Explica
que ficou assustado, quando viu uma criança sozinha a brincar com uma arma no
quintal. E quando ele apontou a espingarda à janela, entrou em pânico. Digo que
compreendo, que é certo que se trata de uma carabina verdadeira que impõe
respeito. Mas que, na realidade, é uma velharia do início do século XX, que o
Vasco comprou num antiquário por tuta e meia. Que obviamente não funciona. Os
únicos chumbos que dispara são fruto da imaginação infantil mirabolante. O
homem ri-se. E eu aproveito para lhe dizer que, na próxima vez, antes de
ameaçar o meu filho, talvez seja melhor começar por vir falar connosco. Que há
assuntos que se resolvem entre adultos, sem intimidar as crianças. O homem dá-me
prontamente razão e desculpa-se. Tinha a filha ao colo, assustou-se. Que anda
uma pilha de nervos, ultimamente. E, nisto, começa a contar-me a sua história.
É
inválido e vivia na República dos Camarões, com a mulher. Entretanto, tiveram
uma filha. E tudo mudou. A sua visão das coisas mudou. A casa onde viviam sem
água quente, nem electricidade a todas as horas, começou a parecer-lhe uma
barraca. Aquele país sem eira, nem beira, começou a parecer-lhe perigoso. Os
cuidados médicos inexistentes, insuportáveis. E a família da mulher, unida como
um clã de mafiosos, demasiado intrometida. Decidiu voltar para a Bélgica. A
pensão por invalidez era reduzida, mas haveria outras ajudas. A mulher não
conseguiu obter o visto e ele teve de vir sozinho com a filha de meses.
Registou a menina, arranjou casa. Carro, não tinha. E o visto foi novamente
negado. Por três vezes. Ele já está a desesperar. A mulher pede-lhe que não
volte, que a menina pode ter uma vida incomparavelmente melhor na Bélgica. Que é
muito bonita, a menina. Um doce de criança. De vez em quando chora, claro.
Principalmente, porque teve de apanhar as vacinas todas quase de enfiada. E
eles chegaram no pino do Inverno. Ele, às vezes, passa-se. Grita. Está cansado.
Já não é novo. É doente. E está completamente sozinho. Só tem os padrinhos da
menina, que tinham ajudado na mudança precipitada. Porque as coisas se passaram
muito mal, no anterior apartamento. Os vizinhos de cima faziam muito barulho,
acordavam o bebé. Gente jovem, de pouco respeito. E ele reclamou. Como
retaliação, fizeram queixa dele à Polícia por maus tratos. “A senhora sabe o
que dói ser acusado de mal tratar um filho? Ter de ir à Polícia prestar
declarações?” Sei, por acaso sei muito bem. Pensei, mas não disse. Só disse que
sabia o que era estar sozinha num país com duas crianças. Que se precisasse de
qualquer coisa, podia contar connosco. Bastava gritar à janela. Se quisesse que
eu ficasse com a menina para ir arejar as ideias, bastava pedir. Agradeceu, mas
recusou categoricamente. A menina só ficava com ele. O clã da mulher não estava
contente com a situação. Nunca tal se tinha visto, um homem já velho a cuidar
sozinho de um bebé. E ele tinha medo, porque havia muitos emigrantes dos
Camarões nesta região. Ele via-os pela janela. Mas ele cuidava bem da menina.
Era o seu tesouro. Mas, às vezes, gritava. Era o cansaço a falar.
Passaram-se
três semanas. Já o tenho ouvido ralhar aos gritos. E o bebé chora um bocadinho
depois. De resto, não os ouço. Nem os vejo no quintal. É pena, a menina devia
aproveitar o sol radioso deste início de Primavera. De vez em quando, vejo-o a
passear com carrinho do bebé na rua. Depois da carrinha da Cruz Vermelha
passar, no final do dia, para recolher os refugiados. No outro dia, a vizinha
do outro lado quis saber como se passavam as coisas. Já sabia a história toda
do homem, inclusivamente a queixa por maus tratos. Disse que a vizinhança
estava de pré-aviso. Que não era normal um homem já velho cuidar sozinho de um
bebé. Se calhar, a menina não era bem tratada. Admiti que já o tinha ouvido
gritar com o bebé. Mas que ela quase não chorava. Parecia feliz e sorridente.
De facto, é lindíssima. E nós não sabemos tudo o que aquele homem está a
sofrer. Afinal, o preconceito num país nórdico não parece assim tão distante do
preconceito africano. Talvez seja por isso que aquele homem vive quase recluso
com a filha. Sinto nojo. Nojo desta Europa que não deixa que um casal se reúna,
só porque a mulher teve o azar de nascer no país errado. Nojo deste mundo que
prefere criticar a ajudar um pai sozinho. Nojo do preconceito, da crítica fácil,
do apontar de dedo.
Aquele
homem precisa de ajuda, é evidente. A única vez que nos bateu à porta foi para
perguntar as horas. A hora tinha mudado e ele estava meio perdido. Também deve
estar perdido em diversos outros sentidos, mas não sei como poderei ajudá-lo.
Tenho-me limitado aos sorrisos e acenos amistosos. Na esperança de que a
simpatia quebre algumas barreiras. Mas sinto que é pouco para o muito que ele
deve estar a precisar.
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