(onde uns vão futilmente às compras e outros apreendem conteúdos novos por osmose… ou coisa que o valha, ainda não percebi bem)
Ontem,
o meu amor foi buscar um livro que eu tinha encomendado. Mentira, ele é que o
encomendou numa livraria universitária. Eu cá sou mais despachada, fui
directamente ao site. Antes de fazer
o pagamento, reclamei em voz alta que parecia incrível um livro demorar uma
semana a vir de França. A Fnac Portugal despacha livros à velocidade da luz. No
máximo, 72 horas. Mas os contos da Ferrante chegaram cá um dia depois de ter
feito a encomenda. Ainda hoje o carteiro se lembra da minha cara de parva a
olhar para ele. Daí o meu espanto pela demora daquela editora francesa. O meu
amor achou que seria muito mais rápido encomendá-lo numa livraria no centro de
Liège. Argumentou que funcionava que era uma maravilha. Céleres e prestáveis. E
sempre se poupava nos portes. Seja. Precisava daquele livro o mais depressa
possível.
Quinze
dias depois, ligaram da livraria a dizer que o livro tinha finalmente chegado.
A culpa era da editora, claro. O meu amor prontificou-se logo a ir buscá-lo. Não
que eu andasse há mais de uma semana a falar constantemente do assunto. Nem que
tivesse amaldiçoado a sua ideia peregrina umas mil vezes. Sou pessoa de bom
feito e carácter agradável, como se sabe. A razão era outra. Bastante menos
altruísta, por sinal.
Decidi
aproveitar a ida à cidade, para ir às compras. E o meu amor achou por bem
escapar airosamente ao suplício, oferecendo-se para ir buscar o livro. Pela
primeira vez na minha vida, precisei de ir comprar calças de ganga ao filho
pequeno, porque as que tem deixaram de lhe servir. Não estão rasgadas. Não têm
joelheiras. Não estão verdes de tanto esfregar na relva. Simplesmente, deixaram
de servir. Uma vitória completamente inédita. Filho grande também estava a
precisar de calças. Depois de, incrédulo, se ter apercebido que também não
cabia nas que tem. Depois de muito se ter espremido. E comprimido. Mas nem
quase asfixiado aquilo fechava. O problema não é o rabo gordo, herança materna
que o irmão ostenta orgulhoso (porque diz que tem um rabo musculado graças ao
ballet). O problema são os ossos largos (eu não disse que também são herança
materna, dado que ele não parece apreciá-los por aí além). Seja como for, os
filhos precisavam de calças. E a filha do vizinho de meias anti-derrapantes (sim,
sim… ofereci-me para o que fosse preciso). Eis-me então às compras, em pleno
centro de Liège, enquanto o meu amor se pôs ao fresco.
O
problema, quando uma pessoa desce à cidade, é que a oferta é mais que muita. E
já que é para a desgraça, que seja a valer. Ando há tanto tempo à procura de um
distribuidor de sumos para fazer água com frutos. E também havia a questão da
manete da Xbox que o Vasco partiu com os nervos e que o irmão o obrigou a pagar
e que eu fui incumbida de comprar no Media Markt. E as novidades na Fnac. E
andar à procura de uma máquina de pão no Cash Converters. E ainda me faltava
uma prenda de anos para o meu Belga preferido. Coisas várias, portanto. O meu
amor descobriu por artes mágicas a Dadá, no meio das muitas centenas de carros que
estavam naquele parque de estacionamento. E mandou mensagem a dizer que não me
apressasse, que ele tinha assentado arraiais no capot (eu tinha ficado com a
chaves, na esperança de o obrigar a dar uma ajudinha a carregar os sacos).
Apesar de tudo, fui rápida. Juro que me despachei em menos de duas horas. Tendo
em conta que ele ainda teve de ir à livraria e voltar, deve ter ficado à minha
espera no estacionamento cerca de uma hora e pouco.
Ora,
afinal, o que tem esta história de extraordinário? Pois que o meu amor veio o
caminho todo até casa a debitar o meu livro. 45 minutos de um excelente resumo
de 250 páginas. Muito melhor do que os resumos da Europa-América. Ou das
sebentas amarelas. Ou de uma fantástica colecção de resumos de uma editora
francesa que me permitiu apenas ler o primeiro e o último volume de À la Recherche du Temps Perdu, quando já
estava na faculdade (e, se bem me lembro, até tive 14 valores nessa cadeira).
Não faço ideia como é que o homem (o meu, não o Proust) conseguiu tal proeza.
Mas fiz bem em esperar tanto tempo. E em fazê-lo sentir-se muito ligeiramente culpado por isso. Estou desconfiada que já nem
sequer preciso de ler alguns capítulos. Principalmente, tendo em conta que não
percebo nada do assunto (ele também não percebia…). Às tantas, deixei de o
ouvir e comecei a ver o meu amor pequenino, sobredotado e ostracizado a saltar
de ano sem qualquer esforço. E amei-o ainda mais um bocadinho. Ninguém se torna
sociopata por acaso. E ontem percebi a razão. É que no meio de um ímpeto de
amor, tive vontade de lhe atirar com o livro à cabeça ao ver que não só tinha
conseguido ler aquilo tudo a correr, como conseguia reproduzir fielmente o
texto, capítulo por capítulo. Parecendo que não, uma pessoa fica a sentir-se um
bocadinho estúpida com tanta inteligência.
Sem comentários:
Enviar um comentário