domingo, 28 de dezembro de 2014

Amanhã

(ou o desabafo)

 
Amanhã, chegam os meus filhos. Depois de uma semana de ameaças, de chantagens, de incerteza, de medo. Depois de uma semana de guerra, que nos deixou exaustos.
 
Aliás, se pensar bem, depois de uma semana igual a todas as outras no último ano. A nossa vida é isto. Nunca aqui o disse, mas a nossa vida também é isto. Vivemos sob fogo inimigo. Permanentemente. Somos controlados, espiados, ameaçados. Amedrontados. Recebemos telefonemas às horas mais estapafúrdias que nunca atendemos. Recebemos sms acusatórios e intimidantes aos quais nunca respondemos. E e-mails ofensivos que infelizmente não podem ficar sem resposta. Dizem incessantemente que sou louca, desequilibrada, descompensada. Mentirosa. Que vivo numa qualquer realidade paralela feita à imagem da minha pobre existência. Que sou má mãe. Que vou perder os meus filhos.
 
Dizem-me que vou perder os meus filhos para sempre.
 
Amanhã, chegam os meus filhos comprados, deslumbrados. Alienados. Que demoram sempre a regressar à normalidade. Que trazem os braços e as malas cheias de prendas. Muitas prendas. Prendas pagas a peso de ouro, disseram-me. Nada tenho para lhes dar que faça frente a isto.
 
Excepto talvez o nosso amor imenso. Incondicional. A família unida. Os amigos fiéis. Os passeios que gostamos sempre de fazer com eles. Para lhes dar mundo. Contra ventos e marés, vamos vivendo como podemos na esperança de que o amor e o mundo que temos para lhes oferecer seja suficiente.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Adivinhem onde é que eu estou!

(porque este ano o Pai Natal passou mais cedo pela terra do frio)

 
Passei tantos anos a receber prendas que nada tinham a ver comigo, prendas que detestava, prendas que tinha de abrir com um sorriso falso, que ainda sinto um frio na barriga sempre que vejo um embrulho à frente. Ainda não me habituei a ter alguém ao meu lado que me conhece como ninguém. Que gosta de mim tal como sou. Que não me tenta moldar à sua imagem e semelhança. Que não me quer transformar numa pessoa que eu não sou, nem nunca serei. Alguém que olha e vê, que escuta com atenção aquilo que eu nem sequer chego a dizer.
 
E este ano eu só queria mesmo uma coisa. Uma única coisa que, por me parecer inalcançável, não ousei verbalizar. Porque eu agora sei que a dor interposta ainda dói mais.
 
Mas o meu amor percebeu.
 
Por isso, aqui estamos. Com o céu azul. O Tejo. A luz de Lisboa. Este calorzinho bom que me aquece o coração.
 
Quando vislumbro Lisboa ao longe, vinda da outra margem, sei que cheguei a casa. Quando o meu pai me faz uma festinha na cara, depois de me dar um beijo, sei que cheguei a casa. E quando a minha mãe disfarça uma lágrima, sei que cheguei a casa. As minhas irmãs vão gozar comigo, como sempre fizeram. Vou mimar os meus sobrinhos. Abraçar o meu avô, que está tão velhote. Matar saudades dos amigos. Vou olhar para os meus filhos no preciso instante em que um novo ano começa. Dar um beijo ao meu amor e agradecer-lhe mais uma vez por me ler tão bem a alma. Vou ser quem sou, porque sei que cheguei a casa.
 
O meu amor diz que fico sempre diferente, quando estou em Portugal. Que irradio uma espécie de brilho. Que fico mais feliz. Leve.
 
É porque sei que cheguei a casa.
 
Desejo a todos um Natal assim... no sítio onde são mais felizes, com as pessoas que mais amam. Um Natal em que sintam que chegaram finalmente a casa.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O chico-esperto

(onde se apresenta aquela espécie lusitana

que acha que o resto do mundo vai na canção do bandido)


O chico-esperto é aquele tipo de pessoa que tenta incessantemente contornar o sistema na esperança de obter um qualquer benefício ou vantagem pessoal exclusiva. O fim justifica sempre os meios.

O chico-esperto compensa o que lhe falta em inteligência com esperteza saloia, o que lhe falta em cultura com um desfile de faits divers banais. E, quando tudo isso falha, há sempre o recurso à piada fácil.

O chico-esperto está convencido de que domina como mais ninguém a arte da manigância e dos esquemas. É um tipo cheio de cenas, que se considera mais espertalhão do que o comum dos mortais porque vê pontos de fuga mirabolantes que mais ninguém consegue vislumbrar.

Toda a existência do chico-esperto assenta no dom da prosápia. A prosápia sedutora, manipuladora, deturpada, falsa… A bazófia, portanto. Esta vocação para a lábia leva-o frequentemente a escolher profissões comerciais, onde vende sem pejos frigoríficos a pinguins e, de permeio, ainda lhes oferece um gelado para os fidelizar.

Podem tirar o chico espero do subúrbio, mas nunca poderão tirar o subúrbio do chico-esperto. Para onde quer que vá, arrasta atrás de si o odor suburbano.

O chico-esperto foi alimentado a arroz de frango, por isso, agora só come bife da vazia. Esquece-se de que são os modos à mesa e não o que tem no prato que o traem.

O chico-esperto acha que o “Expresso” vem em vários tomos e que o essencial está resumido nas páginas de “A Bola”. A actualidade restringe-se às novidades futebolísticas. A actualidade portuguesa, bem entendido, pois toda a gente sabe que o mundo acaba no país à beira-mar plantado.

O chico-esperto tenta disfarçar a sua origem usando fato e gravata. Esquece-se que o corte standartizado de hipermercado e a má qualidade do tecido o denunciam. Tal como os sapatos cambados de sola compensada que lhe magoam os pés, mas que lhe conferem os míseros centímetros que tanto almeja.

A linguagem corporal do chico-esperto denuncia sempre a sua enorme insegurança. Tem aquele tique que os comentadores políticos apontavam ao Sarkozy: um ombro ligeiramente mais descaído do que o outro, que denota um certo mal-estar e a dificuldade em entrar na personagem.

As novas tecnologias são o melhor amigo do chico-esperto. Graças a elas, modernizou-se e já não precisa de vociferar “Agarrem-me, senão vou-me a ele!”. Agora, escuda-se por trás das redes sociais para atacar cobardemente os outros e apelar ao apoio da multidão igualmente boçal que o segue.

Como não tem bagagem intelectual, o chico-esperto barricada-se em ideologias sólidas inquestionáveis: o clube de futebol, o partido político, a religião, o trabalho, as citações de autores conhecidos. À primeira vista sabe falar de tudo um pouco, mas depressa se perde nas curvas.

No fundo, o chico-esperto é uma espécie de caniche que ladra histericamente para afastar o medo, porque teme a sua própria sombra. Na intimidade do lar, é muitas vezes um pau-mandado, um rapazinho que procura incessantemente a aprovação que nunca recebeu do pai, um adulto desnorteado que prefere que escolham por ele.

O chico-esperto adora defender supostas causas nobres e os oprimidos, mas nunca vai ao fundo da questão. Um bocadinho à imagem do escuteiro que ajudava a velhinha a atravessar a estrada. Porque é preciso mostrar segurança, certezas absolutas, rectidão. É preciso esconder a vida vazia e pouco interessante atrás de grandes bastiões.

O chico-esperto não é, tem. Não tem, ostenta. Não ostenta, impõe. Não impõe, inventa.

A coisa que o chico-esperto mais preza é a sua networking. Os conhecimentos. A putativa cunha. Os “amigos” que não lhe conhecem a alma negra de lado nenhum, só o seu lado mundano e o riso falso.

O chico-esperto começa a arreganhar os dentes e disferir mordidelas desde pequenino porque nunca ninguém lhe ensinou a usar a pouca inteligência que a natureza lhe deu para esgrimir argumentos. Por isso, rosna.

A ostentação é algo de extrema importância para o chico-esperto. A localização da casa, o carro, os gadgets, o estilo de vida… A defesa da sua existência comezinha baseia-se na imagem que transmite aos outros.

Quando está ao volante do seu carro, o chico-esperto atinge o ponto máximo da chico-espertice: conduz embriagado graças às suas capacidades sobre-humanas, conhece os melhores atalhos, grita impropérios e aterroriza velhotes (e negros e mulheres e outras minorias aselhas ao volante), faz manobras perigosas e ultrapassagens espectaculares, conduz à velocidade da luz porque o conta-quilómetros, que vai até aos 240, está mesmo a pedi-las.

O chico-esperto é uma instituição no nosso país. Estamos tão habituados a ele que, quando de repente o vemos através de um olhar estrangeiro, sentimos náuseas. E percebemos que essa é a origem do problema, a razão pela qual Portugal anda há séculos a lutar contra os mesmos defeitos autóctones.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Ganhar o dia

(porque do turbilhão adolescente, às vezes, emerge um ser adulto)


Estava a regar as plantas, quando o Diogo reparou num vaso novo e me perguntou de onde é que aquilo tinha vindo. Expliquei que tinha trazido do trabalho. Que estavam a renovar os gabinetes e que iam deitar a planta fora. E que tive pena, porque até era bem bonita. Riu-se e comentou que eu aproveitava tudo. Mas é que era mesmo tudo. Divertido, pôs-se a enumerar as coisas todas que eu já trouxe do meu trabalho… Um dos móveis recuperados da sala. As nossas fichas triplas. O candeeiro da secretária do Vasco. Uma cadeira antiga. Concordei. Nem sequer perdi tempo com grandes teorias sobre a arte do relooking ou do DIY, que fazem com que o reaproveitamento pareça uma cena em voga cheia de estilo. Lembrei-o de que, quando aqui chegámos, não tínhamos nada. Nada de nada. Em dois anos e meio, temos uma casa de quatro andares mobilada. Ele continuava a rir. “Mobilada com coisas apanhadas no lixo.” Certo… mas um lixo internacional, caraças. Desencantámos móveis na Bélgica, na Alemanha e na Holanda. Fora tudo aquilo que nos foi generosamente oferecido pela família, amigos, vizinhos e até gente estranha. Os móveis que descobrimos em feiras, ferros-velhos e vendas de garagem. Um bric-à-brac a quem oferecemos uma vida nova. Uma segunda oportunidade. Tal como nós, acrescentei. Nós também estamos a viver uma segunda vida, que construímos do zero. Esta casa foi feita aos poucos, à nossa imagem.

De repente, o Diogo largou novamente a rir. Eu continuava absorta nas minhas lembranças e não percebi. Ele apontou para a botija de água quente do Vasco com que eu estava a regar as plantas. “Até a água fria da botija aproveitas, mãe!” Sorri. E disse-lhe que achava que o mundo seria um lugar muito melhor se as pessoas tentassem aproveitar o que as outras já não querem. A quantidade de lixo que se evitava… Ele aproximou-se, desengonçado, e abraçou-me. Disse-me que o mundo seria um lugar muito melhor se houvesse mais pessoas como eu. Fiquei de coração cheio.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Murro no estômago

(a austeridade sob outro ponto de vista)


Posso viver 2500 quilómetros a Norte, mas vou seguindo atenta as notícias que me chegam de Portugal. E sei que situações destas acontecem diariamente. Mas não deixa de ser um murro no estômago. Nunca o “longe da vista, longe do coração” me pareceu tão absurdo. Dói ver o nosso país afundar aos bocadinhos e a banda continuar a tocar como se nada fosse.

A Bélgica está há meses a ferro e fogo com protestos constantes contra as medidas de austeridade anunciadas pelo novo governo de direita. Acções várias, manifestações, greves… Mas greves a sério, em que o país pára mesmo. Em que há confrontos graves com as autoridades. Em que as próprias autoridades também fazem greve. Em que os piquetes de greve não deixam passar ninguém. Chamam-lhes “greves rotativas” porque tocam rotativamente todas as províncias e todos os sectores, público e privado, até culminarem numa greve geral. Na próxima segunda-feira, este país vai parar novamente. Escolas fechadas, transportes parados, serviços de saúde mínimos, estradas cortadas, serviços encerrados.

O que está aqui em causa são medidas de austeridade que estão a anos-luz das medidas já impostas em Portugal. A supressão da indexação dos salários e dos abonos de família, o aumento do IVA numa série de produtos e serviços, a imposição de um limite de tempo para o subsídio de desemprego, o aumento da idade da reforma para 67 anos em 2030. Aos nossos olhos, é coisa poucochinha. Temos tendência a pensar que esta gente se queixa de barriga cheia. Sabem lá eles o que é a crise… Mas a questão é mesmo essa: a Bélgica não sabe o que é crise e está firmemente decidida a nunca saber. Os belgas já perceberam que as medidas de austeridade que foram impostas aos países da Europa do Sul não criaram prosperidade nenhuma, bem pelo contrário. Está mais que provado que esse modelo económico não funciona, pelo que é essencial não deixar margem de manobra ao poder político para tentar implementá-lo aqui. Doa a quem doer. E na segunda-feira vai doer a todos.

Nos últimos tempos, mal sabem que sou portuguesa, as pessoas fazem-me sempre a mesma pergunta. O funcionário da mediateca, o meu mecânico, o médico da medicina do trabalho, a secretária da minha escola, um eminente neurolinguista que entrevistei no outro dia. Por que razão ninguém ouve falar do que se passa em Portugal? Ouve-se falar das manifestações violentas na Grécia, do Podemos em Espanha, dos ouvidos moucos que a Itália faz às imposições europeias. Mas ninguém tem noção da miséria que grassa em Portugal, só mesmo quem lá vive. Ou quem por lá passa, como simples turista, e se vê confrontado com uma realidade para a qual não estava minimamente preparado. É vergonhosa a quantidade de gente que tenho conhecido que me diz ter ficado chocada depois de ter visitado o nosso país. É tudo muito bonito, o clima é excelente, as pessoas muito acolhedoras e tralálá... mas a miséria, senhores, a miséria! O comércio fechado, as casas a ruir, a pobreza que deixou de ser encapotada. E, no meio disto tudo, o que mais choca é o desconhecimento total que a Europa do Norte tem sobre esta situação. Às vezes, a incredulidade é tanta que as pessoas pendem naturalmente para a teoria da conspiração. Perguntam-me se fazemos protestos em Portugal que a Europa faz questão de silenciar. Não, também não é isso.

Não tenho resposta para as perguntas recorrentes que me fazem, infelizmente. Lá vou admitindo que somos culpados pelos governos que elegemos. Ou que deixámos eleger, o que ainda é pior. Somos culpados porque acatamos tudo com o estoicismo derrotista e medroso de quem alancou com quase 50 anos de ditadura no lombo. Já me têm corrigido: “Somos, não… que você agora vive na Bélgica e, aqui, as coisas são diferentes”. É verdade, as coisas são diferentes, eu é que não sou. Para minha grande tristeza, percebi isso esta manhã, quando fui levar o Vasco à escola. Ele perguntou-me: “Na segunda-feira, também vais fazer greve?”. Respondi que não tinha de se preocupar, porque eu tinha trocado as minhas folgas para poder ficar em casa com eles. E vim o caminho todo com um estranho sentimento de culpa a corroer-me. Ele tem de se preocupar, sim. Porque tem uma mãe que, 2500 quilómetros a Norte, mantém a passividade colada à pele. Que preferiu não fazer barulho e trocar as folgas, a aderir à greve. Não tomei posição. Não levantei ondas. Não questionei. Sou culpada. E este é o verdadeiro murro no estômago.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Males que vêm por bem

(é só preciso saber esperar)


Sexta-feira passada, passei o dia todo a maldizer a minha vida. Mal eu sabia que ainda havia de agradecer...

Por que raio é que a festa de Saint Nicolas da escola do Vasco tinha de começar às 13h30? E, ainda por cima, só avisaram em cima da hora. (Quer dizer, acho que avisaram com a devida antecedência, mas o papel andou vários dias perdido no buraco negro que é a mochila do meu filho pequeno.) Como se as festividades escolares fossem um motivo válido para faltar ao trabalho. “Desculpe lá, chefe, mas amanhã não posso vir trabalhar porque o meu mais novo tem a festa de Saint Nicolas lá na escola e vai fazer de serpente.” Estava fora de questão. Ainda se fosse o menino Jesus… Mas, depois, a coisa pequena fez olhinhos de bambi. Cheios de lágrimas. E eu lá liguei ao chefe a dizer que tinha sido apanhada desprevenida pelas temperaturas amenas para a época (tipo, 6º) e que ainda não tinha ido pôr os pneus de Inverno. O que era a mais pura das verdades. E que anunciavam um nevão para a madrugada de Domingo. O que talvez fosse um bocadinho exagerado, mas plausível. Afinal, sempre há vantagens em viver nas Ardenas, onde nunca ninguém sabe muito bem que tempo é que faz. Mas é sempre pior do que no resto do país. Três centímetros de neve em Verviers podem bem transformar-se em dez centímetros lá para os meus lados.

Folga trocada, aproveitei para ir à garagem de manhã pôr os pneus. O meu novo mecânico é um tipo um bocado estranho. Estranho, tendo em conta o estereotipo profissional. Não tem calendários de mulheres nuas nas paredes, a garagem está impecavelmente arrumada, ele está sempre bem vestido e de mãos limpinhas, oferece-me café, nunca lhe vi o rabo, tem uma gata toda branca que trepa pelo meu casaco acima para se alapar ao colo e dois jack russell velhotes que tentam sempre enfiar-se no meu carro. E não é caro.

Mentira transformada em verdade, lá fui eu assistir à festa da escola. Como estava sem carro, tive de atravessar Vielsalm a pé e cheguei atrasada. Menos mal, talvez conseguisse evitar as apresentações dos miúdos mais novos. Aparentemente, sou a única mãe que acha as festas da escola uma grandessíssima estopada. O salão de festas estava à cunha. É inacreditável como neste país há uma enorme flexibilidade de horários de trabalho. Mães, pais, irmãos, avós, tios, vizinhos. Como sou pequena, não via nada com aquela multidão à minha frente. O que não seria de todo grave, se o Vasco conseguisse ver-me do palco. Toda a gente sabe que as mães vão às festas da escola para serem vistas pelos filhos e não o contrário, como se pensa. Lá fui eu furando, furando, furando, até chegar ao corredor central. Senti uma mão ligeira pousar na minha mochila. Virei-me e percebi que uma velhota tinha decidido aproveitar a boleia. As cadeiras estavam todas ocupadas. Sentei-me no chão, de pernas cruzadas. Ouvi-a abrir um banquinho e sentar-se, atrás de mim. Velhota esperta. Fez-me uma festinha na cabeça e perguntou-me em que ano estava o meu irmão. Que ela não tinha ali nenhum neto, mas que todos os anos vinha assistir à festa de Natal porque achava tudo muito profissional. As cortinas até abrem e fecham sozinhas. Suspiro. A tarde avizinhava-se longa. Depois de uma série de musiquinhas intermináveis, muitas criancinhas desengonçadas e várias professoras com bandeletes de rena a mimar entusiasticamente a coreografia, vi a minha serpente durante três minutos. Um pequeno sorriso cúmplice mostrou que ele também me viu. Missão cumprida.

Entre a troca de pneus e a festa na escola, foi-se o dia de folga que eu tanto prezo.

Sábado à tarde, no escuro do cinema, o Vasco conseguiu a proeza de arrancar novamente o arame do aparelho que a ortodontista tinha arranjado quinze dias antes. Arames duplos indestrutíveis, segundo ela. Ontem telefonei, envergonhada, para marcar mais uma consulta de urgência. A secretária sabe de cor o meu dia de folga. Se podíamos passar na terça-feira, no final da manhã? Claro que sim. Eu, não… que i.n.f.e.l.i.z.m.e.n.t.e troquei a minha folga. Mas o meu amor pode, claro. Tal como pode tentar arranjar uma boa desculpa para a fúria destruidora da coisa pequena. E pedir com jeitinho se seria possível, desta vez, pôr arames triplos. Ou soldá-los, sei lá. E, já agora, se esta nova reparação também estará incluída no orçamento inicial…

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A tribo

(pelos olhos de quem tão bem nos conhece)


 
Adoro esta fotografia. Nós, sem filtro. Sem poses. Perdidos em pensamentos. Colados uns aos outros, como sempre. Num acto que é mais do que amor, é uma necessidade. “Isto são vocês”, disse-me o meu amor quando estávamos a ver as fotografias de Amesterdão, este fim-de-semana. A tribo.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Há coisas que só mesmo a mim

(to be continued, que eu tenho queda para o disparate)


De manhã, às pressas e no escuro, a primeira coisa que salta da gaveta são as cuecas cor-de-rosa da Hello Kitty que a minha mãe se lembrou de me mandar, sabe-se lá porquê. Nada de muito grave, não fosse dar-se o caso de ser dia de ir à medicina do trabalho. E ter de me despir. À frente de um médico que teve alguma dificuldade em conter o riso. Já disse que os belgas são pessoas muito à-vontade?

Mal chego a casa, o adolescente de serviço informa-me que os amigos aceitaram entusiasticamente a minha sugestão para irem assistir à sessão especial que o cinema aqui do burgo preparou para a estreia do novo filme do Hobbit. Três filmes seguidos de três horas cada, pela módica quantia de 14 euros. Sou uma mãe fixe, ofereci-me para os ir levar e buscar. Têm é que dormir todos cá, porque é muito tarde para voltarem para casa. Hein?! A sessão acaba às 5h15. Da manhã. Tenho a certeza absoluta de que essa indicação não constava no programa.

E, de repente, vem-me à memória aquele trecho da canção do Sérgio Godinho:

Há dias de manhã
em que um homem à tarde
não pode sair à noite
nem voltar de madrugada

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Uma pessoa nunca está preparada

(é assim uma espécie de hibernação psicológica)

 
Ontem meti-me no carro, distraída. Às tantas, reparei nuns arbustos todos brancos, na berma da estrada. E pensei que era estranho ainda haver arbustos floridos no mês de Dezembro. Um pouco mais à frente, eram umas árvores brancas. E pensei que era mesmo estranho ainda haver árvores em flor no mês de Dezembro. Amendoeiras? Depois, percebi. Era neve.

Porra, já começou.