segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A sequência lógica

(onde se mostra que a autonomia tem um objectivo final)



Não há dúvida de que, neste país, o despreendimento em relação aos filhos é muito maior do que em Portugal. Certas coisas fazem-me imensa confusão, tenho de admitir. A maior parte das escolas secundárias estatais podem ser frequentadas em regime de externato ou de internato, sem que o preço aumente significativamente. Os internatos estatais são bastante solicitados no caso de escolas profissionais ou técnicas com cursos muito específicos, que estão situadas exclusivamente nas grandes cidades. Além disso, há colégios internos privados de renome um pouco por todo o lado. Quando dei aulas de Inglês na Athénée de Spa tinha vários alunos que estavam internos, porque viviam longe ou porque tinham “problemas em casa”. A mim, nunca me pareceram especialmente problemáticos, apenas carentes... Apesar de ter crescido cheia de inveja das personagens da Enid Blyton, que andavam naqueles colégios internos ingleses fantásticos, percebi que a realidade é bem mais desoladora. Fiquei estarrecida quando uma das minhas alunas de Espanhol, que é casada com um flamengo, pôs a filha num internato na Flandres mal terminou a primária no colégio de Saint-Joseph, onde anda o Vasco. Em termos linguísticos, acho a solução deste casal bilingue excelente. Em termos parentais, acho-a desastrosa.

Os miúdos belgas são incentivados a criar asas relativamente cedo. Quando entram para o secundário, no 7º ano, há uma clivagem nítida. Aos 12 anos têm um bilhete de identidade com um chip que contém todas as suas informações pessoais, que são obrigados a ter sempre com eles. Por volta dessa idade, abrem também uma conta bancária (com uma conta-poupança automática anexada) e podem utilizar o cartão multibanco. Recebem o primeiro telemóvel. Já ficam sozinhos em casa, quando chegam da escola. Tudo isto tem uma razão de ser óbvia. No secundário, a maior parte dos miúdos vai para escolas mais longe de casa e torna-se autónoma, no que às deslocações de transportes públicos diz respeito. O mesmo se passa em relação às diferentes actividades. Raros são os miúdos que andam a reboque dos pais… ou melhor, raros são os pais que andam a reboque dos filhos. A independência, a autonomia e o desenrascanço são palavras de ordem na sociedade belga. É no seguimento desta lógica educativa que os jovens são incentivados a trabalhar a partir dos 15 anos – como já expliquei aqui – e a juntar dinheiro para as suas despesas pessoais.

Embora não tenha este desapego todo em relação aos meus filhos, esforço-me por seguir os hábitos deste país. E estou continuamente a pôr-me em questão, tentando ver onde posso melhorar. Parece-me que o Diogo já tem muita liberdade, para os seus 14 anos. É um miúdo desenrascado e autónomo, a quem nunca precisei de cortar as vazas. Infelizmente, não posso dizer o mesmo do Vasco… A coisa pequena ainda é tratada com um mimo e desvelo pouco comuns por estas bandas. Mas penso que isso está relacionado com o facto de ser uma criança que ainda vive muito no seu mundo, que é um bocadinho desligada da realidade terrena. Por “realidade terrena” refiro-me, por exemplo, a atravessar passadeiras com os olhos postos na estrada e não num livro. Ou não dar conversa a qualquer estranho que se meta com ele. O meu amor pede-me insistentemente que comece a “treinar” o Vasco para andar sozinho, visto a coisa estar longe de começar a desenrolar-se naturalmente. Já combinámos que, assim que o tempo melhorar, vamos mandá-lo fazer recados à rua e escondemo-nos os três em pontos estratégicos ao longo do percurso a vigiar. Nem quero imaginar… O Vasco é tantas vezes salvo in extremis que já tive de lhe coser o capuz do Kispo, porque as molas estavam lassas.

Apesar do meu lado maternal arreigadamente mediterrâneo, sou a favor de uma outra tradição belga, que impressiona muitos pais portugueses: os filhos saírem de casa quando vão para a universidade… e nunca mais voltarem. Quer dizer, nos primeiros tempos, ainda voltam no fim-de-semana e nas férias. Mas, se tudo correr bem, nunca mais assentam arraiais em casa dos pais. É evidente que esta tradição não é especificamente belga, embora seja antagonicamente portuguesa. Aos 18 anos, é comum os jovens alugarem um kot perto da universidade, mesmo que os pais não morem muito longe. Aliás, as bolsas de estudo para o ensino superior consideram automaticamente que um aluno é externo – logo, que habita num kot – caso a morada de família se situe a mais de 20 km da universidade. Os kots só podem mesmo ser alugados por estudantes, individualmente ou em grupo. São uns mini-apartamentos independentes com quarto, kitchenette e casa de banho, que custam entre 250 e 400 euros por mês (despesas incluídas). No final dos estudos, os jovens recebem uma bolsa de transição para se conseguirem sustentar até arranjarem o primeiro emprego, evitando que voltem para casa. Se me faz confusão pensar que o meu filho mais velho está a quatro anos de levantar voo para fora do ninho? Não, nenhuma. Ele já começou a sonhar com isso há algum tempo. Felizmente, a universidade de Liège é a mais prestigiada no país para os estudos que o Diogo quer seguir inicialmente. Depois, será Bruxelas. Deste modo, pode ir progressivamente alargando o voo. Pelo menos, foi o que lhe disseram no Salão do Estudante, onde o meu amor o levou no outro dia. Pode parecer prematuro abordar estes assuntos tão precocemente, mas creio que faz tudo parte da mesma dinâmica consistente de autonomização. Como se sabe, a independência não se dá, conquista-se. E isso leva o seu tempo.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Para memória futura

(onde faz o elogio do desapego e se é recompensado)

 



Com a morte súbita do computador, provavelmente perdi as fotografias dos últimos dez anos da minha vida. Dos últimos três ainda escapam algumas, porque o meu amor faz sempre cópias das fotografias que vamos tirando quando viajamos. Os documentos mais importantes circulam algures no ciberespaço, portanto, são também recuperáveis. Verdade seja dita, creio que no sótão da minha madrasta deve haver algures uma caixa com vários CD com um backup que fiz de imagens e documentos, antes de virar definitivamente costas à minha primeira existência. Não tenho bem a certeza. Mas também não estou muito preocupada. O melhor de ter vivido duas vidas é que aprendi a praticar o desapego. Preciso de muito pouco para ser feliz. Quase nada. Alguns livros, muito pouca roupa, zero artifícios e bibelots. Em nossa casa, não temos fotografias nas paredes. Temos memórias e isso chega-nos bem. Talvez por isso, nunca me tenha lembrado de passar para um disco externo o conteúdo do computador moribundo.
Há dias, abri o Facebook – coisa que vai sendo cada vez mais rara – e tive uma surpresa. Uma boa surpresa. Num daqueles lembretes novos, apareceu uma fotografia nossa tirada há três anos atrás... na nossa primeira saída a quatro! De repente, ocorreu-me que podia recuperar as fotografias que fui pondo no Facebook para tranquilizar a família e amigos, nos nossos primeiros tempos na Bélgica. Depois, comecei a escrever este blog e praticamente abandonei o Facebook (do qual, aliás, nunca fui muito fã). Aos poucos, este espaço tornou-se muito mais do que um diálogo entre gente conhecida. Tornou-se um documento para memória futura, principalmente dos rapazes. Portanto, pareceu-me que faria sentido mostrar resumidamente os nossos primeiros meses. Não tínhamos grande coisa: uma casa praticamente vazia, numa aldeia que nos acolheu com enorme generosidade. Alguns amigos. Eu ainda nem sequer tinha emprego, vivia de parcas economias que desapareciam a olhos vistos. Mas, olhando para trás, sinto uma ternura imensa quando recordo estes momentos. Acho que nunca me tinha sentido tão livre e feliz. Eu e os rapazes. E, depois, quando as folhas começaram a cair, apareceu o meu amor, que se materializou num dia de neve e mudou as nossas vidas para sempre.


[ Um dos primeiros passeios que fizemos, quando chegámos à Bélgica, no Verão de 2012. Trois Frontières: o Vasco na Holanda, o Diogo na Alemanha e eu na Bélgica, a tirar a foto. ]



[ Em Julho, caiu o primeiro dente do Vasco. Tinha cinco anos. Disse que a fada dos dentes ia passar. Ou uma personagem do Star Wars, ainda não sabia bem. ]



[ Finalmente em Malempré! Em Setembro, à porta da nossa primeira casa... onde esta aventura começou. ]



[ Nos primeiros dias, andámos a explorar a aldeia e os miúdos ficavam encantados sempre que viam os cavalos dos vizinhos. ]



[ Nunca me hei-de esquecer da alegria deles neste dia! Fui buscá-los à escola com o carro atafulhado com as bicicletas que tinha comprado em 2ª mão. Nesta época, só tinham uma caixa de brinquedos. Tinha recebido o pagamento muitoooo atrasado de um trabalho e fiquei tão feliz! ]



[ À falta de brinquedos, o Vasco descobriu uma paixão que mantém até hoje... os paus que consegue sempre desencantar com olho de lince. ]



[ O meu bebé grande a brincar ao Robin Hood. Viver com menos durante muitos meses permitiu-me perceber que os miúdos têm uma capacidade extraordinária de solucionar problemas... falsos problemas, problemas de adultos, a bem dizer da verdade. ]



[ Até chegar o Inverno, eles andavam livremente de bicicleta pela aldeia. E eu – nada e criada em Lisboa – não conseguia evitar um sorriso de espanto. ]



[ O Diogo redescobriu o seu amor pelos cavalos e pela equitação, que tinha ficado pelo caminho à custa dos penosos anos em que andou no hóquei. ]



 [ Naquela altura, parecia-me tão crescido! Agora, olho para trás e sinto saudades deste menino pequenino. Tinha 11 anos. Depois de anos de bullying, o Diogo descobriu também o amor pela escola. Estava tão feliz! ]



[ O Vasco adorava andar atrás do nosso vizinho agricultor, que tinha uma exploração de vacas leiteiras. O tractor era uma espécie de brinquedo gigante! ]



[ Enquanto o Vasco dava comida às vaquinhas, o Diogo ajudava o vizinho a transportar um vitelo morto. Tive medo que desmaiasse... ]



 [ Com pouco dinheiro, construí um brinquedo da minha infância que fez a delícia dos miúdos: um carrinho de rolamentos! ]



[ Mal pudemos, começámos a dar passeios a cavalo pelos bosques da aldeia. E o Diogo continuava muito feliz! ]



[ O Vasco descobriu a equitação pela primeira vez, mas parecia que nunca tinha feito outra coisa na vida... ]



[ Nessa altura, ainda não havia quem me tirasse fotografias o tempo todo, acho que esta é mesmo uma das poucas... O Zorro entretanto morreu, levado por uma bactéria fulgurante. Tenho muitas saudades destes nossos passeios. ]



[ Um dia, achámos um ouriço nos campos. Tentámos salvá-lo, mas morreu pouco tempo depois. ]



[ O primeiro dia de neve, em Malempré. Começou no final de Novembro e durou até ao dia 25 de Maio. Dos quatro invernos que passámos na Bélgica, este foi sem dúvida o pior. Parado à porta, o velhinho Saxo que me trouxe até aqui e resistiu estoicamente a esse inverno tenebroso. E o D. Fuas que chegou entretanto! ]



 [ O meu Vasco fez seis anos e continuava a parecer um menino pequenino. Com tanta mudança, nunca perdeu a sua alegria natural. ]



[ Aqui, já tínhamos roupa para a neve! Foi a primeira de muitas visitas do "tio Rui". ]


[ Adoro a nossa primeira fotografia a quatro, tirada pelo meu "pai belga". Ainda hoje nos perguntamos o que diabo nos passou pela cabeça para fazer um primeiro programa juntos tão doido: fomos andar de trenó na estância de esqui da Baraque Fraiture. Passaram-se três anos, parece uma vida. Tem sido a melhor aventura. Sinto que estamos os quatro onde temos de estar, sinto que tudo o que aconteceu antes foi para nos trazer até aqui. Agora, tudo faz sentido. Finalmente. ]

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O meu trabalhador-estudante


(e uma não-resposta)


 

Um belo dia num já longínquo 2012, quando dava aulas na Athénée de Spa castiguei um aluno do 10º ano especialmente enervante com um longooo trabalho de casa. Na Bélgica, não se manda ninguém para a rua. Os relapsos vão trabalhar para o "Étude". O miúdo lá se acalmou, mas informou-me que não ia conseguir fazer tudo naquele dia. Desconfiada, perguntei porquê. Era 4ª feira, dia em que as aulas terminam ao meio-dia. Explicou-me que, à tarde, trabalhava como caixa no Carrefour. E eu fiquei de boca aberta, literalmente. O miúdo, franzino para os seus 15 anos, era um autêntico bicho-carpinteiro. Não estava nada a imaginá-lo a fazer um trabalho de responsabilidade. Quer dizer, não estava nada a imaginá-lo a trabalhar no que quer que fosse. Tanto mais que era "menino de boas famílias", muito snob e altivo... aliás, como a maioria dos alunos daquela escola. Foi nesse momento que comecei a perceber que o trabalho de estudante é uma instituição neste país.

Os jovens são incentivados a trabalhar durante todo o seu percurso escolar, a partir dos 15 anos. Esse incentivo começa no próprio Estado, que oferece vantagens fiscais elevadas às entidades empregadoras. O salário mensal inicial por oito horas diárias é de 1050 euros, independentemente do trabalho. E vai sempre aumentando... A partir dos 18 anos, passa para 1500 euros. Por outro lado, o mundo do trabalho está perfeitamente adaptado aos horários escolares. Os miúdos trabalham durante as férias escolares, aos fins-de-semana e às quartas-feiras à tarde. Há sempre uma enorme rotação de trabalhadores-estudantes nos supermercados, nas lojas e nos restaurantes, porque só podem trabalhar no máximo 52 dias por ano. Quando terminam os estudos secundários ou universitários e entram finalmente no mundo do trabalho, é-lhes exigida experiência. É impensável, aqui, um jovem sair da universidade sem qualquer experiência profissional. Não interessa se trabalhou numa friterie, num campo de férias, num supermercado ou a limpar a via pública para a Commune. O que interessa é mostrar-se trabalhador, proactivo, motivado. O que interessa é provar que se soube ter a humildade de começar por baixo, a fazer trabalhos menores durante as pausas lectivas.

Obviamente, o Diogo está desejoso de começar a trabalhar, à semelhança de todos os seus amigos mais velhos. E não é por falta de dinheiro, é mesmo porque tem vontade de ganhar o seu próprio salário. Ainda ontem, quando lhe dei dinheiro para ir ao cinema com uma amiga, me disse que estava deserto de começar a trabalhar para poder pagar as suas próprias saídas. A rir, disse-lhe que não se preocupasse porque eu tinha tirado o dinheiro da conta dele... ao que o Diogo me respondeu que, de qualquer modo, era eu que lhe pagava a mesada. Não deixa de ser verdade. E fico satisfeita por ver que ele percebe bem a diferença.

Nunca me passou pela cabeça que a entrada do filho crescido no mundo do trabalho pudesse ser tão problemática para o outro lado. Poder-me-ão dizer que sou demasiado ingénua. Passados tantos anos, parece que ainda não me habituei a esta acção concertada para minar a educação que nos esforçamos por dar a estes dois miúdos. Toda a sua existência neste país é pura e simplesmente escamoteada, negada, ignorada. É destilado um desprezo contínuo por tudo o que envolva a Bélgica e a nossa filosofia de vida. Porque o Diogo "está na idade de dar, não de receber". Porque agora devia era fazer "trabalho voluntário", bastante mais valorizado pelas "universidades". Que não é vantajoso para o currículo trabalhar na caixa de supermercado de "uma aldeola ou de um vilarejo". Que um adolescente precisa mais de contacto familiar que de trabalho. Que a maneira "ruinosa" como giro a minha vida começa a espelhar-se na vida dos meus filhos, de quem comecei a tentar "tirar proveito"... Uma pessoa lê este ror de disparates e nem sabe por que ponta lhe há-de pegar.

Explicar que, num país economicamente saudável, a sociedade cívil não precisa de colmatar as obrigações do Estado e que, portanto, não existe trabalho voluntário para um miúdo de 15 anos?! Explicar que no Norte da Europa há trabalho específico para jovens e que usufruir dessa benesse do Estado é bem visto? Explicar que o Diogo se candidatou todo contente para trabalhar no Verão numa espécie de colónia de férias para idosos e que esse trabalho será profissional, logo... que merece ser devidamente remunerado?! Explicar que trabalhar na caixa de um supermercadozinho de aldeia pode ser altamente enriquecedor para um jovem?! Que com 15 anos a vida familiar irá entrar naturalmente numa fase de pousio, porque a descoberta do mundo e os amigos ganham outra dimensão?! Que terei de pôr, uma vez mais, a minha vida pessoal atrás do crescimento saudável do meu filho... impedindo-me de ir de férias para ele poder trabalhar, precisando que eu vá levar e buscar sempre que necessário ao trabalho, fazendo as tarefas domésticas que lhe competem, porque trabalhar cansa e o rapaz vai chegar derreado nos primeiros tempos?! Explicar que se avizinham discussões com o Diogo porque ele terá mesmo de pôr metade do que ganhar na sua conta-poupança em vez de esbanjar tudo em parvoíces?! Que o dinheiro amealhado não servirá para pagar a universidade, mas os interRails, as férias e as borgas normais de um adolescente?! Enfim... são tantas as explicações a dar a gente encarcerada na sua visão poucochinha do mundo que mais vale não me desgastar.

Na sexta-feira passada, o meu amor fez o currículo do Diogo, porque eu fiquei perdida a olhar para uma página de vida ainda vazia. Em menos de um nada, apareceram três páginas de gente. Afinal, aquela vida incipiente tinha tanto para contar! As opções que escolheu na escola, as línguas que já domina, os instrumentos que toca, os gostos musicais e literários, os desportos que pratica nos tempos-livres, o amor pela culinária, todas as qualidades que fazem do Diogo um miúdo especial, capaz de o diferenciar dos outros. Fiquei enternecida por ver o filho crescido tão bem descrito pelos olhos do meu amor, que o conhece como ninguém. Achei aquilo um bocadinho exagerado, mas limitei-me a colar uma bonita fotografia do miúdo (sem borbulhas).

No sábado de manhã arranquei um Diogo estremunhado da cama. Na "Maison de l'Emploi" de Vielsalm havia um salão dedicado aos trabalhadores-estudantes. Não lhe disse nada de propósito, para o apanhar de surpresa e ele levar a coisa na desportiva. No salão, havia vários stands com empregadores da região. Todos os jovens presentes estavam acompanhados pelos pais durante as entrevistas, mesmo os mais crescidos. Excepto no stand de uma empresa que fazia construções de madeira nos campos, o Diogo quis inscrever-se em todos os tipos de trabalho disponíveis: hotéis, restaurantes, parques de atracções, casas de repouso, etc. Fez as entrevistas um bocadinho nervoso, mas acho que se desenrascou muito bem. Às vezes, eu corrigia-o discretamente em português: "Não digas que te é indiferente o tipo de trabalho que podes fazer, diz antes que tudo te interessa". Entregou uma série de currículos como gente grande. Fotocópias do bilhete de identidade e do cartão multibanco, com o número de conta dele. Agendou novas entrevistas. Eu estava orgulhosa, confesso. E espantada. É estranho ser mãe deste novo filho crescido. Quando, no final, vi a senhora dos serviços sociais de Vielsalm toda interessada no currículo dele, em detrimento do CV de um miúdo bem mais velho, percebi que o meu amor tinha acertado em cheio na descrição que fez do Diogo. De todos os trabalhos propostos, o trabalho com os idosos foi o que o deixou mais interessado. Nem sequer se importou de se inscrever para fazer limpezas no lar, o que me deixou arrepiada só de pensar, admito.

E nesse preciso momento lembrei-me subitamente de uma outra história de um jovem "trabalhador" muito diferente daquele meu aluno rico de Spa. Uma história antiga de um adolescente com 18 anos já feitos, que ficou a fazer apenas uma disciplina do 12º ano em horário nocturno. Um miúdo que não teve inteligência para entrar numa universidade do Estado, embora os pais não tivessem dinheiro para lhe pagar uma privada. Um miúdo que estudou às custas do dinheiro amealhado a duras penas pelos avós, que teve oportunidade de conhecer mundo graças ao pai da namorada. Um jovem que, quando um amigo da família lhe arranjou o primeiro emprego a lavar janelas num hotel de 5 estrelas, desistiu antes do final do dia pois não aguentava a dureza e a humildade do trabalho. E apareceu a chorar baba e ranho na universidade da namorada, que naquele dia anteviu envergonhada as premissas do homem que se estava ali a formar. Sempre achei que isto era o resultado da triste sobranceria típica do português de classe média... a tal que um dia mais tarde vem dizer que fazer voluntariado aos 15 anos é mais digno do que trabalhar. Felizmente, o meu filho Diogo deu com anos de atraso uma lição de humildade a este homem, deixando-me muitíssimo orgulhosa.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Felizmente hoje é segunda-feira


(porque há semanas que mais vale saltarmos)


Por momentos, pensei que não chegássemos vivos a segunda-feira. Esta semana que passou foi um verdadeiro suplício. Começámos por fazer planos para as nossas mini-férias de Carnaval. Nada de especial, apenas algumas coisas simples que gostaríamos de fazer juntos. A correria dos dias nem sempre permite grandes loucuras e, normalmente, as férias dos rapazes são passadas em Portugal. Dividimos a lista em três colunas: coisas más, coisas mais ou menos e coisas boas. Como somos espertos, despachámos primeiro as más. Ou assim pensávamos nós… Quando nos estávamos a preparar para as boas, o mundo começou a ruir aos bocadinhos.
Fiquei doente, como há muito tempo não ficava. E a tradução que tinha entre mãos eternizou-se. O programa para traduzir de ouvido revelou-se um quebra-cabeças, no meio dos meus picos de febre, da tosse e de uma valente otite.
O Vasco descobriu que tinha deixado na escola o livro que devia ler nas férias... Ler, fazer uma ficha de leitura e preparar uma apresentação oral para o primeiro dia de aulas. Eis-nos então a calcorrear as bibliotecas das Ardenas à procura do dito livro. Nunca mais me hei-de esquecer do título: "A invasão da Sícilia pelos ursos". Interessantíssimo na certa.
Quando estava na recta final da tradução, o meu computador morreu. Morte súbita, sem apelo nem agravo. Impossível recuperar o que quer que seja. Pela primeira vez na minha vida, falhei a entrega de um trabalho. E devo ter obrigado alguma colega desgraçada a fazer uma directa para cumprir o meu prazo. Já para não falar que fiquei sem o meu instrumento de trabalho. Embora odiasse aquele velho computador com todas as minhas forças.
Tentei ver as coisas pelo lado positivo: podia finalmente começar a gozar as férias com os rapazes... Isto se o Twingo não tivesse decidido morrer também, quase à porta de casa. Os efeitos de ter passado tantas horas enfiado na neve, no dia em que fomos a Marche no meio da tempestade, fizeram-se finalmente sentir. Descobri que os seguros normais nesta terra não incluem reboque, o que é sempre bom de descobrir… não vá o carro decidir morrer uma noite serrada em plena auto-estrada, por exemplo. Felizmente, desencantei um mecânico amoroso que soube ressuscitá-lo o suficiente para chegar à garagem. E que mo veio trazer à porta, depois de arranjado. Com tanta simpatia e diligência quase nem consegui odiá-lo, quando apresentou a factura. Quase.
No primeiro dia em que acordei sem febre, o meu amor adoeceu. Menos mal, a doença era exactamente a mesma. Bastou comprar mais uma caixa de antibióticos. Sempre me irritou a quantidade absurda de restinhos de medicamentos que se vão acumulando. Connosco isto raramente acontece. Sabe-se lá porquê, o homem tem a mania de ficar doente a seguir a mim, com a mesmíssima coisa. E consegue pôr-se bom quando os medicamentos estão mesmo a chegar ao fim. É um doente bastante económico, portanto.
No fim-de-semana, poderíamos talvez ter aproveitado o pouco que restava das férias. Se tivesse parado de chover e/ou de nevar um bocadinho de fosse. Tipo cinco minutos. Mas não. Durante toda uma semana, do início ao fim, o céu não parou de nos cair em cima sob uma forma mais ou menos líquida. Uma autêntica emoção. O que vale é que os rapazes convidaram amigos e a casa ficou cheia. O meu amor e eu continuamos meio surdos, o que se revelou uma vantagem tremenda.
Ontem foi dia dos namorados. Lá nos arrastámos até ao chinês ao fundo da rua para um jantar muito romântico a quatro. Os chineses aqui não são tão baratos como em Portugal, mas a comida é bastante melhor. Pedi desculpa aos miúdos pela porcaria de férias que lhes ofereci. Parece que eles gostaram. Parece que só cozinhei coisas pouco saudáveis. Parece que tive todo o tempo do mundo para fazer jogos e alapar-me no sofá agarrada a eles. Parece que, às vezes, também gostam de não fazer nenhum e não têm coragem de nos dizer. Parece que sabe bem ficar no quentinho da sala agarrados a nós, a ver a neve a cair lá fora. Parece que não fazer nenhum é um programa bestial. 

Felizmente hoje é segunda-feira. A vida pode seguir.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Mapa dos afectos

(onde se mostra a nossa geografia dos afectos cambiante)



No Verão passado, o meu mapa dos afectos sofreu uma mudança. O país à beira mar plantado começou lentamente a distanciar-se, como na Jangada de Pedra. A navegar à deriva. Demorei algum tempo a perceber. Quanto dei por ele, já estava em mar-alto. E a distância era intransponível.
Tudo começou na embaixada portuguesa em Bruxelas. Creio que só quem já teve o desprazer de lidar com aquela gente me compreenderá. É uma realidade paralela, absolutamente kafkiana. Um huis-clos claustrofóbico. Agarrem no pior da pátria-mãe, encerrem-no entre quatro paredes, a dois milhares de quilómetros de distância, e espetem-lhe uma bandeira portuguesa. Eis a embaixada portuguesa na Bélgica. Não conheço um único emigrante neste país que não tenha uma história de terror para contar sobre aquele antro, o único pedacinho de solo português a que temos acesso. Era suposto sentirmo-nos em casa, sentirmo-nos protegidos. Em vez disso, somos tratados como cidadãos de segunda, como escumalha. Em três anos, devo ter lá ido umas quatro ou cinco vezes. Fui sempre maltratada. Na penúltima vez levei os meus filhos comigo, porque fomos fazer os passaportes. O Diogo começou a sentir-se tão mal, que teve de sair e esperar lá fora. Repetia descorçoado “Isto não é o meu país, mãe”. O pior é que é. O país do funcionariozinho sobranceiro e altivo, malcriado, profundamente estúpido, malformado. Que sente um prazer absurdo porque detém os fios da nossa vida.
Foi esta embaixada que recusou fazer os bilhetes de identidade dos meus filhos, porque a sentença belga que regulou o poder parental não está apensa às certidões de nascimento deles, nem nunca poderá estar dado que o tribunal português se declarou incompetente para julgar o caso destas duas crianças. E assim nos mantemos alegremente num impasse. Felizmente, temos os passaportes. E os bilhetes de identidade belgas. Foi esta embaixada que me trocou as voltas e não me deu as informações correctas para poder inscrever-me nos cadernos eleitorais a tempo de votar nas autárquicas. Senti que tinham andado a gozar comigo. Quando foi a vez das presidenciais, já eu tinha perdido a vontade de lutar por um país que teima em afastar-me. Estas últimas eleições mexeram comigo. E só agora, que passou algum tempo, consigo exprimir este desconforto. Não acompanhei a campanha, não me informei sobre os candidatos. Nada daquilo me dizia o que quer que fosse. Parecia que não era nada comigo. E também não sinto que este “presidente dos Portugueses” seja o meu presidente.
Portugal está cada vez mais longe do meu coração. Já não sonho com o céu de Lisboa. As saudades vão-se esbatendo. Deixaram de doer há muito. Nem toda a gente soube adaptar-se à distância e alguns afectos diluíram-se com o tempo. Detestei a última vez que estive em Portugal e tão cedo não tenciono regressar. Talvez porque tenha ido por pouco tempo, talvez porque tenha sido obrigada a tratar de burocracias várias, talvez porque tenha sentido uma enorme cobrança por parte da família chegada. Os amigos – aqueles amigos de toda uma vida – não me cobraram nada porque percebem. Estão dispostos a ver-me onde eu estiver, quando eu poder. Mas esses são os amigos para os quais não há longe, nem distância.
O tempo não dá para tudo. Não consigo acompanhar as notícias de cá e de lá. Mais o que se vai passando no mundo. Neste momento, o problema dos refugiados que vejo todas as tardes amontoados na paragem em frente à minha casa preocupa-me mais do que aprovação do novo orçamento de Estado português. Quando ouço falar no descalabro do ensino em Portugal encolho os ombros. O que me tem ocupado o espírito é saber como raio vou pagar sozinha os estudos universitários dos meus filhos neste país, onde é suposto os miúdos saírem de casa aos 18 anos. E nem me preocupei em explicar-lhes a atitude mesquinha desse senhor, quando deixou finalmente o seu poleiro, vetando uma lei que cá tem mais de uma década. Porque há coisas que deixaram mesmo de fazer qualquer sentido.
No outro dia acordei em pânico, com o despertador. Queria pensar e não sabia em que língua. Queria falar e não sabia em que língua. Os dois sistemas operativos que funcionam à vez no meu cérebro entraram em colisão. A verdade é que sonho em francês, penso em francês e falo maioritariamente em francês. Aos poucos, a Bélgica tornou-se também o meu país. O nosso país. E está na altura de parar de lutar contra isso. Dei por mim desejosa que o tempo passe, porque já decidi que vou pedir a dupla nacionalidade mal possa. Quando a tiver, os meus filhos tê-la-ão também automaticamente. Não se trata se uma mera formalidade ou de uma segurança extra, trata-se de uma vontade profunda de traduzir oficialmente a minha nova geografia dos afectos.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

E a adolescência, Rita?

(onde se escreve para não esquecer)


 
Muitas vezes, no ano passado, me questionei sobre o que teria acontecido ao meu filho Diogo, que deixei de reconhecer. Seriam efeitos da entrada na adolescência? Seriam influências exteriores nocivas? Agora sei a resposta, inequivocamente. E esta fase está a ser tão deliciosa que tenho mesmo de escrever, para nunca me esquecer de como é bom ser mãe de um adolescente.
Filho grande mudou definitivamente de estilo. Está crescido. Apesar de me fazer uma certa confusão, acho piada ao grito encalorado do Ipiranga. As calças de ganga têm de ser slim fit e da H&M. As camisolas de lã e os polares foram substituídos pelas sweatshirts (da H&M, pois claro). Está demasiado frio para isso, mas resolvi o problema comprando-lhe umas camisolas interiores térmicas especiais para a neve. Se não podes vencê-los, junta-te a eles, certo? Nem pensar em usar Kispo, cachecol ou gorro. Isso é coisa de meninos. Mas, este Inverno, lá consegui convencê-lo a comprar umas botas, usando exactamente os mesmos truques que usava quando ele era pequenino. Mimando-lhe o ego, elogiando-lhe a singularidade. Agora, ostenta orgulhoso umas botifarras pretas número 44, que lhe dão um andar gingão.
O corpanzil em crescimento ainda não encontrou dono. É como se o meu Diogo transportasse uma casa de caracol desconhecida às costas. Os movimentos continuam descoordenados e bruscos. Quando se lança para cima do sofá desencadeia um terramoto. Quando desce as escadas é como se uma manada de elefantes se tivesse posto em debandada. É de tal forma ruidoso que, do outro lado da parede, ouvimos frequentemente queixas da vizinha. De manhã, acordamos todos ao ritmo do Diogo. Enquanto prepara o almoço na cozinha para levar para a escola, bate com as portas dos armários. E com os pratos e os copos e os talheres. É inimaginável. Mas se ralhamos com ele, pede desculpas sentidas por aquele corpo estranho que ainda não consegue dominar em silêncio. Felizmente, agrada-lhe o que vê ao espelho. Apesar das borbulhas e do remoinho persistente no cabelo. Diz muitas vezes que é bonito. Eu também acho, mas nego porque gosto de gozar com ele.
Continua magro. Sinceramente, não sei como. Entrou naquela fase em que come desalmadamente todo o santo dia. O problema é que o filho crescido sempre comeu bem, portanto a coisa agora atingiu um nível verdadeiramente assombroso. Já deixei de ralhar quando se põe a comer antes das refeições, porque sei que passado pouco tempo está novamente esfaimado. Devora dois pratos cheios, empurrados com umas quantas fatias de pão. Seguidos de fruta, sobremesa e um iogurte com granola. Às vezes, mais um prato de sopa. Acreditem, é impressionante. De tal forma, que tenta sempre que os amigos venham dormir lá a casa, porque tem vergonha de comer este mundo e o outro à frente de estranhos. Quando o vamos buscar a casa de alguém, diz sempre que se divertiu… mas que passou fome. Adora a comida que faço (acho que é mais a quantidade) e não me poupa elogios. Horas antes das refeições, já está a perguntar o que vou fazer. E vai à cozinha cheirar, porque já se sabe que a refeição começa sempre pelo nariz. Tem imenso orgulho na comida caseira que leva para a escola. Gosta de me contar quem andou atrás dele para provar isto ou aquilo e o que disseram da minha comida. Por ele já me tinha inscrito no Masterchef. E eu, que sou uma maricas, fico feliz por pensar que quando for homem há-de sempre voltar porque a comida da mãe é a melhor.
Desejei muitas vezes que este meu filho descobrisse uma paixão na vida. A sua paixão. Tipo uma bússola que indica o Norte, impedindo que se perca. O Diogo gosta de inúmeras coisas, sempre foi um miúdo bastante disperso. Até que começou a tocar órgão de igreja. E fez-se luz. Não há dia que não toque, que não fale das novas músicas que está a aprender, que não peça para o ouvirmos tocar. Anda sempre pela casa a cantarolar. A música clássica fascina-o. Conta os dias que faltam para ter aulas e reclama nas férias. Até o trompete, que andava meio esquecido nos últimos tempos, ganhou novo alento. De vez em quando, lá ouvimos a vizinha reclamar, do outro lado da parede. São onze da noite e ele ainda está a tocar, alheado do mundo. Talvez por isso tenha recebido um boletim excepcional, no Natal. Acho que tocou o coração de um velho professor de órgão, que diz nunca ter tido um aluno tão aplicado. Este ano, termina o curso de solfejo e de trompete na Acadèmie, como um crescido. E eu ainda o vejo tão pequeno.
Ele pensa que não. Pensa que eu o vejo como um adulto, porque o trato como gente grande. Dou-lhe autonomia e liberdade. Respeito-o. Mal ele sabe que fico a rezar para que chova para ter uma desculpa para o ir buscar à igreja, quando sai tarde. Mal ele sabe o que me dói deixá-lo voar. Tenho sempre medo. Mas obrigo-me a deixá-lo ir. Os filhos foram feitos para abandonar o ninho. E estou desconfiada que as dores de crescimento são exclusivamente maternas. Na segunda-feira, o filho crescido não teve aulas e foi pela primeira vez sozinho a Liège. Só impus uma condição: ir com um amigo. Nunca se sabe o que pode acontecer, a dois sempre é mais seguro. E eles lá foram, numa alegria parva pela liberdade recém-conquistada. Na noite anterior, preparei-lhes o farnel e comprei-lhes os bilhetes de ida e volta, pela net. O meu amor fê-lo decorar o horário dos comboios. Acho que estava ainda mais nervoso do que eu, mas não deu parte fraca. Passou o dia a telefonar-me com desculpas patetas para ter notícias dele. O Diogo foi-me mandando várias sms, como tínhamos combinado. Andaram a ver lojas, mas já não havia saldos. A meio do dia, ligou-me. Tinha encontrado uma das BD preferidas do irmão e queria saber se ele já tinha aquele número para lho comprar. Eu ia morrendo de orgulho, confesso.
A imensa doçura do Diogo enternece-me. Sempre pensei que, por esta altura, já eu tivesse de andar atrás dele a pedinchar beijos. Mas é exactamente o contrário. O Diogo continua muito melado. Suponho que quando uma criança cresce lambuzada de mimo, constantemente a ouvir dizer que é amada, continua a precisar dessas doses de afecto quando cresce. No outro dia, estava escrito no quadro da cozinha: “Gosto muito de ti, Diogo. Ass.: Mãe”. Perguntei quem diabo tinha escrito aquilo. Eu sabia que não era. Filho crescido lá me respondeu a rir e sem qualquer vergonha que tinha sido ele próprio… “Já que não me deixas bilhetinhos de amor como fazes com o Pascal”. Nessa noite, preparei-lhe a lancheira da escola. E pus-lhe uns biscoitos que tínhamos feito em forma de coração. E escrevi um papelinho. Ele agradeceu, sentido. Mas ontem estava distraído a mostrar-me fotografias no telemóvel e vi que ele tinha fotografado a lancheira com o bilhetinho. Larguei a rir e disse-lhe que era mesmo um mimado. Mas pensei cá para comigo que ter a coragem de admitir, quase com 15 anos, que se precisa de mimo revela uma inteligência emocional rara nos homens. Não sei muito bem o que nos espera, mas devemos estar no bom caminho...

 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Este não é um post romântico

(apesar de hoje ser o nosso dia)



Conhecemo-nos por mero acaso, nada de muito romântico. Porque um algoritmo aleatório decidiu trocar-nos as voltas. Porque eu decidi gozar com ele. Porque ele me achou piada. E assim começou uma equivocada troca de e-mails. Num atropelo comunicativo cada vez maior. Mas eu só o deixei entrar na minha vida – na nossa vida – porque ele estava de partida. E assumidamente não gostava de crianças. Estes dois factores combinados garantiam a nossa segurança: a dos rapazes e a do meu coração. Uma mãe não tem grande espaço de manobra para o romantismo. Talvez por isso tenha perdido tanto tempo na Internet a confirmar o que me contava. Ainda ele não me tinha dito o seu nome completo, já eu tinha desencantado os artigos científicos que tinha publicado nos últimos anos. Por seu lado, ele também pensou que tinha uma confortável margem de segurança para avançar: eu tinha filhos, nunca poderia segui-lo na sua aventura. Mas podíamos ser amigos. Ambos precisávamos desesperadamente de um amigo. E, assim, ficámos o Principezinho e a Raposa. Até hoje.
Quando finalmente nos encontrámos pela primeira vez, foi romântico. Porque eu tinha ido a Liège e mandei-lhe uma mensagem a dizer que seria engraçado se nos cruzássemos sem saber. Passado umas horas, ele respondeu-me a dizer que tinha passado a tarde à chuva, à minha procura pelas ruas do centro. E eu, que já estava em casa com os rapazes, achei aquilo tão bonito que o convidei para jantar. Um simples jantar a quatro, como não podia deixar de ser. Mas foi um jantar romântico. Passámos o serão a passear pelos bosques de Malempré. Nas Ardenas não chovia, nevava. E a madrugada a conversar na minha sala de paredes azuis, ainda tão vazia de móveis. Ainda tão vazia de tudo, porque a nossa nova vida estava apenas a começar. No dia seguinte, voltámos a encontrar-nos para jantar. Os quatro, pois claro. Ele trouxe clementinas. Desta vez, perdemo-nos noite dentro, no meio da floresta cheia de neve. Agora, olhando para trás, penso que nos perdemos também em sentido figurado. Porque nos encontrámos. Nenhum de nós teria tido a coragem de se apaixonar se não nos tivéssemos perdido, algures, pelo caminho. Perdemos certamente o nosso espaço de segurança.
Apaixonarmo-nos é sempre um acto de romantismo. Com mais ou menos coragem. Com mais ou menos loucura. Mas, depois, há que dar o salto de fé. E a verdade é que nenhum de nós estava disposto a isso. Nenhum de nós estava preparado para isso. Eu ainda estava num processo de redescoberta, a tentar perceber o que queria fazer, nesta minha segunda existência. Ele estava prestes a lançar-se na aventura da sua vida, um périplo solitário de dois anos meticulosamente preparado, com muitos milhares de quilómetros a pé. Os meses foram passando. E ele foi ficando. Cada vez mais envolvido na nossa vida. Na nossa casa. Na casinha de pedra de Malempré, que começava a tomar forma. A data da suposta partida passou, sem que nenhum de nós ousasse falar no assunto abertamente. Mas eu percebi que ele tinha desistido do sonho por nós. Para ficar connosco. Este foi o salto de fé do meu amor.
Entretanto, entrou em pânico. Estávamos em meados de Julho. Um dia, depois de um fim-de-semana perfeito, anunciou-me que se ia embora. Dali a quinze dias. Ia-se embora, não para cumprir o seu sonho. Ia trabalhar para Itália, sem data de regresso. Ficaria a pouco mais de uma hora de avião de distância, mas viria visitar-nos todos os meses. E sempre que precisássemos.  Demorou muito tempo a partir, porque não se conseguia ir embora. Nessa altura, pensei que seria a ocasião ideal para acabarmos. Não acredito em histórias de amor à distância. E admito que também estava um bocadinho em pânico. Depois, pensei melhor. Lembrei-me de uma amiga, que dizia: “o que é nosso, a nós há-de vir”. E decidi abrir mão calmamente. Este foi o meu salto de fé.
Nunca me senti verdadeiramente triste. Ou abandonada. Ou sozinha. O meu amor não deixou. Fiquei contente por voltar a viver só com os rapazes. Por recuperar a minha existência, que aquela relação tinha virado por completo do avesso. Consegui dar um passo atrás e ver as coisas sob outra perspectiva. Durante meses a fio, o meu amor cumpriu religiosamente a sua palavra. Veio ver-nos inúmeras vezes à Bélgica. E a Lisboa, e a Londres e a Frankfurt. Nas datas importantes e nas que ele inventava. Sempre que era preciso. Quando o Vasco partiu o pé, materializou-se em Malempré passados dias. Por incrível que pareça, continuava a fazer parte da nossa vida mesmo à distância. Da vida dos rapazes também. A nossa relação amadureceu muito com esta separação. Voltámos à troca de e-mails inicial, que tanto prazer nos dava.
Na Primavera, o meu mundo desabou. O meu filho Diogo voltou das férias da Páscoa completamente mudado, com a cabeça feita, a dizer que queria voltar para Portugal. Descobri que tinha uma estirpe cancerígena do vírus do papiloma humano. A minha tendinite deixou-me completamente paralisada. Pela primeira vez, pedi ajuda ao meu amor. Senti que o equilíbrio que tinha custado tanto a conquistar, estava prestes a desabar. Senti-me resvalar. E o meu amor fez as malas e voltou para junto de nós. Não por uns dias, como eu pedi. Não por umas semanas, não por uns meses. Voltou definitivamente.
Em Junho de 2014, fomos viver todos juntos para a nova casa, em Vielsalm. Enquanto família. Foi o nosso salto de fé a dois. Acho que demorámos a chegar aqui. Mas, às vezes, as coisas precisam de tempo para amadurecer. Tal como as pessoas. Nós precisámos de tempo. Precisámos de distanciamento. Precisámos de saudades. E de algumas certezas. Quando conjugamos o verbo amar sabemos exactamente o que encerra: dois mundos, duas línguas, quatro pessoas, quatro passados, sonhos abandonados pelo caminho, novos projectos imaginados, o esboço de uma vida em conjunto. Um presente construído dia após dia, sem idealizar muito o futuro. Excepto o dos filhos. Não somos uma família perfeita. Somos a família que sabemos ser. Que nos esforçamos por ser. Onde o espaço e o tempo de cada um são respeitados. Onde a personalidade de cada um é incentivada. Somos os quatro muito diferentes, mas valorizamos essa diferença. Somos singulares, mas fazemos sentido em conjunto. Somos melhores pessoas juntos.
A partir do momento em que aceitamos sem medos o petit grain de folie de cada um de nós, a vida em comum só podia correr bem. Claro que temos as nossas zangas, os nossos desentendimentos. Amar alguém no dia-a-dia não é propriamente romântico. Convenhamos, a vida familiar tem pouco romantismo. É constituída por um empilhamento de obrigações que têm mesmo de ser cumpridas. Contudo, é completamente diferente fazê-lo ao lado de alguém que me trata como sua igual. Que não ajuda, faz. E que sabe fazer melhor do que eu, na grande maioria das vezes. Que não é órfão de mãe viva, portanto quer apenas uma companheira. Que sabe assumir uma paternidade que não desejou, nem é sua. Excepto na realidade dos afectos quotidianos. Que sabe manter-se meu amigo, sem deixar de me desafiar intelectualmente. Ou de outras maneiras. Porque tem sempre algo novo para me ensinar. Que me acha bonita como eu sou, sem artifícios. Que me respeita enquanto profissional e faz tudo para eu não falhar um prazo. Que se esforça por encontrar momentos a dois. E a três. E a quatro. Sempre com o mesmo sorriso. O meu amor não tem uma gargalhada fácil. Mas quando ri é tão engraçado que nós desatamos todos a rir. O meu amor faz-me rir todos os dias e isso faz cosquinhas na barriga. Porque me faz feliz.

Esta manhã foi igual a tantas outras. O Vasco e eu estávamos de saída, atrasados. Mas voltei atrás porque me tinha esquecido de pôr o sumo de laranja na mesa que deixei preparada para o meu amor. Encontrei-o à porta, com o meu kispo na mão. Ajudou-me a vesti-lo e ajeitou-me o gorro. Pôs-me a mochila do computador às costas. Deu-me um beijo. Com um sorriso, empurrei-o, dizendo-lhe que tinha o café a arrefecer na mesa. E isto, não sendo nada de importante, é tudo. É o que nos faz estar juntos há três anos. Creio que não há receitas para fazer durar o amor. Para nos mantermos apaixonados pela mesma pessoa ano após ano, numa vida familiar onde a rotina exigente é pouco romântica. O nosso segredo é cuidarmos um do outro. Não tenho a certeza, mas afinal talvez isto seja um bocadinho romântico. Parabéns a nós, pelos nossos três anos feitos hoje. Logo nós, que não era suposto termos ficado nem sequer três meses juntos...