segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A sequência lógica

(onde se mostra que a autonomia tem um objectivo final)



Não há dúvida de que, neste país, o despreendimento em relação aos filhos é muito maior do que em Portugal. Certas coisas fazem-me imensa confusão, tenho de admitir. A maior parte das escolas secundárias estatais podem ser frequentadas em regime de externato ou de internato, sem que o preço aumente significativamente. Os internatos estatais são bastante solicitados no caso de escolas profissionais ou técnicas com cursos muito específicos, que estão situadas exclusivamente nas grandes cidades. Além disso, há colégios internos privados de renome um pouco por todo o lado. Quando dei aulas de Inglês na Athénée de Spa tinha vários alunos que estavam internos, porque viviam longe ou porque tinham “problemas em casa”. A mim, nunca me pareceram especialmente problemáticos, apenas carentes... Apesar de ter crescido cheia de inveja das personagens da Enid Blyton, que andavam naqueles colégios internos ingleses fantásticos, percebi que a realidade é bem mais desoladora. Fiquei estarrecida quando uma das minhas alunas de Espanhol, que é casada com um flamengo, pôs a filha num internato na Flandres mal terminou a primária no colégio de Saint-Joseph, onde anda o Vasco. Em termos linguísticos, acho a solução deste casal bilingue excelente. Em termos parentais, acho-a desastrosa.

Os miúdos belgas são incentivados a criar asas relativamente cedo. Quando entram para o secundário, no 7º ano, há uma clivagem nítida. Aos 12 anos têm um bilhete de identidade com um chip que contém todas as suas informações pessoais, que são obrigados a ter sempre com eles. Por volta dessa idade, abrem também uma conta bancária (com uma conta-poupança automática anexada) e podem utilizar o cartão multibanco. Recebem o primeiro telemóvel. Já ficam sozinhos em casa, quando chegam da escola. Tudo isto tem uma razão de ser óbvia. No secundário, a maior parte dos miúdos vai para escolas mais longe de casa e torna-se autónoma, no que às deslocações de transportes públicos diz respeito. O mesmo se passa em relação às diferentes actividades. Raros são os miúdos que andam a reboque dos pais… ou melhor, raros são os pais que andam a reboque dos filhos. A independência, a autonomia e o desenrascanço são palavras de ordem na sociedade belga. É no seguimento desta lógica educativa que os jovens são incentivados a trabalhar a partir dos 15 anos – como já expliquei aqui – e a juntar dinheiro para as suas despesas pessoais.

Embora não tenha este desapego todo em relação aos meus filhos, esforço-me por seguir os hábitos deste país. E estou continuamente a pôr-me em questão, tentando ver onde posso melhorar. Parece-me que o Diogo já tem muita liberdade, para os seus 14 anos. É um miúdo desenrascado e autónomo, a quem nunca precisei de cortar as vazas. Infelizmente, não posso dizer o mesmo do Vasco… A coisa pequena ainda é tratada com um mimo e desvelo pouco comuns por estas bandas. Mas penso que isso está relacionado com o facto de ser uma criança que ainda vive muito no seu mundo, que é um bocadinho desligada da realidade terrena. Por “realidade terrena” refiro-me, por exemplo, a atravessar passadeiras com os olhos postos na estrada e não num livro. Ou não dar conversa a qualquer estranho que se meta com ele. O meu amor pede-me insistentemente que comece a “treinar” o Vasco para andar sozinho, visto a coisa estar longe de começar a desenrolar-se naturalmente. Já combinámos que, assim que o tempo melhorar, vamos mandá-lo fazer recados à rua e escondemo-nos os três em pontos estratégicos ao longo do percurso a vigiar. Nem quero imaginar… O Vasco é tantas vezes salvo in extremis que já tive de lhe coser o capuz do Kispo, porque as molas estavam lassas.

Apesar do meu lado maternal arreigadamente mediterrâneo, sou a favor de uma outra tradição belga, que impressiona muitos pais portugueses: os filhos saírem de casa quando vão para a universidade… e nunca mais voltarem. Quer dizer, nos primeiros tempos, ainda voltam no fim-de-semana e nas férias. Mas, se tudo correr bem, nunca mais assentam arraiais em casa dos pais. É evidente que esta tradição não é especificamente belga, embora seja antagonicamente portuguesa. Aos 18 anos, é comum os jovens alugarem um kot perto da universidade, mesmo que os pais não morem muito longe. Aliás, as bolsas de estudo para o ensino superior consideram automaticamente que um aluno é externo – logo, que habita num kot – caso a morada de família se situe a mais de 20 km da universidade. Os kots só podem mesmo ser alugados por estudantes, individualmente ou em grupo. São uns mini-apartamentos independentes com quarto, kitchenette e casa de banho, que custam entre 250 e 400 euros por mês (despesas incluídas). No final dos estudos, os jovens recebem uma bolsa de transição para se conseguirem sustentar até arranjarem o primeiro emprego, evitando que voltem para casa. Se me faz confusão pensar que o meu filho mais velho está a quatro anos de levantar voo para fora do ninho? Não, nenhuma. Ele já começou a sonhar com isso há algum tempo. Felizmente, a universidade de Liège é a mais prestigiada no país para os estudos que o Diogo quer seguir inicialmente. Depois, será Bruxelas. Deste modo, pode ir progressivamente alargando o voo. Pelo menos, foi o que lhe disseram no Salão do Estudante, onde o meu amor o levou no outro dia. Pode parecer prematuro abordar estes assuntos tão precocemente, mas creio que faz tudo parte da mesma dinâmica consistente de autonomização. Como se sabe, a independência não se dá, conquista-se. E isso leva o seu tempo.

2 comentários:

  1. Tanta coisa que devia ser espalhada pelo sul da Europa...a terra dos jovens filhos até acima dos 30! Ainda que me faça também um pouquinho de impressão essa escolha dos colégios internos,: era uma ameaça que fazia à minha filha quando se portava mal, ameaçava-a com a ida para o Ramalhão em Sintra! E o que ela chorava...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Coitadinha, ninguém merece! Embora os miúdos aqui até gostem, sabe-se lá porquê.

      Eu cá já avisei os meus que só os sustento até aos 25 anos. Depois, é fazerem-se à vida!

      Eliminar