terça-feira, 27 de setembro de 2016

O cabeleireiro social

(onde se percebe que não tenho mesmo sorte nos cabeleireiros)



Não ia ao cabeleireiro há um ano, quando cortei o cabelo curto. OK… talvez não fosse exactamente curto, mas foi o que me pareceu na altura. Por isso, decidi deixar crescer o cabelo tão depressa quanto possível. O que, em bom português, significa não voltar a cortar nem sequer as pontinhas. Bom, sejamos honestos: não ia ao cabeleireiro há um ano porque, além de detestar a despesa supérflua e fútil, estou a ficar um bocadinho farta das minhas aventuras nos malfadados cabeleireiros desta terra. Mas, entretanto, a Câmara inaugurou um novo projecto: um cabeleireiro social para as famílias mais desfavorecidas do conselho. Ou as mães solteiras, como é o meu caso. Achei importante apoiar a iniciativa, mas não consegui convencer o Diogo a experimentar. Bem argumentei que estavam a dar emprego a duas mães de família desempregadas, que tínhamos de mostrar interesse… O adolescente da casa recusou-se terminantemente a pôr os pés num cabeleireiro que funciona nas instalações da Cruz Vermelha e que, portanto, “não é um cabeleireiro a sério”. Tendo em conta que o Vasco precisa bem mais do que eu de deixar crescer o cabelo, porque voltou das últimas férias em Portugal com o corte à emigrante de leste dos anos 80, tive de me sacrificar. Enchi-me de boa vontade e espírito humanitário e muitos saquinhos de paciência e mantras motivacionais e fé – principalmente, fé – e lá fui eu dar uma nova oportunidade aos profissionais do ramo.

A minha coragem começou logo a esmorecer quando liguei para fazer a marcação. Atendeu-me um velhote. Quer dizer, atenderam dois velhotes, porque aquilo foi uma espécie de conversa a três. Depressa percebi que deviam ser voluntários da Cruz Vermelha, pois percebiam tanto da poda como eu. Ou seja, nada.

Eu: Bom-dia! Queria fazer uma marcação para o cabeleireiro social.
[Primeiro velhote: Pergunta o que pretende.]
Segundo velhote: O que pretende?
Eu: Não sei bem… não posso decidir na altura?
Segundo velhote: Não, acho que não. É que dependendo do trabalho, ponho aqui mais ou menos horas. Está a perceber?
[Primeiro velhote: Pois, diz que tens apontar aqui o que a senhora vai fazer.]
Eu: Estou a perceber. Acho que vou cortar só as pontas.
Segundo velhote: Pronto, vou escrever “cortar”.
[Primeiro velhote: Pergunta se também vai pintar.]
Segundo velhote: Também quer pintar?
Eu: Ah… também pintam? Então, nesse caso, não quero cortar, só quero pintar.
Segundo velhote: Pronto, vou riscar “cortar” e pôr “pintar”. Mas olhe que não sei se dá…
Eu: Não sabe se dá para pintar?
[Primeiro velhote: Dá, dá! Pergunta que cor quer.]
Segundo velhote: Não sei se dá para pintar sem cortar. Não sei se a menina deixa. Ela não gosta de ver as pessoas saírem daqui mal-amanhadas, está a ver?
[Primeiro velhote: Dá, dá! Pergunta mas é a cor.]
Segundo velhote: E que cor é que pretende?
Eu: Se não der para não cortar, não faz mal. Corto só as pontinhas. Pode escrever que é só para cortar as pontas, sim? E a coloração.
[Primeiro velhote: Pergunta qual é a cor.]
Segundo velhote: Quer pintar de que cor?
Eu: Não sei bem o nome… castanho arruivado. É importante?
Segundo velhote: Sim. É por causa dos stocks. A menina tem de gerir os stocks das cores.
[Primeiro velhote: Não sei se há essa cor… que cor é essa? É ruivo?]
Segundo velhote: Pronto, vou escrever aqui “castanho arruivado”. Mas não sei se haverá… Isso é uma cor?
Eu: Deixe estar, não se preocupe. Pinto com o que houver, não é grave.
Segundo velhote: Então, vou escrever entre parêntesis que, se não houver, pinta de outra cor.
[Primeiro velhote: Tens de pôr uma cor! Escreve “castanho”, vá...]
Segundo velhote: Pus castanho, está bem? Para sexta-feira às 10h, sim?
Eu: Está óptimo, obrigada. Até sexta!
[Primeiro velhote: Diz que na sexta-feira de manhã não estás cá. Só cá estou eu.]
Eu: Eu percebi, deixe estar… Então, até qualquer dia!

Na sexta-feira de manhã, lá fui eu… cheia de medo do que iria encontrar. A “menina” parecia mesmo uma menina. Mas era eficiente e despachada. E não falava mais do que o estritamente necessário. Admito que não tenho grande experiência de colorações em cabeleireiros, mas achei que estava a fazer um bom trabalho. Além de que massajava cada madeixa que pintava, o que me deixou a flutuar numa nuvenzinha de bem-estar. Por sorte, ainda havia um tubo do estranhíssimo “castanho arruivado”. Disse-me que tinha de deixar a tinta agir durante 20 minutos e eu deixei-me estar, de olhos fechados a relaxar. Foi fumar um cigarro e voltou. Foi comprar um Ice Tea à máquina e voltou. Depois, pegou nuns papéis e sentou-se ao meu lado a preenchê-los. Eu continuava de olhos fechados, mas ouvia-a suspirar. Longos suspiros, um pouco exasperados. O tempo ia passando, cada vez mais depressa. Achei por bem regressar ao mundo dos vivos e abri os olhos. Tentar trocar um olhar com ela ou mandar umas mensagens telepáticas. Nada. Calculei que os meus 20 minutos já deviam ter passado há muito. Olhei de relance para os papéis e vi o carimbo do Ministério da Educação. Talvez fosse boa ideia meter conversa…

Eu: Isso parece complicado.
Menina: Ah, pois é! Super complicado! Como é que eles querem que uma pessoa se lembre de coisas que se passaram há tantos anos atrás?!
Eu: É para a escola?
Menina: São os papéis da escola da minha filha…
Eu: Tem uma filha?!!!
Menina: Sim, tem 5 anos. Vão ao médico com a escola e mandaram estes documentos para eu preencher… mas isto não são informações médicas!
Eu: Então?
Menina: São datas… datas! Já não me lembro de nada!
Eu: E não pode ver no boletim de saúde?
Menina: Perdi-o. Estou tramada! Sei lá eu quando é que ela se começou a sentar sozinha!
Eu: Costuma ser por volta dos 6/7 meses, não?
Menina: Ah, a senhora lembra-se! Tem filhos pequeninos?
Eu: Não, tenho filhos crescidos… mas tenho boa memória!
Menina: Então, próxima pergunta: Quando começou a gatinhar?
Eu: 9 meses é uma boa idade.
Menina: E a andar?
Eu: Aos 12?
Menina: Quando disse a primeira palavra?
Eu: Aos 11.
Menina: A sério? Eu achava que era mais tarde. Os seus começaram a falar com que idade?
Eu: 7 meses… mas os meus foram precoces! É melhor pôr um bocadinho mais tarde. Vamos pôr idades normais, não?
Menina: Sim, é melhor.
Eu: Vá… então, diga lá. Vai ver que despachamos isso num instante.
Menina: Quando largou as fraldas?
Eu: 2 anos.
Menina: E à noite?
Eu: 3 anos… não, não! Com as meninas é sempre mais cedo, ponha 2 anos e meio.
Menina: Com que idade fez o primeiro amigo?
Eu: Essa é fácil, 3 anos!
….
…..
……
……..

As perguntas sucederam-se e eu fui inventando o melhor que pude. A menina-mãe abria os olhos de espanto e ia acenando em sinal de concordância. Acho que ficou com uma filha perfeitamente mediana. Descobri que sou tão boa a recordar datas que até me lembro com que idade a criança foi operada aos ouvidos. Acredito que me consegui despachar relativamente depressa. Felizmente, a tempo de ficar com algum cabelo na cabeça. Infelizmente, fiquei ruiva. Completamente ruiva. Mas, uma vez lançado o último suspiro e terminada a revisão das datas, a menina voltou ao silêncio e eficiência anteriores. Insistiu para cortar as pontas estragadas… e surpresa… cortou só mesmo as pontinhas, madeixa por madeixa. Nem sequer se pode dizer que me tenha feito um corte. A verdade é que cobrou apenas a coloração, que deve estar para lavar e durar… literalmente, apesar de ter custado a módica quantia de 15 euros.


Como é óbvio, depois de ver a mãe transformada em Jessica Rabbit, o meu filho Diogo jurou que nem morto havia de o apanhar lá. Não fiquei muito surpreendida, confesso. O que vale é que já vou tendo experiência em desastres capilares e sei que isto há-de acabar por passar, mais cedo ou mais tarde. Hum… cheira-me que, desta vez, há-de ser mais tarde que mais cedo. Serei ruiva nos tempos mais próximos. E talvez nos mais distantes também. Lá longe, o meu amor riu-se da minha nova aventura. Disse que, pela primeira vez, tenho o cabelo a condizer com o meu temperamento explosivo.

domingo, 25 de setembro de 2016

E o marinheiro regressou ao mar

(onde se vive uma saudade sem fim)



Em Janeiro, disse que este seria o ano do meu amor. Que em 2015 se tinha dedicado por completo a nós e que, agora, tinha de pensar nele. O meu amor esperou pela rentrée escolar. E pelo início de todas as actividades dos rapazes. Mal o nosso quotidiano acalmou, fez-se ao mar. Voltou aos barcos. Não vale a pena amarrar quem não tem amarras. Tal como eu serei sempre tradutora, ele será sempre marinheiro. Nenhum de nós faz concessões. Nenhum de nós abre mão daquilo que é. Custe o que custar. E a verdade é que custou muito mais do que algum dia imaginei que pudesse custar. Mas o meu amor é marinheiro. Pode não ser exactamente esse o nome. Pode ter muitas patentes. Ou ter um pendor mais científico. O meu amor será sempre marinheiro. E um marinheiro precisa de barcos. E da liberdade do mar.

Prometi que não ia chorar e não chorei. Até ver o Vasco agarrado a ele aos soluços. Até ver o abraço sem fim do Diogo. Nesse momento, chorei. Não por mim, mas por ver a tristeza dos meus filhos. “O que é que nós vamos fazer sem ele, mãe?”, perguntou a coisa pequena quando se deitou. Parecia perdido, amputado. Respondi que íamos fazer o melhor que podíamos. Que íamos viver e esperar. E é isso que temos estado a fazer. A dor da partida deu lugar à saudade. Uma saudade sem fim que os telefonemas, sms e e-mails não matam. Vivo há tanto tempo com a saudade colada ao corpo, que nem tinha percebido que se tornou uma segunda pele. Que já não magoa. Que se esbateu. Agora, está em carne viva. Nunca pensei que houvesse amor assim, que entra em nós e nos usurpa por inteiro. Que faz com que o nosso coração ande no alto-mar. E os nossos olhos fitem o horizonte sem fim. E a nossa mente vagueie ao sabor da maresia. Estou aqui, mas ando perdida algures por lá.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Fazemos nós #1

(onde se inicia uma nova rubrica com diversas dicas, 

provavelmente sem qualquer interesse para o mundo em geral)


Sim, também sou daquelas que começa o ano em Setembro. E que adora o Outono. Não é muito original, bem sei. Mas é quando os novos horários dos rapazes nos obrigam a organizar os próximos 365 dias. É quando introduzimos novas rotinas. E iniciamos um novo ciclo. Compro sempre uma agenda bonita. Faço muitos planos. Traço objectivos. Recomeço do zero. Em Setembro, acho sempre que tudo é possível.

Este ano, uma das grandes decisões prendeu-se com adoptar um estilo de vida (ainda) mais saudável. Ora isto dá trabalho a implementar, não se consegue fazer de um dia para o outro. Por isso, achei que o “início do ano” era um bom momento para introduzir pequenas mudanças no nosso quotidiano, de modo a que se tornem automatismos. Esperando que se tornem automatismos. Tipo, fazer sopa todos os dias...

Já aqui falei da nossa horta, que vai de vento em popa. Ou melhor, vai abrigadinha. Nesta terra fria é preciso potenciar o pouco sol existente e abrigar da intempérie as plantações. Na estufa, quase conseguimos ver o crescimento diário dos vegetais. Pode parecer parvo, mas juro que tem imensa piada. Além disso, a horta é regada por um sistema de recuperação de águas pluviais, construído pelo meu amor. Um dia destes, tenho de fotografar esta autêntica obra de engenharia para vos mostrar.

Além dos legumes da estufa, decidi começar a fazer outro tipo de alimentos para armazenar durante o inverno. Tudo começou com a minha sogra. E com as amoras do nosso quintal. A compota caseira é uma instituição na Bélgica. No Verão, os supermercados enchem-se fruta própria para fazer doce. Na prateleira do açúcar, começa a aparecer uma série de embalagens de açúcar gelificante, que promete maravilhas. A minha sogra todos os anos faz imensa compota, mas este ano esmerou-se. A verdade é que tivemos um mês de Agosto muito mais quente do que o habitual (nem sequer vou falar do Setembro, para não agoirar), acho que nunca vi fruta tão saborosa à venda neste país. Pela primeira vez, não conseguimos dar vazão às groselhas pretas, aos morangos e às amoras, que crescem de forma algo selvagem e autónoma no nosso quintal. Lembrei-me, então, de começar fazer compotas. E de mandar algumas para a minha sogra, como forma de agradecimento. Aproveitei a onda e fiz também compota de abóbora com noz, tomate e morango. Em troca, recebi mais uns potes... Juntamente com uns conselhos preciosos: comprar um açúcar gelificante que se vende em pacotes tetra pack, que permite usar apenas meia medida de açúcar para um medida de fruta (por exemplo, 500 g de açúcar para 1 kg de amoras… sim, apanhei quilos de amoras!). E juntar uma maçã cortada aos bocadinhos, porque tem muita pectina que dá consistência ao doce. Na volta do correio, partilhei com ela uma ideia genial que tive: esterilizar os frascos num esterilizador de biberons para micro-ondas, que consegui desencantar numa venda de garagem por 3 euros. Poupa imenso tempo, água e trabalho.

Entretanto, comecei a traduzir um programa de culinária para a Meo, onde tenho roubado algumas ideias fantásticas de alimentos muito fáceis de fazer em casa e de conservar: queijo fresco com ervas aromáticas, chutney de figo (ou de manga), pickles caseiros, tomate seco… Enfim, comecei nas compotas e, agora, a imaginação é o meu limite! Infelizmente, ainda só consegui armazenar as compotas porque as marabuntas têm comido os meus “ensaios” todos. Quando tiver tempo, hei-de fazer uma série de coisas já testadas e aprovadas em quantidade suficiente para conservar. Ou, pelo menos, para fotografar…

[e, agora, perguntam vocês… O que vais fazer com 25 frascos de compota, Rita?! Os rapazes e eu só comemos compota quando há brunch com crepes. Mas o Belga come pão com doce e queijo todas as manhãs. Invariavelmente. E eu vou surripiando discretamente algumas compotas para rechear bolos, muffins, etc. Esta semana, fiz barritas de cereais recheadas com doce de pêra que foram eleitas as melhores de sempre. Yeah! Bom… a verdade é que a concorrência não é grande. Quer dizer, é completamente nula. As únicas barritas que entram nesta casa são as minhas, que não levam açúcar. Ih, ih, ih! ]

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A melhor compra dos últimos tempos

(onde se tenta falar de sopas e outros assuntos se intrometem)



A minha amiga Christine comprou uma soup maker. Não, esperem… a minha amiga Christine herdou uma soup maker da nossa vizinha maluca. Não só se fartava depressa dos animais, como se fartava ainda mais depressa dos gadgets. Infelizmente, a mim só me calhava a bicharada caída em desgraça. Confesso que teria trocado de bom grado o Peanuts pela soup maker, pela qual me apaixonei de imediato. Entretanto, também me apaixonei pelo Peanuts. Mas, sejamos honestos, a coisa levou o seu tempo. Tipo, muito tempo. Aquele coelho diabólico não é uma criatura fácil de amar, embora tenha acalmado com o tempo. OK… não foi o tempo. Acalmou quando o começámos a soltar no quintal. Eu sempre disse que aquele monstro era selvagem. E acalmou mais um bocadinho quando o começámos a estrafegar de mimo. A razão pela qual as coisas se passaram por esta ordem, e não a inversa, é que era muito difícil estrafegar um coelho selvagem. Primeiro, teve de amansar um bocadinho. Um bom bocado, vá…

Voltando à história da soup maker, pela qual me apaixonei. Na minha imaginação, aquilo era o El Dorado das “Sopas Do Que Havia” (no frigorífico). As únicas que eu sabia fazer. Nunca fui grande sopeira. A verdade é que não gosto muito de sopas, portanto o meu interesse pela temática nunca foi devidamente explorado. Até começarmos a viver a quatro. E o meu amor começar a elogiar as minhas sopas. E eu decidir estar à altura dos elogios. E os rapazes começarem a elogiar as minhas sopas, criando o mito de que sou boa sopeira. Uma excelente sopeira. A melhor sopeira. A dada altura, dei por mim a suar as estopinhas para não me estatelar do pedestal abaixo. Farta de viver na mentira da personagem criada pelos homens da casa, fui obrigada a tornar-me boa sopeira (para os parâmetros bem mais exigente de quem, efectivamente, não aprecia sopa). Não contentes, as marabuntas começaram a exigir sopa às refeições. Mais sopa. Fora das refeições também. E, para piorar ainda mais a situação, começaram a exigir sopas específicas. Já não lhes chegava o tupperware enorme, que durava dias, com sopas inventadas. Habituei-os mal, foi o que foi.

Como estava a ver a minha vidinha a andar para trás, no que às sopas diz respeito, decidi arregaçar as mangas. O que, no meu caso específico, significa fazer o périplo das lojas em segunda mão. Uma soup maker nova da Phillips custa cerca de 90 euros. Nem morta daria este valor astronómico por um gadget. Ainda se me aspirasse a casa ou limpasse o pó… nááá, nem assim! Os miúdos fazem o mesmo gratuitamente. Portanto, a soup maker tinha mesmo de ser baratinha. [Eu não devia dizer estas coisas aqui… logo à noite, já devo ter uns três e-mails à minha espera a acusar-me de levar uma vida miserável, de cultivar o miserabilismo e de educar miseravelmente os meus filhos. A tónica é a miséria, não sei já perceberam. Ou será a misséria? Hum… parece-me que é mais a mizéria. Diz que é do Acordo Ortográfico e nós fingimos que acreditamos. Bom… não me vou dispersar novamente. Voltarei um dia destes ao assunto que, acreditem, bem merece um belo post. Ó, plo menus, 1 lizta izaustiva currijida dos diverços termus utilisados, pra deichar de me sintir insoltada ântes memo de xegar aos verdaderos insoltus. Percebe-ram? Se calhare tambêm devía de apruveitar pra re-ver a conjugassão. Adiante.]

Por coincidência, no dia em que a endocrinologista disse que o Vasco tinha de se enfrascar em sopa para saciar a fome desmesurada à refeição, encontrei uma soup maker como nova por um preço convidativo: 30 euros. Não encontrei o telemóvel que andava à procura para a coisa pequena, mas saí da loja aos pulinhos. O meu amor olhou para mim de lado. Creio que a única coisa que ele recorda dos tempos da vizinha maluca é a quantidade de bichos que nos entraram casa adentro. Nunca lhe devo ter dito que invejava a Christine por ter conseguido ficar com o gadget das sopas. Claro que andava a gabar o aparelho há seculos, mas ele respondia sempre que era melhor investirmos numa boa panela de pressão. É um descrente das maravilhas dos avanços tecnológicos. Além disso, reparou de imediato que a soup maker não vinha com livro de instruções. Nada que não se resolvesse com uns vídeos no youtube, argumentei.

E, de facto, muitooooos vídeos depois, a minha soup maker estava a trabalhar. [Agora, vou fingir que sou daquelas bloggers que narra uma historieta familiar para vos impingir um produto publicitário qualquer] A coitada já deve ter amaldiçoado o momento em que veio parar a esta casa, porque nunca mais teve descanso. O único defeito que tenho a apontar-lhe é o tamanho reduzido. Faz sopas para 5 pessoas, se ninguém repetir. Para nós, é pouco. [OK, concedo que, se quero vender correctamente o produto, talvez não devesse ter começado por aqui…] Excepto isso, estou rendida. Uma pessoa atira para lá os legumes cortados à toa e ela faz tudo sozinha, em apenas 20 minutos. Aquece, mexe, tritura e, no final, mantém quente. Se gostarmos das sopas com pedaços, também há essa opção. Ah… e faz isto tudo quase em silêncio absoluto. É fantástica. Principalmente para quem ocupa a placa toda com tacho e panelas, porque gosta de acompanhar as refeições com legumes variados à parte. [Já estou a melhorar, hein? Se calhar ainda tenho futuro neste mundo da publicidade bloguística] Resta dizer que a soup maker também faz smoothies e compotas. Ainda só experimentei esta última e também fiquei satisfeita. Como sou niquenta, acho que o programa dura pouco tempo e lanço-o novamente. Mas, para quem gosta de doces tipo geleia, mais líquidos, fica uma delícia!

[ as minhas fotografias não fazem definitivamente jus ao bicho, por isso roubei estas na net ]





segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Companheirismo

(porque uma história triste pode narrar uma vida feliz)




O tio-avô do meu amor é pintor, do movimento surrealista belga. Apesar da vetusta idade, mantém-se muito jovem de cabeça. E continua a pintar. Vive sozinho numa casa-museu, rodeado de obras de arte. Há pouco morreu-lhe a mulher, companheira de uma vida. Quando abriu a época do mexilhão, decidiu manter a tradição. Um gesto bonito, para honrar a memória da esposa. Aperaltou-se e apanhou o comboio até Ostende, para ir comer os primeiros mexilhões frescos. Após três horas de viagem, chegou ao destino. Mas não conseguiu sair da estação. Nunca chegou a ver o mar. Como poderia apreciar os mexilhões sem ela? Deu meia-volta e entrou novamente no comboio. Regressou a casa, no seu fato de Domingo. Foi o dia em que as saudades mais pesaram.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Atentai, olheiros!

(onde percebemos que já nem para tia temos paciência)


Lembro-me do primeiro dia em que fui fazer babysitting, a casa da minha futura “família belga”. Foi na véspera de um teste importante de História. Eu estava nervosa. Nunca tinha tomado conta de quatro crianças ao mesmo tempo. A mais pequena ainda era um bebé, o mais velho tinha 10 anos. Eu tinha 15. E ainda mal falava francês. Tudo o que queria era metê-los na cama o mais depressa possível, para poder estudar. A tarefa revelou-se hercúlea. Os mais velhos saltavam em cima das camas. O pequenino recusava-se a despir-se à minha frente, porque eu era uma rapariga, apesar de ainda não conseguir vestir o pijama sozinho. A bebé olhava para mim de olhos muito abertos e cara fechada. Sem sombra de sono. Foi um suplício.

A única maneira que tive de estudar foi sentar-me no chão, na ombreira da porta do quarto dos rapazes. Iluminada pela luz de presença. Mal um deles se levantava da cama, eu dava um pulo e fazia cara de má. Prometi-lhes os piores horrores como castigo. Que lhes iam cair os cabelos e as unhas dos pés. Que as orelhas ficariam pontiagudas. Que o ranho se tornaria roxo. E que lhes iam nascer borbulhas pustulosas na cara. Eles riam-se, claro. Mas acabaram por adormecer embalados por aquela lengalenga terrífica. O pequenito adormeceu vestido. Só lhe consegui vestir o pijama quando já dormia a sono solto. A bebé venceu-me pelo cansaço. Passei horas a tentar adormecê-la ao colo. Em desespero de causa, acabei por metê-la no berço. Virou-se de barriga para baixo e adormeceu instantaneamente. Percebi que os bebés das famílias numerosas gostam mais de solidão do que de presença humana. Até tem a sua lógica.

Por mais estranho que possa parecer, daqueles quatro terroristas, a criança mais difícil era a mais calma. Sem dúvida, a mais inteligente. Mas tinha um feitio pavoroso. Uma teimosia que me tirava do sério. Um mau perder épico. Quando embirrava com uma coisa, nada o fazia mudar de ideias. Acho que foi a única criança de quem tomei conta que levou um estalo na cara. E juro que foi bem assente, embora eu tenha ficado mortificada. Felizmente, depressa foi perdoado. É que aquele miúdo, quando lhe passava a neura, era um amor. Entretanto, passaram a ser cinco crianças. Não tenho preferidos. Hum… talvez tenha a minha preferida. Mas ficou uma afinidade especial com o meu casmurro.

Hoje, deixou-me cá o filho. A mulher está internada no hospital há 3 semanas, em estado grave. E ele vira o mundo do avesso para conseguir acompanhá-la, continuar a trabalhar e manter o bebé longe de creches. A pequena criatura berrou duas horas e tal sem parar, numa luta contra o sono que me fez recordar a obstinação do pai. E quase cortar os pulsos. D. Fuas, que nunca tinha visto um espécimen destes, uivava aflitivamente. Os homens da casa partiram em debandada. Eu também. Improvisei um sling, meti-o lá dentro à força e fui dar a volta ao lago. Quase dois quilómetros depois, adormeceu finalmente. Deixei-me escorregar devagarinho num banco e aproveitei para dormitar também. Fiquei exausta. E acho que consegui apanhar uma bicheza qualquer infantil. Estou desconfiada de que este bebé faria um sucesso doido numa campanha da Control. O meu Belga, por exemplo, nunca mais ninguém o viu. Há horas. Já o bebé chorão se foi embora (a rir, o parvo).

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Terra

(onde reencontramos um eu antigo 

e se começa a comer o que a natureza nos dá)



Quem me conhece sabe que sou uma falsa citadina. Nada e criada na cidade, sempre invejei os amigos que tinham uma “terra”. A terra dos pais, dos avós, dos primos… a terra das férias e dos dias festivos. A terra para onde, invariavelmente, voltavam. Nós nunca tivemos uma terra. Quer dizer… até tínhamos, mas era Lisboa. Terra de todos e de ninguém.

Aos 14 anos, decidi que queria seguir Engenharia Agronómica. Havia de ter a minha terra, desse por onde desse. Felizmente, era uma miúda esperta. Ou seja, comecei por fazer uma investigação prévia. Inscrevi-me na Escola Agrícola da Paiã, no 9.º ano. Acho que foi das épocas mais tristes da minha adolescência. Aguentei 5 meses e voltei para a minha antiga escola, a meio do ano. Aquilo não era para mim. Não gostava das pessoas. Não gostava da vida daquelas pessoas. Não gostava de estudar as melhores raças de vacas para fazer bifes, eu que até era vegetariana. Nem de aprender a pôr pesticidas nas vinhas. Aos 14 anos, decidi que não queria seguir Engenharia Agronómica. Reconciliei-me com Lisboa. A minha terra. Mas inscrevi-me na equitação, na Sociedade Hípica Portuguesa. Um oásis no meio da cidade.

Entretanto passei um ano na Bélgica, no campo. E senti que tinha chegado a casa. Acho que foi das épocas mais felizes da minha adolescência. Bem vistas as coisas, acabei por encontrar a minha terra. E adoptar uma família da terra. Voltei muitas vezes, nos anos seguintes. Sempre com aquela sensação de regresso ansiado, que invejava aos meus amigos, quando era criança. Com aquela sensação de paz. Os meus “pais belgas” venderam há pouco a casa. Nem sequer fui capaz de fazer as despedidas. Senti que tinha perdido a casa de família, na terra.

Não sei porquê, nunca encarei a nossa casa em Vielsalm dessa maneira. Adoro-a cada vez mais, sinto imenso orgulho por tudo o que temos construído, acho que está a ficar um reflexo real daquilo que nós somos… só que não é a “casa da terra”, por assim dizer. Mas talvez eu esteja errada. Talvez um dia venha a ser. Já percebi que os meus filhos começaram a desenvolver esse sentimento de posse familiar em relação a esta casa. Sempre que chegam de Portugal, gostam de a percorrer. De a reencontrar. De apreender as suas ligeiras modificações. Agarram-se firmemente a pequenos hábitos que estão a transformar em tradições. E a casa vai crescendo em carácter.

A última novidade é a estufa. Demorou dois anos a ficar pronta. Foi um longooooo projecto. Acho que já disse aqui que os belgas não sabem estar quietos e adoram um bom projecto. Este deu-nos mesmo muito trabalho. Admito que não ficou tão caro como pensava. Mas a verdade é que o senhorio também se entusiasmou e decidiu dar uma contribuição financeira bastante generosa. O resto foi feito pelos homens da casa, como sempre. Até a coisa pequena ajudou. Eu tratei apenas da parte final. Mas é parte mais importante! Plantei a horta. E continuo a tratar dela com desvelo. Escusado será dizer que os meus homens desmobilizam de imediato, uma vez terminado o projecto. Não faz mal. Estou a adorar poder dar finalmente vazão à minha alma de agricultora precocemente reprimida. Acho que é desta que a nossa casa se transforma numa “casa da terra”. Ontem, comemos a primeira sopa feita com legumes da horta: alho francês, cebola, couves e ervas aromáticas. Comprei apenas abóbora, porque já não fui a tempo de a plantar este ano. Mas guardei as sementes para quando a Primavera chegar…

 [ a estufa ]

 [ a horta, em construção... ]

[ a "maternidade", com as suas incubadoras ]

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Saiu melhor que a encomenda

(onde percebemos o verdadeiro significado da palavra excêntrico)



Este início de ano lectivo já me obrigou a arrepiar caminho nas minhas convicções pedagógicas. Sempre defendi que o Vasco não precisaria de telemóvel antes de entrar para o 7.º ano, que marca o começo do Secundário neste país e a consequente autonomia dos jovens belgas. Claro que a nossa coisa pequena há muitoooo que pedia um telemóvel, mas a discussão nem nunca chegou sequer a estar na ordem do dia, para sua enorme tristeza. No tempo das vacas gordas do outro lado, o Vasco recebeu um smartphone quando fez 7 anos. Tinha ligação à internet e tudo e tudo… Felizmente, a coisa pequena (que nessa altura era mesmo muito pequena), fez o favor de o estragar em dois tempos. Proeza que consegue alegremente fazer sempre que deita a mão a algo. Tablets, consolas e demais aparelhos electrónicos. Novos, velhos ou assim, assim. Entretanto, veio o tempo das vacas magrinhas e já ninguém está interessado em comprar estas crianças, pelo que nunca mais se falou de telemóveis espertos, icoisos, etc. e tal. Agora é mais Legos, para minha profunda felicidade.

E, assim, fomos andando até este ano lectivo começar. O Vasco entrou para o 4.º ano da Académie. Tem duas horas de solfejo seguidas, à noite. Com miúdos que até já falam de sexo… Aos sábados, também tem duas horas de dança clássica. Ambas as aulas são dadas em escolas secundárias da região, completamente desertas àquela hora, onde não é suposto os pais entrarem. Onde já não temos sítio para ficar discretamente a fazer tempo. Portanto, sem que o Vasco pedisse, decidimos dar-lhe um telemóvel. Assim, podemos deixá-lo à porta e vir embora descansados, porque ele poderá contactar-nos se houver algum imprevisto. Tipo a professora sentir-se mal e decidir ir para casa, deixando os miúdos abandonados à sua sorte, como sucedeu no ano passado.

Uma vez tomada a decisão, avisámos que seria um telemóvel básico. Tão básico quanto possível. Que cumprisse apenas a sua função essencial: fazer e receber chamadas. O Vasco estava tão desejoso de ascender ao nível da comunicação funcional do século XXI, que aceitou as nossas condições todas com uma alegria pateta. O primeiro sítio onde fui à procura do dito telemóvel foi, como não podia deixar de ser, uma loja em segunda mão. Infelizmente, lembrei-me de levar o adolescente para dar uns conselhos. Devo dizer em minha defesa que o Diogo exigiu ir comigo para garantir que o irmão recebia um telemóvel tão básico e feiinho como o primeiro que ele recebeu, há largos anos atrás. Só que, entretanto, deve ter baixado nele um espírito qualquer de solidariedade fraterna nunca antes visto por estas bandas. E fui sumariamente informada de que já ninguém tem telemóveis com teclas. Que estas crianças nasceram na era do táctil e que não se entendem com outra forma de manejamento. Que o telemóvel é motivo primário de gozo e ostracismo juvenil e – pasme-se – até mesmo infantil. Que não se admite que o irmão de um adolescente tenha menos do que um smartphone. Resultado: não encontrámos nada que nos agradasse aos dois. A segunda loja que visitei era, como não podia deixar de ser, uma loja em segunda mão. Desta vez, arrastei o Belga comigo. Não se revelou melhor do que o adolescente. Nada era suficientemente bom para a criança em causa. Resultado: também não encontrámos nada que nos agradasse aos dois. À terceira, deixei-me de merdas. Peguei no principal interessado e levei-o ao supermercado ao fundo da rua, numa sexta-feira à tarde. Saímos de lá todos satisfeitos com um Wiko qualquer-coisa táctil, que me custou uns 60 euros. Veremos o grau de resistência do bicho nos próximos dias.

O telemóvel ainda não tem cartão SIM para fazer chamadas. A bem dizer da verdade, ainda não cumpre a sua função primária. Desde os atentados, é impossível comprar cartões pré-pagos na Bélgica sem deixar os contactos todos, inclusivamente a morada do vizinho e o cartão de cidadão da prima em 3.º grau. Ainda não sei muito bem como vou contornar esta regra, porque não quero que o miúdo receba chamadas comerciais para lhe impingirem sabe Deus o quê. Mas o Vasco não se atrapalha. Tinha medo que ele usasse o telemóvel para ver vídeos manhosos. Ou algo pior. Desde que o Diogo o apanhou a ver mulheres bastante desnudadas, depois de ter inserido inocentemente “Bond Girls” no motor de pesquisa, o controlo parental, belga e fraterno tornou-se muito mais apertado. Mas, não. Acho que nenhum de nós estava a contar com o pequeno toque de excentricidade deste meu filho pequeno. O Vasco tem passado os seus dias com o telemóvel atrás, como se fosse um velho transístor, a ouvir em looping Edith Piaf e France Gall. A modos que é isto…




quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Um dia, largamo-los no mundo

(e vemos que as coisas até correm bem)



O Diogo pediu-me que ligasse à gerente do restaurante onde trabalhou no Verão, a dizer que tinha chegado de Portugal e que estava disponível. Normalmente, tê-lo-ia obrigado a fazer o telefonema. Se é crescido para trabalhar, também é crescido para se desenrascar sozinho. Mas tive medo que não explicasse muito bem explicadinho que só podia trabalhar um dia por semana, em fins-de-semana alternados. Não é muito tempo, mas ele ainda só tem 15 anos e a prioridade são os estudos. Pensei que talvez não estivessem interessados num miúdo que pode trabalhar, no máximo, duas vezes por mês. E que quase nunca está disponível para trabalhar nas férias escolares, porque está em Portugal. Por isso, peguei no telefone (fingindo-me muito contrariada…).

A gerente ficou toda contente por eu ter ligado. Desfez-se em elogios ao Diogo. Que tinham ficado encantados com ele. Que tinha um filho que valia ouro. Um miúdo com “alegria de vida”. Que era muito trabalhador e voluntarioso. Que era agradável. Que toda a gente tinha gostado de trabalhar com o Diogo. Que era um miúdo que tinha espírito de iniciativa. Que era muito desenrascado. E inteligente. Que teriam sempre um lugar para ele e que adaptariam os horários à disponibilidade do Diogo. Com certeza que poderia recomeçar já a trabalhar.

Isto de criar filhos tem muito que se lhe diga. Até porque os resultados só começam a aparecer quando já é demasiado tarde para corrigir a trajectória. Dificilmente seremos os mesmos quando eles nascem e quando são adolescentes. Tanta coisa muda! Nós mudamos. A vida muda. O mundo muda. E nós vamo-nos adaptando o melhor que sabemos e podemos. Às vezes, gostaríamos de fazer melhor… mas não dá mesmo, por motivos vários. Às vezes, sentimos tanta culpa por coisa nenhuma. Pela nossa cabeça. Às vezes, somos atormentados por dúvidas. Não sabemos o que fazer. Avançamos e recuamos às apalpadelas. Não se nasce mãe, quem nasce são os filhos. E nós temos de ir aprendendo, aos poucos, à medida que exercemos. Não há curso, livros, sites, conselhos, que nos valham. Até o instinto nos trai, por momentos.

Aos poucos, começamos a notar que o nosso raio de influência diminui. Que deixam de ser tão permeáveis à educação que lhes queremos transmitir. Não sabemos bem como, nem quando, nem porquê. Mas é muito mais cedo do que um dia imaginámos. Ficam crescidos. Ainda não adultos. Longe disso. Mas crescidos. Percebemos que a estrutura está lá toda. O resto são retoques. E, depois, um dia, largamo-los no mundo. Vemos como se saem. Recebemos ecos de terceiros. Percebemos que estamos no bom caminho.

À tardinha, vi-o estender o cartão para pagar, com movimentos ainda meio atrapalhados de quem se inicia nestas lides. Comprou um computador em segunda mão. Mas era mesmo o que ele queria. Trabalhou para isso. Ficou feliz. Eu também. Às vezes, isto pode ser tão simples.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

10.º ano!


(onde se dá tempo ao tempo)


Filho grande andava com nervoso miudinho há dias. Não que a entrada no 10º ano seja uma coisa muito marcante, na Bélgica. Poucas diferenças há em relação ao ano anterior. Ou com o seguinte, diga-se de passagem. Não é preciso escolher área nenhuma, nem hipotecar o futuro por falta de maturidade. Como se fosse sinónimo de imaturidade não saber o que se quer fazer na vida aos 15 anos. Por acaso, se ainda estivéssemos em Portugal, a escolha do Diogo não seria problemática. É daqueles miúdos que sempre teve uma única paixão na vida. Mas a Criminologia por que tanto anseia acabaria por afastá-lo das Ciências e da Matemática. E eu – pessoa altamente avessa a tais matérias – acho que isso, sim… seria criminoso. Uma pessoa pode sempre aprender uma língua estrangeira mais tarde. Ou pôr-se a par dos clássicos da literatura. Agarrar numa mochila e partir à descoberta da geografia exacta da terra. Ler uns bons livros de história. O que uma pessoa dificilmente conseguirá fazer, na idade adulta, é pôr-se a resolver equações sozinha e fazer experiências num laboratório. Daí estar encantada por o ensino na Bélgica ainda ser muito tradicional e não haver cá grandes escolhas para ninguém. O Diogo limitou-se a optar por Ciências Sociais e por cinco horas semanais de Ciências, no ano passado. Sendo que esta última opção foi uma imposição nossa. Deu origem a uma avalanche de contestações e fui praticamente acusada de manter um regime ditatorial nesta casa. Sinceramente, não tive pejo nenhum em impor a minha vontade. Não me arrependi, agora é uma das disciplinas preferidas do filho crescido. Devo ser uma ditadora iluminada.

Filho grande andava com nervoso miudinho há dias, porque estava desejoso de voltar à escola. De rever os amigos. Os professores. Os espaços. De estudar. O Diogo adora a escola onde anda. E isto é o essencial, nestas idades. Quanto ao resto, há tempo.

sábado, 3 de setembro de 2016

Morte colectiva

(onde se subvaloriza o calor na Bélgica)


Esta semana temos cá uma visita muito especial: o meu sobrinho Pedro. Tem apenas três meses de diferença do Vasco, mas parece pai dele. E compensa com timidez o que o primo tem de extrovertido. Apesar de pouco se verem, são os melhores amigos. É delicioso vê-los juntos, num mundo meio estranho que é só deles. O Diogo hesita entre meter-se nas brincadeiras ou revirar os olhos. A velhota mais querida do mundo também veio e nem sabe para onde se há-de virar com tanto neto.

Antes de as visitas de Estado chegarem, mudámos as gaiolas todas da bicharada para a estufa do quintal. Só mesmo o Vasco é que consegue dormir com a barulheira nocturna daqueles animais no quarto. Eu ainda tentei argumentar que estava demasiado calor na estufa… mas o meu amor disse que as noites já eram bastante frias, que era melhor ficarem abrigados.

Nado e criado num apartamento em Cascais, a primeira coisa que o Pedro quis fazer, mal chegou a nossa casa, foi ver os bichos. E lá foram os dois a correr até à estufa… De onde saíram, segundos depois, aos gritos. Infelizmente, aconteceu uma desgraça. Uma morte colectiva. Os gerbilos, a porquinha Constança e o falso Mignon pareciam estar a dormir… um sono eterno, por assim dizer. O pouco calor que se faz sentir nesta terra deve ter sido elevado a um expoente exageradamente alto, durante a tarde.

O Vasco chorou muito, coitadinho. O Pedro ficou completamente atarantado, mais com o pranto do primo do que com as mortes, parece-me. O Diogo, que já não podia ver aquela bicharada toda, não pareceu ficar muito desgostado com a calamidade. Eu ia matando o Belga. A minha mãe olhava para nós e deve ter pensado que talvez fosse melhor apanhar o próximo avião de regresso ao lar, doce – e calmo – lar. O meu amor, com o seu pragmatismo habitual, agarrou numa pá e foi enterrar aquela malta toda.

À noite, fomos jantar ao turco da esquina. O Vasco e o Pedro riam a bandeiras despregadas, numa mesa à parte. O meu amor virou-se para a minha mãe e perguntou-lhe: “Como se diz aquele tempo depois da morte, quando se está muito triste?”. “Luto”, respondi. “Pois… acho que o Vasco já fez o luto”, comentou baixinho, com aquela sua pronúncia amorosa. A minha mãe e o Diogo desataram a rir. Eu pensei que o matava pela segunda vez.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

5.º Ano!



(mas felizmente continua na Primária)


Parece mentira, mas é verdade… a coisa pequena está no 5.º ano!!! Hoje, aqueles nove anos de gente pareceram-me mais gingões do que o habitual. Entrou com desenvoltura na escola e disse-me adeus com displicência, não fazendo caso dos quase 15 minutos que andei às voltas até conseguir estacionar o carro. Mas praticamente não passei do portão. Não posso dizer que tenha ficado triste, mas confesso que fiquei algo surpreendida. Filho pequeno sempre foi muito melado. Consegui recuperar a tempo de lhe dar um beijo rápido. Como se nada fosse. Nem um abraço, nem uma festinha. A vantagem de ser mãe de segunda leva é que uma pessoa já sabe quando chega a hora de se fazer discreta. E eu hoje percebi que chegou a hora de me fazer discreta. O Vasco cresceu. Pediu para começar a ir sozinho a pé para a escola. Fiz-lhe uma contraproposta: passar a vir sozinho. Excepto neste primeiro dia de aulas. O meu amor – que ainda este Verão gabava as alegrias de ir buscar o Vasco à escola e de vir a falar de assuntos altamente importantes o caminho todo, para deleite da namorada do amigo e terror absoluto do amigo – não estava preparado para ficar sem o ponto alto do seu dia. É o que dá ser marinheiro de primeira viagem. Ainda não sabe quando se fazer discreto. É preciso dar-lhe tempo.

O Vasco cresceu, mas felizmente poderá continuar a ser criança por mais dois anos. O ensino primário, na Bélgica, dura seis longos anos. Seis anos mais acompanhado, mais mimado, mais protegido. Seis anos numa escola pequenina, que tem apenas uma turma por ano. Seis anos longe das máquinas distribuidoras e com travessas cheias de fruta e legumes da época, onde se pode servir sempre que quiser. E ele quer muitas vezes. Seis anos com um professor em exclusivo (mais o professor auxiliar), que dá Francês, Matemática, Religião e Iniciação às Ciências, História e Geografia. Seis anos com parque infantil, trotinetes, bolas e jogos espalhados pelo recreio. Seis anos a aprender a ser “mais crescido”, porque os meninos pequeninos andam por ali e é preciso ter muito cuidado. Seis anos sem telemóveis e com brinquedos na mochila. Seis anos só com Inglês e Educação Física (mais a Natação). Seis anos a sair às 15h50. Seis anos a deixar o material todo na escola e a carregar apenas a pasta com os trabalhos de casa. Seis anos a brincar, apenas isso.

Tive muitas dúvidas quando inscrevi o Vasco em Saint-Joseph, há três anos atrás. Se não fosse o meu amor, possivelmente teria ido para uma escola comunitária, mais familiar. E laica. Não me arrependo da escolha. É verdade que começam o dia a rezar. Mas a seguir fazem meditação para acalmar o espírito. Gosto desta combinação. Também gosto que toda a gente saiba quem é o Vasco. Não é saber o nome, é saber que perde as luvas e os casacos e os gorros. Não é saber que está no 5.º ano, é saber que anda sempre com um livro atrás. Não é saber que não gosta de disputas, é saber que tenta sempre acabar com as guerras. Mesmo que para isso tenha de apanhar, quando se mete no meio. Não é saber que por vezes tem de faltar, é saber que é seguido em endocrinologia no CHU. E ortodontia. Não é saber que há dias em que tem de sair a correr, é saber que vai para o violino. E que também faz dança clássica. Mas que não quer que ninguém saiba. Não é saber que é estrangeiro, é saber que o português é a sua língua materna. E na escola do Vasco toda a gente sabe isto. É uma sorte que agradeço todos os dias. Hoje, quando me vim embora – mais discreta do que nunca – senti-me aliviada por o Vasco ter o privilégio de andar nesta escola. Por ter mais dois anos de Primária pela frente para continuar a ser criança. Simplesmente criança.