sexta-feira, 13 de março de 2015

Um gajo porreiro

(afinal, é tudo uma questão de perspectiva)


 
Conheço algumas histórias de divórcios. Na sua maioria, complicadas. Algumas bastante complicadas. Mirabolantes mesmo. Há dificuldades na separação propriamente dita, no resolver de coisas passadas, no lavar de roupa suja em público. Depois, na partilha dos bens, no acordo quanto à guarda dos filhos e no pagamento da pensão de alimentos. Na gestão da relação com as respectivas famílias. E no aparecimento de novas pessoas. Este processo implica sempre problemas mais ou menos graves. Mais ou menos duradouros e desgastantes. Problemas que, por vezes, acabam por se resolver. Ou nem por isso. Outras vezes, agravam-se.

Mas quando passo os olhos pela blogosfera, por mais estranho que pareça, só vejo histórias de sucesso. Estas relações são uma espécie de casas de revista, irreais de tão arrumadas e limpas. Intocáveis. Os ex-maridos nunca são ex-maridos, são “o pai dos meus filhos”. Uns gajos porreiros a quem se agradece tudo e mais um par de botas. Os melhores pais do mundo. Uns amigalhaços. Um orgulho. A melhor escolha que podiam ter feito. Tipos com os quais têm uma relação de sonho. O melhor exemplo de vida que podiam ter dado aos filhos. Trabalhadores incansáveis que põem a progenitura em primeiro lugar. Aliás, as crianças ficam sempre com as mães. Pai nenhum na blogosfera pede guardas partilhadas, porque o amor materno é sacrossanto. Mas estão presentes sempre que é preciso. Sempre que quiserem e os meninos pedirem. Depois do amor fica a ternura e a amizade construídas ao longo dos anos, coroadas pela magnífica descendência que os uniu para toda a eternidade e mais além. Gajos com os quais se pode sempre contar, desde um trabalho de última hora a uma saída para beber uns copos com os amigos. Gente fiável e da máxima confiança. Nem nunca há problemas de dinheiro. Que eles são homens para pagar de imediato a metade do lápis que o puto perdeu pela enésima vez na escola. Uns gajos porreiríssimos. Só não percebo por que raio de motivo se separaram, homens desses é conservá-los porque valem ouro.

Bem vistas as coisas, deve ser tudo uma questão de perspectiva. Só pode. De escolhermos a perspectiva que nos for mais favorável. Afinal de contas, eu também tenho um gajo porreiro na minha vida. Se calhar, não lhe dou é o devido valor. A seguir aos meus pais, foi a pessoa que mais contribuiu para o meu crescimento. Sem ele, nunca me teria transformado na pessoa que hoje sou. Às vezes, é preciso obrigarem-nos a bater mesmo no fundo. No fundo do fundo, no nível mais básico do nosso amor-próprio, para virmos ao de cima respirar. Agora sei que me podem tirar tudo. Eu consigo reunir os estilhaços e recomeçar do zero. Consigo perceber que a vida que ficou para trás não era vida para ninguém e que ainda bem que terminou, por muito que isso me tivesse custado naquele momento. Consigo não só perdoar, como sentir-me profundamente agradecida. E dar os créditos a quem de direito.

Claro que as coisas podiam ter ficado por aqui, já seria suficiente. Mas o gajo porreiro foi mais longe. É verdade que a pessoa que eu era, há quase três anos atrás, era apenas um esboço. Um rascunho vago e fluido de uma Rita que tinha sofrido e tal, mas que estava a conseguir reconstruir-se aos poucos. Portanto, o gajo porreiríssimo passou ao ataque. Ofendeu-me e agrediu-me à frente dos seres que mais amo. Acusou-me de mentiras, meteu processos e queixas-crime. Denigriu-me e incitou a que me denigrissem. E com isso obrigou-me a tornar-me ainda mais forte. Sólida. Quando ganhei a minha primeira batalha judicial, este ser fantástico decidiu atacar o lado prático da minha vida. Aí, vacilei. Mas descobri que, contrariamente ao que pensava, não estou só. Tenho uma família que me serve de escudo e um amor que me protege como uma armadura. Esta era, sem dúvida, a lição que me faltava aprender: não é vergonha nenhuma admitir que sozinhos não conseguimos, que precisamos de ajuda. E, mais uma vez, lhe agradeci. Fiquei ainda mais forte, percebi que estou rodeada de pessoas que me querem bem. Percebi que há quem acredite em mim e me admire. E isso faz cócegas na barriga. O mais engraçado é que – ajudas pontuais à parte, vindas das pessoas habituais e das mais insuspeitas – percebi que, afinal, consigo sustentar sozinha uma família. Nós. Eu chego para nós. Nunca pensei que isso fosse possível. O gajo porreiro também nunca deve ter pensado. Eu chego para nós graças ao meu trabalho. É muito bom.

Infelizmente, o disco continuou em looping. Um discurso repetitivo e contínuo que tem como único objectivo minar a minha confiança e auto-estima. Que sou louca, desequilibrada, instável. Histérica e descontrolada. Principalmente, mentirosa. Desfasada da realidade. Ladra. E muito, muito, má. Maldosa mesmo. Sou egocêntrica e ponho os meus interesses em primeiro lugar. Por isso, sou má mãe e faço mal aos meus filhos. Aliás, tenho uma relação péssima com o mais velho, um adolescente de risco. À beira da delinquência. E o pequeno para lá caminha. A culpa é minha, claro. Que os obrigo a viver numa ditadura. Que não estou a par das novas tecnologias. Afinal, transformei-me numa campónia. Talvez porque sou pouco inteligente. A minha vida é uma fraude e vivo no país das maravilhas. Eu e a Alice. Mais a Rainha de Copas e o Coelho. Todos a passar fome num país estrangeiro. Uma autêntica vergonha. Porque ser emigrante é uma vergonha. Cortem-lhes a cabeça! Falar uma língua estrangeira é esquecer o país que nos viu nascer. É ser fraco. Como se as vacas e os pedófilos que povoam este reino fossem melhores… Um país sem história, nem gente conhecida. Viver aqui é degradante. Humilhante. O melhor seria voltar. Arrepiar caminho e cingir-me à vida que outros escolheram viver. Porque eu mereço ser apenas espectadora, nunca actriz da minha própria existência.

Mas, caramba, parece impossível… a Justiça não me obriga a voltar. A falta de dinheiro não me obriga a voltar. Isto sim, é inadmissível. A solidão não me obriga a voltar. Chora para aí, minha parva. E a doença? Será que a doença me obriga a voltar? Hum… parece que também não. Impensável. Acima de tudo, a minha cabeça não me obriga a voltar. Não desisto. Rochedo que não vacila perante a tempestade. Tempestade, não… chuva miudinha, chuva molha-tolos. Nunca poderei agradecer suficientemente ao gajo porreiro que lança desafio atrás de desafio, sem nunca perceber que, às tantas, já funcionam como endomorfinas.

É verdade que o corpo acusou o cansaço destes anos de luta aguerrida. O filho mais velho também. Porque o gajo porreiro destila diariamente a sua mensagem, tipo seita. Usa o poderio económico para corromper. As novas tecnologias para seduzir. O laxismo educativo para aliciar. Sem outra solução, o gajo porreiro decidiu dar o golpe derradeiro e atacou o meu âmago. E o golpe foi duro. Não se separam irmãos. Nunca. Pedi tréguas, recebi novos ataques. Tipo milícia. Ataca e foge. Constante, como uma moinha que não me larga. Que me consome. Mas que não me mata. Porque agora sei quem sou, sei do que sou capaz. Conheço a minha força e a minha capacidade de resistência. De resiliência. Tenho um sistema de apoio bem estabelecido que vem de imediato em meu auxílio. Tenho novas memórias felizes que conseguem dissipar dias menos bons. Acredito profundamente na existência que estou a construir. Contrariamente ao gajo porreiro, eu consigo dar dois passos atrás e um à frente sem me preocupar.
 
A força telúrica que me faz avançar no caminho que decidi trilhar, com os pés bem assentes na terra, também me permite ter os olhos postos no céu. Sim, eu vivo no país das maravilhas. Sim, eu sou louca. Um bocadinho louca. Saudavelmente louca. Porque isso me permite ter coragem para enfrentar as adversidades. Os obstáculos que vão aparecendo. Porque me deixa perceber que, apesar de tudo, mantenho-me tal como sempre fui, fiel a mim mesma. À ética de vida que recebi dos meus pais. Não ataco, não faço mal, não ofendo. Tento nunca me deixar mover pela vingança. Não sou parva, mas recuso-me a deixar-me consumir pela raiva e a transformar-me numa pessoa negra que não me corresponde. A minha força advém exactamente do meu auto-conhecimento. As fraquezas e as forças. Os defeitos e as qualidades. A alegria de vida. A capacidade de sonhar, de me maravilhar, de me surpreender. Não controlo os acontecimentos, mas posso defender-me. Não controlo as pessoas que me querem mal, mas sei rodear-me de pessoas que me querem bem. Nem sempre assim foi e, às vezes, ainda tendo a vacilar. Mas não faz mal. Dois passos atrás e um à frente, lá vou trilhando o meu próprio caminho.

A vida dá e tira. Mas eu continuo a acreditar que, se virmos bem, a vida dá sempre mais do que tira. É só preciso esperar pelo momento certo e ter os olhos bem abertos. Postos no lado bom da vida. O gajo porreiro permitiu-me descobrir quem sou, conhecer as minhas capacidades, refazer a minha vida, encontrar e reencontrar imensas pessoas que me enriqueceram. Forçou-me a procurar soluções e a encontrar novos caminhos. Forças que nunca pensei ter. Uma paz que ainda me surpreende. Uma linha condutora. Uma ética de que muito me orgulho. E isto – tudo isto – este conjunto de características que fui aos poucos descobrindo, fizeram com que o meu amor se apaixonasse por mim. Pela pessoa que sou. “Gosto da pessoa que és”, diz-me ele muitas vezes. Eu também, eu também gosto da pessoa que sou. Aprendi a gostar. A aceitar. A lutar. A mudar, se preciso for.

Daqui por uns dias, saberei o resultado de mais um ataque do gajo porreiro. E estou tranquila. Serena, como nunca pensei ser possível. A paz, finalmente a paz que procurava. Tardou, mas afinal sempre esteve dentro de mim. Só precisava de perceber que, seja qual for a nova direcção, cabe-me a mim – e apenas a mim – decidir como vou vivê-la. Seja qual for o resultado, a minha decisão mantém-se. Não vou retroceder. Acredito na vida que estou a construir para a minha família. Sei que somos felizes. A guerra não vai terminar aqui, sei-o agora. Custou muito a aceitar, mas já percebi que ainda me esperam muitos anos de longas batalhas. Isto foi para mim a parte mais difícil de aceitar. Não faz mal, hei-de ultrapassá-las todas, uma a uma. O túnel pode ser mais longo do que o previsto, mas há uma luz constante ao longe. Gente para me acompanhar no percurso. Recursos que me permitirão chegar lá. Paz de espírito para enfrentar isto. Até há – pasme-se – uma certa gratidão por ter alguém sempre atrás de mim que me obriga a ultrapassar-me a mim mesma. A superar-me. A transformar-me numa pessoa melhor, mais forte, mais completa. A dar valor à vida que consegui reconstruir. Principalmente, a dar valor aos filhos que eu dava como adquiridos. Às vezes, damos tudo como adquirido e deixamos de lutar. Eu aceitei que terei de lutar o dobro por aquilo que quero, porque terei sempre o gajo porreiro a minar-me o caminho. Mas, hoje, encaro os meus rapazes com outros olhos. É um privilégio ser mãe deles. É um privilégio imenso tê-los ao meu lado, assistir ao seu crescimento. Eles merecem que trave todas as lutas do mundo com um sorriso estampado no rosto. E em paz. Se não exterior, pelo menos, interior. Suponho que deve ser por isso que lhe chamam paz de espírito…

12 comentários:

  1. Para a blogosfera, em geral, já fazia muita falta um post assim.

    Para ti, em particular, renovo apenas a minha admiração por todas as tuas conquistas. Coragem, Rita. E obrigada por seres uma inspiração.

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    1. Ohhhh... obrigada, Gralha. Não acredito que seja inspiração para ninguém. Tento apenas contar uma vida que, por vezes, também tem as suas partes mais "cruas".

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  2. Não sei porquê mas os posts deste blog sobre este assunto mexem sempre comigo. Nunca passei por nada assim mas sinto-me sempre indignada.
    Uma vez comentei mas ao publicar perdeu-se o texto e não voltei a escrever. Já agora aproveito e conto que no dia em que descobri este blog o li até ao fim... Devorei post atrás de post. Podia dar um livro e tudo ;)
    Para os dias que se seguem, muita força!

    Helena

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  3. Com toda essa coragem, determinação e amor aos seus filhos, é invencível. O seu post convenceu-me disso. Agora que encontrou o seu centro, nada vai abalá-la.
    Um beijinho

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  4. O gajo porreiro deve estar bem lixado, porque pensou que com um sopro te derrubava e vai-se a ver os teus alicerces são de tijolo!! Bem feita! E palminhas para a mãe fantástica que és. Estou a torcer por ti!
    :)

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    1. Obrigada, Ana. Pois... é tipo a casa de tijolo dos três porquinhos! :)

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  5. Às vezes, penso que estarmos longe ajuda muito, Paula... Beijinhos.

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  6. Uau!
    Já te admirava antes, agora muito mais!!

    Pena que tenha sido preciso esse gajo porreiro na tua vida, mas o principal está em ti e nos teus rapazes!

    Beijinhos, guerreira!

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  7. O post é um bom post ;-)

    E chamar "gajo porreiro" ao que eu chamaria outra coisa, parece-me elegante. E percebe-se na mesma.

    Agora, agradecer ao "gajo porreiro" por todas as "porreirices" que ele te faz (bem como aos filhos), parece-me um bocado exagerado! Faz-me lembrar os tipos que defendem o "quanto pior melhor" - por exemplo, os que achavam que era melhor o Salazar que o Caetano, pois com o primeiro as coisas eram muito piores e ajudavam à "consciencialização das massas" (consciencialização essa, que nunca deu para eu ver...).
    Ou os que defendem que "o que não nos mata, faz-nos mais fortes". O problema é que às vezes mata mesmo; e mesmo que não mate, desgasta...

    É certo (e eu sei isso muito bem, embora eu só num caso tenha queixas - e não é no teu; mas com 20 anos era muito ingénuo, e na altura nem reconheci a “malvadez”, nem tinha ainda percebido que a característica mais importante que tem de se procurar/identificar antes de se fazer um filho com alguém, é a qualidade dele(a), quando passar, e se passar, a ser ex-cônjuge!) que um tipo nunca se consegue divorciar completamente de uma pessoa com quem tem filhos, e que, mais tarde, tem de se ver no casamento dos filhos, nos anos dos netos, etc. Mas, daí a agradecer as mal-feitorias, vai uma grande distância.

    E no caso do teu "gajo porreiro" eu, nesses eventos sociais em que tiveres de o ver, sugiro que vás sempre acompanhada por um polícia fardado!

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  8. Ora, afinal sempre percebeste! Uma coisa pode querer dizer outra, completamente diferente. E um agradecimento pode sempre ser irónico, certo? Mesmo nesse caso, há limites. Eu agradeci ironicamente o que me foi feito a mim. O que foi feito aos meus filhos não tem perdão, nem ironia possível...

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