(e
os meus três pilares)
Faz
este mês dois anos que cheguei à Bélgica disposta a reconstruir a minha vida.
Começámos por uma casinha pequenina, numa aldeola perdida no meio das Ardenas.
O único sítio onde consegui que me alugassem casa, a bem dizer da verdade. Os
rapazes quiseram pintar as paredes de azul-turquesa. Eu preguei um mapa-mundo
enorme na sala para dar asas à imaginação. E comíamos no chão, em loiça de
plástico. Há dois anos atrás.
A
escola começou, eu arranjei um trabalho. E uma mesa. Eles aprenderam a falar francês.
Eu apaixonei-me perdidamente. A casa foi-se compondo. Passou-se um ano.
A
escola recomeçou, o Diogo entrou para o secundário. Eu arranjei outro trabalho.
Comprei um carro. Viajámos. Mudámos de casa. Plantámos uma árvore. Passou-se
mais um ano.
Esta
nova vida que inventámos tem-se feito aos bocadinhos. Um dia depois do outro.
Umas vezes mais depressa, outras mais devagar. Dois passos à frente e um atrás.
Nem sempre é fácil. Mas tem sido uma aventura que eu não trocava por nada deste
mundo. Sinto que, pela primeira vez na vida, sou mais eu. Esta sou eu,
finalmente. E, quando páro para pensar, vejo que essa foi a maior surpresa que me
estava reservada. Porque uma coisa é sabermos que vamos recomeçar a nossa vida
do zero, outra é percebermos que também nós nos vamos reconstruindo ao longo do
processo. Que crescemos. Que nos transformamos. Dois anos depois, não é só a
minha vida que é completamente diferente. Eu própria sou hoje uma pessoa
diferente. Ninguém muda da noite para o dia, a meio do percurso. O que muda é a
nossa forma de encarar a vida. A forma como nos relacionamos com as pessoas. O
modo como enfrentamos os desafios, os problemas. À medida que ia estabelecendo as
bases de uma outra existência, fui também mudando conscientemente a minha forma
de estar na vida. Consolidei-me. Pacifiquei-me. Amadureci. Ganhei outra
segurança e dimensão. Uma espécie de força interior, uma bússola que me vai mostrando
o caminho. É como se as coisas à minha volta estivessem finalmente no lugar
certo.
Por
estranho que possa parecer, estou hoje muito mais perto da pessoa que eu era no
final da minha adolescência, antes de ter tropeçado na criatura errada. O tempo
que decorreu desde então até agora, foi apenas um hiato. Aos poucos, aquilo que
é verdadeiramente importante para mim tem vindo à superfície. Aquela parte
cristalizada da minha personalidade que esteve tanto tempo adormecida,
subjugada, latente, tem ganho cada vez mais importância. Aquela que eu sou. Sem
grandes certezas, sem grandes espertezas. Simplesmente eu. A educação que
recebi, os valores que me foram transmitidos, a ética de vida que sempre me
norteou, estão hoje mais nítidos do que nunca. Pedra basilar da pessoa que sou.
O passado onde me revejo. Nunca estive tão longe da minha família e nunca me
senti tão perto. A minha estrela polar.
E,
depois, há a pessoa que tenho ao meu lado. Não à frente, não atrás. Exactamente
ao lado. Em pé de igualdade. Descobri que há pessoas que têm a capacidade de nos
iluminar. Literalmente de nos fazer brilhar, resplandecer. Porque conseguem
potenciar o que temos de melhor. Porque temos vontade de nos tornarmos melhores,
só para estarmos à altura do amor que sentem por nós. Não se trata de sermos muito
parecidos ou de termos muitas coisas em comum. Trata-se apenas de partilharmos uma
certa forma de ser e de estar na vida, regida pelos mesmos princípios. De
cuidarmos um do outro. De estarmos lá um para o outro, aconteça o que
acontecer. A concha e o âmago, numa espécie de simbiose em que um consegue ler
na alma do outro e sentir o que o outro sente. Unidos por um amor, por uma
amizade, por um respeito imensos. Pontuados de admiração. E de risos. Sem
promessas vãs de amor eterno, sinais exteriores ou papéis. Um amor conjugado no
presente. Tapeçaria de Penélope, que se faz e desfaz incessantemente e, assim,
se vai prolongando dia após dia.
Por
fim, o mais importante. O que não tem palavras e é pura poesia. O que apenas se sente. O amor imenso,
infinito, incondicional. Visceral. O primeiro e último pensamento do dia. A
razão de tudo o resto. Força motriz. Um filho grande que entrou na fase mais engraçada
e complexa da sua existência. Um filho pequeno que ainda vive deliciosamente
ancorado num mundo mágico. Filhos que não são meus filhos, são um empréstimo da
vida. O futuro. Tela branca pintada de possibilidades infinitas. Reflexo
daquilo que fui, daquilo que sou. Do que ainda me falta viver. Janela aberta para o mundo.
A pessoa que hoje sou depende destes três pilares que me sustêm: o meu passado, o meu
presente e o meu futuro. Esta é a minha força que me deixa vacilar, mas nunca
me deixará cair.
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