quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Mel

(onde nos aquecemos numa noite gelada)



Ontem, acabei de traduzir já passava das 2h da manhã e ia arrastar-me até à cama. O meu amor não está. Ninguém me obrigou a fazer a pausa habitual para ver uma série, antes de dormir. Detesto desligar o computador e ir directamente para cima, com as palavras a trotar-me na cabeça. Vêm-me sempre à memória expressões melhores do que as utilizadas (nisto, a tradução e legendagem é preferível, não há cá margem para grandes reflexões). E, depois, não há meio de adormecer… ou, se adormeço, caio num sono cansado de palavras intrometidas.

Olhei uma última vez para a fotografia que tenho no ambiente de trabalho, antes de desligar o computador. É um daqueles tesourinhos que o Facebook recordou, no outro dia. O Diogo mascarado de Harry Potter e, o Vasco, de canguru. Minúsculos. Há uma vida atrás. Nisto reparei no PDF que a Melissa me enviou. Descarreguei-o porque queria lê-lo, mal tivesse um bocadinho. Talvez pudesse ler só as primeiras páginas do guião, para chamar o sono descansado (o sono cansado, já eu tinha).

Tinha contado ao meu amor que a minha amiga Melissa ficou em segundo lugar, no concurso “Guiões 2016”. Mostrei-lhe a fotografia, orgulhosa. Não porque a Melissa tivesse ganho um prémio ou estivesse muito bonita, em cima daquele palco. (Estava lindíssima!) Mas porque brilhava. A Mel tem andado a combater alguns fantasmas interiores e o resultado está à vista. (Já disse que estava linda?). Lembrei-me da canção do Jorge Palma:

Sentei à minha mesa
os meus demónios interiores
falei-lhes com franqueza
dos meus piores temores
(…)
E no fim, já bem bebidos
demos abraços fraternos
saíram de mansinho
aos primeiros alvores
de copos bem erguidos
brindámos aos infernos
fizeram-se ao caminho
sem mágoas nem rancores

Quando lhe contei que tinha pedido à Melissa para me enviar o guião, o meu amor perguntou-me se não tinha medo de não gostar do trabalho. E, depois, o que lhe diria? Nunca tal me passou pela cabeça. Ainda bem. Uma página deu lugar a outra. E a mais outra. Umas quantas... Apeteceu-me um café, fui fazer um chá. Continuei a leitura, desbravando caminho pela história, página após página. Fiquei presa até ao fim, madrugada adentro. Dizem que foi a noite mais fria deste Janeiro gélido. Estavam -15ºC lá fora. Perfeito para ler “A Aldeia e o Inverno”. Escrever bem em poucas páginas, não é para qualquer um. A criação de mundos, no sentido literário do termo, exige tempo e espaço ficcionais. A Mel conseguiu edificar e destruir um mundo em menos de cem páginas. E isto é uma façanha que não está mesmo ao alcance de qualquer um.

Gostei tanto, tanto, tanto! Gostei dos saltos temporais, que se vão estratificando. Gostei do huis clos espacial claustrofóbico, que se vai tornando cada vez mais fechado. A par com a mentalidade alucinada da aldeia. Gostei muito do regionalismo, o real e o imaginado. A lenda que toma forma. Gostei da construção em crescendo das diferentes personagens. Gostei da ausência de adjuvantes. Da entidade colectiva das crianças que funciona como coro grego. E da intriga que se adensa. O nervoso miudinho vai-se instalando, à medida que o desfecho trágico se começa a desenhar. Gostei especialmente de me sentir enganada. Porque o nosso primeiro instinto é unirmo-nos à personagem principal contra a crendice bacoca. Mariana é pragmática: nunca tenta perceber o porquê das coisas, apenas quer resolvê-las para ter trabalho e continuar a viver na aldeia. No fim, percebemos que sim… que havia mesmo algo surreal como pano de fundo, que nos escapou. Mas pergunto-me se não será sempre assim, na vida real.

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