(onde o amor irrompe nas obrigações parentais quotidianas)
Um
dos nossos maiores desafios, enquanto casal, é não nos deixarmos engolir pela
função parental. Suponho que esta seja a maior dificuldade de todos os pais,
numa época em que os filhos estão, mais do que nunca, no centro da preocupação
das famílias. Nunca se viveu tanto em função das crianças como hoje. Do
bem-estar das crianças, da felicidade das crianças, da educação das crianças,
da saúde das crianças, do futuro das crianças. Vivemos atormentados de dúvidas,
inseguros. Confiamos nos pediatras e nos “especialistas” como se fossem deuses.
Devoramos livros que encerram em si a sabedoria universal que – sabe-se lá como
– parece ter-se perdido algures na evolução da espécie parental. Livros para
aprender a adormecer bebés. Para lidar melhor com a crise dos dois anos. Para
evitar problemas de escolarização. Para aprender a comunicar com os pré-adolescentes.
Para conseguirmos ser pais divorciados de filhos que não se divorciam. Livros
sobre o mindfulness e a psicologia
positiva. Livros sobre a alimentação saudável. E acumulamos workshops sobre os mais variados temas,
na esperança de aprender a sermos melhores pais em apenas duas horas. Sem
esquecer obviamente os ateliers para
as crianças. Porque é preciso estimulá-las o mais precocemente possível. Porque
é impossível crescer de forma saudável sem a psicomotricidade, a música para
bebés, a introdução ao mundo aquático, a imersão linguística precoce e o despertar
artístico.
Dir-me-ão
que os pais fazem este esforço sobre-humano apenas durante a infância da progenitura.
Mas é uma falácia. As necessidades dos filhos mudam com a idade, não desaparecem.
Os nossos medos e inseguranças também não. Muitas vezes gostava de poder partilhar
os nossos rapazes com a tal aldeia que o provérbio africano diz tão
sensatamente ser preciso para educar uma criança. A família está longe, não há
mais ninguém para dar colo. E não se pense que um pré-adolescente e um
adolescente precisam de menos colo do que um bebé. Precisam é de um colo que se
faça discreto. E isto é uma arte. Ensiná-los a voar exige outras competências.
A parentalidade é uma aprendizagem constante. Exige tempo, presença,
disponibilidade. Exige um constante questionamento. E a necessária
flexibilidade. Nesta fase, os pais têm de mostrar uma capacidade de adaptação
sem precedentes. No outro dia, dei por mim na mesma divisão que o Diogo, a
namorada e a mãe da namorada, em amena cavaqueira. Como se nada fosse. E eu só
conseguia pensar: “Como diabo chegámos aqui?!”. Uma noite destas, estávamos os
dois em frente ao computador, a ver uma escola secundária para o Vasco. Esta tinha
estúdio de música e duas salas de dança. E eu perguntei, com os olhos a brilhar:
“É isto, não é?”. O meu amor respondeu entusiasticamente que sim, sem dúvida,
aquela era a escola ideal para o Vasco. “Vamos ter de mudar tudo…”, comentou. “Temos
um ano e meio”, respondi. O tempo voou. Como diabo chegámos aqui? Quanto de
mim, de nós, não demos para chegar até aqui?
Não
acredito que um casal precise obrigatoriamente de ter filhos para se tornar
família. A família pode assumir tantas formas! Mas duvido que consiga
sobreviver se a parentalidade não for partilhada. Ou seja, caso existam
crianças – comuns ao casal, de ambos os lados ou apenas de um – essa experiência
tem de ser exercida a dois. Exactamente na mesma medida. Com o mesmo grau de
compromisso. De amor. De responsabilidade. Aliás, acho que é por esse motivo que muitos
casais com filhos pequenos acabam por se separar, quando nada o faria prever à
partida. Porque não souberam dar esse passo conjunto, enquanto casal. É
impossível ser pai/mãe “solteiro” morando na mesma casa. Seja o outro o pai/mãe
da criança ou não. Sublinho, “na mesma casa”. Penso que é possível manter uma relação
amorosa estável, com crianças pelo meio, em que os dois membros do casal não
tenham o mesmo investimento parental desde que não se partilhe casa. Foi o que
nós fizemos durante quase dois anos e funcionou na perfeição.
Quando
viemos viver para Vielsalm, as coisas tiveram de mudar. E confesso que me
custou horrores. Uma pessoa habitua-se a ser “mãe solteira” e, depois, é
difícil partilhar a parentalidade. É difícil partilhar os filhos. A verdade é
que, desde que eles nasceram, fui sempre eu que tomei todas as decisões, sem
deixar margem de manobra a mais ninguém. Uma vez que o outro lado se contentou com um espaço subsidiário, fui crescendo
numa maternidade profundamente solitária. Não me entendam mal, a solidão era
voluntária e profundamente egoísta, vejo-o agora. Porque me permitiu fazer
exactamente o que sempre quis. Inclusivamente vir viver para a Bélgica com os
rapazes. O problema ocorreu quando me deparei com outro homem que não aceitou um
papel meramente auxiliar. Que percebeu que a única forma de me ter por inteiro era
tomar de assalto a minha exclusividade materna. E partilhou medos e
inseguranças e tempo e disponibilidade e presença. O meu amor ensinou-me que é
mais fácil dividir a responsabilidade do que carregar o mundo nos ombros. E, por
isso, estar-lhe-ei sempre imensamente grata. Porque os rapazes ficaram a ganhar.
Não que a nossa visão das coisas seja muito diferente. Que me lembre, nunca tivemos
uma única discussão sobre os rapazes. As nossas opiniões são quase sempre
convergentes. E, quando há divergências, a razão costuma estar do lado dele. Que
tem uma visão da parentalidade mais livre e distanciada, logo mais isenta. Mais
sã. O meu amor obriga-me a manter um pé em terra, não me deixa engolir pela
maternidade. Não nos deixa engolir pela parentalidade.
Ontem,
depois de irmos levar e buscar o Vasco de manhã ao ballet, levámo-lo aos anos
de um amigo, onde foi convidado a passar a noite. A seguir, foi preciso levar o
Diogo ao trabalho. E ir buscá-lo às 22h30. Uso um plural impessoal, mas foi o
meu amor que fez de motorista em todas as deslocações dos principezinhos. Eu
fiquei a traduzir furiosamente. Estava decidida a livrar-me da minha quota
diária de páginas traduzidas. Consegui. O resto da tarde foi só para nós. Não
consigo explicar a alegria que sentimos por sabermos que as oito horas
seguintes seriam apenas nossas. Sem eles. Sem obrigações. Almoçámos a ver a
nossa nova série de eleição. Fizemos aquelas coisas que os adultos gostam de
fazer quando se apanham sozinhos. E dormimos uma sesta. Demos um passeio
pequenino, apesar do frio. Tomámos um banho demorado. Conversámos muito. E
voltamos a fazer aquelas coisas que os adultos gostam de fazer quando se
apanham sozinhos. Decidimos jantar frites,
enquanto víamos mais um episódio. E abusámos na maionese. Não lavámos a loiça.
Preferimos ver mais um episódio. Soube tão, mas tão bem! O meu amor passou o
dia com um sorriso na cara. E eu enrosquei-me nele vezes sem conta. Exprimimos
em voz alta a felicidade que sentíamos. Repetimos, sem vergonha, que estes
momentos a dois são tão importantes como todos os outros que dedicamos exclusivamente
aos rapazes. Se não cultivarmos o amor que nos une, o resto não faz sentido. Nada
faz sentido.
Somos
quatro. Os rapazes estão, indubitavelmente, em primeiro lugar na nossa vida. Nós
sabemos isso, eles sabem isso. As prioridades estão muito claras na nossa
família. A magia está em continuar a criar bolhas espácio-temporais de amor
onde nos possamos reencontrar a dois. Pode não ser socialmente correcto
admiti-lo, mas a verdade é que os filhos são paisfágicos. Cabe-nos a nós não transgredir. Não deixar que a
sociedade nos faça sentir culpados por nem sequer tentarmos ser pais perfeitos.
Somos os pais que conseguimos ser. Mais livro, menos livro. Mais actividade,
menos actividade. Mais coerência, menos coerência. Para além de advogarmos o
direito à imperfeição parental, advogamos o direito a sermos um casal que se
ama e que cuida ferozmente desse amor. Porque sem isso, a família que estamos a construir deixa de fazer sentido.
Boa noite, Rita! Este seu post dava tanto jeito a alguns jovens casais que eu tenho visto a formarem -se, cheios de certezas sobre a educação dos seus rebentos quando estes nascem mas que desaparecem tão depressa quanto cresce o impulso de os entregar "a tempo inteiro" aos avós! O difícil é mesmo continuar como casal à medida que as noites mal passadas se sucedem ou que decisões sobre escolhas de escolas têm que ser tomadas. E os horários de trabalho em Portugal ajudam a devorar as relações, não interessa quantos livros de auto ajuda se consultaram...Chegar ao ponto certo de equilíbrio entre os elementos de uma "tribo" é uma carga de trabalhos, por isso eu recomendaria o "consumo" destas linhas, não como um guia de instruções mas como um relato do que é chegar a um presente sempre de porta aberta para outros tempos em mudança, já com um sem número de certezas já adquiridas e não facilmente passíveis de abdicar ...Um grande abraço!
ResponderEliminarAcho que à segunda isto é muito mais fácil, Mariana. Sabemos os erros que cometemos, estamos mais atentos às armadilhas da vida. E a idade também já é outra... :)
EliminarBeijinho grande.