(quando a amizade se sobrepõe à vontade
de dizer “Eu bem te avisei”)
Pouco
depois de chegar a Malempré, bateu-me à porta uma vizinha com um prato de
gnocchi na mão para nos dar as boas-vindas. Passados uns dias, retribuí com
uma travessa de bacalhau com natas. E nunca mais nos largámos. Tornámo-nos
amigas inseparáveis, apesar de os nossos filhos nem sempre se darem bem. A
Christine fez mais por nós do que qualquer outra pessoa já tinha feito na minha
vida. Tirou cobertores da cama dos filhos para dar aos meus, que não estavam
habituados a estes invernos rigorosos. Sinceramente, não sei se eu seria capaz
de semelhante gesto.
É
daquelas pessoas que dá sem pedir nada em troca. E até se esquece. Hoje estava
a fazer torradas e pus-me a jeito para apanhar o pão no ar. Diz-me ela a rir:
“Olha, também tive uma torradeira dessas que mandava torradas para a lua!”. Eu
respondi que aquela era a torradeira
dela. Já não se lembrava. Tal como já não se deve lembrar de ter andado a
bisbilhotar os meus armários a ver o que nos faltava, de mandar roupa e calçado
para o Diogo, de ter desencantado um aspirador sabe Deus onde, de todas as
vezes que apareceu aqui em casa de surpresa, quando eles estavam em Portugal,
para me obrigar a sair da cama e comer, e das muitas horas que perdeu a tratar
de burocracias comigo. Somos amigas há apenas um ano e meio, mas sinto que a
conheço desde sempre. Estive ao lado dela nas dores crónicas, numa operação
delicada à coluna, na recuperação, numa separação dolorosa, na procura de
emprego e no início de um novo amor. Por isso, quando o príncipe encantado finalmente
apareceu, mostrei-me desconfiada. E quando se revelou um pulha da pior espécie,
tive vontade de matá-lo.
Tudo
começou no dia do desfile de Halloween. À tarde, a Christine mandou-me uma
mensagem a perguntar se a podia levar ao hospital, porque não se estava a
sentir bem. Quando me estava a preparar para sair, manda-me uma nova mensagem a
dizer que, afinal, o colega que andava atrás dela há semanas já estava a
caminho. Levou-a ao hospital, trouxe-a de volta, ajudou os filhos dela a
fazerem os trabalhos de casa, fez-lhes o jantar e nunca mais se foi embora.
Aliás, foi… para ir buscar os seus parcos pertences e assentar arraiais
definitivamente.
Os
tempos seguintes foram de ramboia como nunca se viu naquela casa: saídas,
restaurantes, festas, passeios, bailaricos, idas ao cinema e às compras. Tudo
acompanhado por uma constante boa-disposição e gargalhadas. Os miúdos andavam
absolutamente encantados com o “padrasto”, que os cobria de prendas. Que ia
buscá-los à escola, ajudava a estudar e ainda jogava Playstation nos
tempos livres. A Christine andava nas nuvens, qual princesa. Não podia pôr os olhos em
cima de nada, que ele oferecia-lhe de imediato. Os seus desejos eram ordens. O
mínimo suspiro era satisfeito. Além disso, o príncipe encantado
também era uma verdadeira fada do lar multifacetada: trocava as pastilhas do
carro, cozinhava, dava um jeito na torneira que pingava, aspirava a casa… Não
era o cúmulo da sapiência – nem da beleza, diga-se em abono da verdade – mas
compensava isso com uma ternura imensa na forma como a tratava, na dedicação
aos miúdos, na ajuda sempre pronta e no riso fácil. E, apesar da minha
desconfiança inicial nunca ter desaparecido, comecei a pensar que o homem estava
mesmo apaixonado.
Dada
a nossa amizade tão estreita, é evidente que esta alegre personagem me entrou
pela vida adentro sem pedir licença. Tentei descrevê-lo ao meu amor por e-mail,
apontado aspectos negativos e positivos. Fiz um esforço para ser simpática.
Deixei antever a minha satisfação por ver a Christine tão feliz e a dúvida
insidiosa de que talvez aquilo estivesse a avançar depressa demais. Pelos
vistos, fui mesmo simpática na descrição. Uns tempos depois, o meu amor teve
oportunidade de conhecer o príncipe encantado e ficou de boca aberta.
Literalmente de boca aberta. Eu estava perdida de riso. Quando o vendaval
passou – ou seja, quando o alegre casalinho se foi embora – o meu amor disse ter
descoberto um aspecto escondido da minha personalidade: eu era extremamente
meiga a descrever energúmenos.
A
verdade é que mantive o meu cepticismo para mim até a coisa descambar
completamente. Em pouco mais de um mês, já o príncipe encantado tinha pedido a
minha amiga em casamento. Pior, já lhe tinha pedido para terem um filho. Para ontem.
E, como se isso não fosse suficiente, eu fui convidada para madrinha. Intimada
a desencantar um vestido e sapatos de salto alto até ao Verão. Confesso que a
cena do vestido de cerimónia (ela frisava bem “de cerimónia”…) foi a gota de água que fez transbordar o meu copo.
Um
dia, depois de termos estado a ver 196 vestidos de noiva na Net, comecei a
expor as minhas dúvidas. Docemente. Como quem não quer a coisa. Com muitooo tacto. Tentando não dizer algo que ela não estava preparada para ouvir, sob risco de comprometer
todo o meu discurso. Nunca pus em causa a veracidade dos sentimentos ou um
possível compromisso futuro. Pus a tónica na rapidez com que a relação estava a
evoluir. Na precipitação. Explicando que, uma vez passada aquela paixão toda
inicial, talvez ela descobrisse outro homem. Que não se conhece uma pessoa em
meia dúzia de meses. Que aquele período de paixão não ligava lá muito bem com
um novo bebé. Que voltar às fraldas e às noites mal dormidas exigia uma relação
de aço e não um amor de adolescente. Enfim… falei, falei, falei. A Christine
percebeu de imediato onde eu queria chegar e virou a questão ao contrário: Ao
fim de 18 anos ao lado do meu namorado do liceu, eu tinha ou não tinha
descoberto um perfeito estranho? Fui obrigada a calar-me. E a engolir as minhas
dúvidas. O amor é um acto de fé. Se a Christine tinha essa fé para se lançar,
não seria eu que lhe ia cortar as asas. Na secreta esperança de que ela não fosse como Ícaro...
E
estávamos neste ponto, com data do casamento marcada e a viver um verdadeiro
idílio amoroso, quando fui passar o Natal a Inglaterra. Felizmente, os filhos
da Christine passaram o Natal com o pai e ela estava sozinha quando o mundo
desabou. Gaja que é gaja tem um sexto sentido apurado (só comigo é que a coisa
não funcionou, mas isso é outra história). A Christine andava desconfiada com
o facto de o príncipe encantado deixar sempre o telemóvel no carro. Até que
decidiu ir bisbilhotar. E descobriu o que não queria. Ligou para o número da
flausina que lhe enchia o telemóvel com mensagens inflamadas e ficou a saber a
extensão da sacanice. Parece que o príncipe encantado tinha conseguido fazer as
pazes com a antiga companheira e engravidá-la…durante as primeiras semanas de
namoro com a Christine. Como se não bastasse, decidiu manter as duas relações.
E ter mais um filho.
Passou uns dias a negar a verdade a ambas… a mandar as mesmas
mensagens de desculpas a ambas… a oferecer as mesmas prendas a ambas… até que foi
apanhado com a boca na botija e teve mesmo de admitir a paixão a
duplicar. A ambas, pois claro. Ficou por explicar como raio pretendia manter
esta situação de vida dupla quando as duas crianças nascessem… A estupidez era
tanta que acabou por sair de casa da Christine na véspera de Natal, para bater
com o nariz na porta da outra. Agora, nem uma nem outra o querem. Nem os pais,
velhotes, que ficaram a saber da filha da putice. Um dos bebés não chegou a ser
feito, o outro não era viável. As coisas também correram mal no trabalho. O
príncipe encantado caído em desgraça acabou por perder o emprego. Neste momento,
vive no carro, numa praça em Bastogne. Continua a mandar mensagens várias vezes
por dia a ambas. Não, esperem… continua a mandar exactamente as mesmas mensagens a uma e a outra. Um perfeito anormal, é o que
é.
Hoje,
apesar do frio, decidimos aproveitar o sol que é tão raro por estas bandas.
Pegámos nos miúdos todos e no cão, enfiámos umas galochas e fomos dar um longo passeio
pelos bosques de Malempré. Passámos horas a dizer disparates e a rir. Falámos
de coisas sérias e de parvoíces. Comentámos a roupa que eu devia usar na
entrevista que tenho na 3ª feira e combinámos a que horas íamos pôr o carro
dela no mecânico. Os príncipes encantados vão e vêm. E um dia tudo há-de ficar
bem. Mas enquanto a minha amiga estiver a sofrer, eu rezo para aquele idiota
não ter o azar de passar à frente do meu carro. Ou por trás. Que eu sou pessoa
para me enganar sem querer nos pedais...
Que gigantesco animal! Odeio-o.
ResponderEliminarYup! :(
ResponderEliminarPassá-lo a ferro com o carro ainda é pouco!
ResponderEliminarLamentavelmente tenho uma amiga e colega de faculdade a quem sucedeu aparecer assim um animal desses... no entanto, ela engravidou mesmo sem querer e acabou por ter um menino lindo. A única coisa boa que veio daquela besta...
Esses tipos, desde o início aventureiros e agressivos, e que se auto-denunciam, não são os mais graves! Os que põem um ar de "cão abandonado", que levam a senhora a fazer todo o trabalho de os "formar" e continuam a parecer que eles estão só a "fazer um favor" e que só se desmascaram muitos anos (e muitos filhos) mais tarde, são bem piores... É que quem percebe (ou pensa que percebe), nem pode tentar ajudar, pois a "vítima" só percebe muitos anos depois. Chama-se a essa mudança de perspectivas "ganhar experiência".
ResponderEliminarPortanto, a Christine até teve sorte. Imagina que só percebia passados 15 anos...