(onde se explicam as premissas da
educação para o desenrascanço
e uma mãe se vê seriamente enrascada)
Se quisesse ser pedagogicamente
correcta, diria que a minha principal prioridade em termos educativos é a
autonomia. Mas a verdade é que, na correria do dia-a-dia, não há cá tempo para grandes
teorias pedagógicas. Educo os meus filhos o melhor que posso, na esperança de que
se tornem uns gajos desenrascados. E felizes, claro. Mas como nunca conheci
ninguém que fosse feliz e enrascado, primeiro vem o desenrascanço. Nesta casa é
cada um por si e Deus por todos. Sendo que eu sou Deus. Traduzido na prática, eles
são obrigados a desenrascarem-se sozinhos, mas faço-me omnipresente para
controlar os danos colaterais. Quando é possível. Quando chego a tempo. O que
nem sempre é o caso, como se verá mais à frente.
Às vezes, dou por mim a pensar que devo
ser maluca, porque dá muito mais trabalho obrigá-los a fazer as coisas do que
fazê-las por eles. Parecendo que não, dá uma trabalheira desgraçada dar o
exemplo, explicar, incentivar, motivar, adoçar o ego. Servir de rede de
segurança, quando as coisas correm menos bem. Estou seriamente desconfiada que
deve ser mais fácil ser mãe de dois totós do que de dois miúdos desenrascados. Mas,
depois, faço um esforço enorme para me convencer que afinal nesta casa até há
um fio educativo condutor. Que sou adepta da “educação para a autonomia”.
Pronto, dito assim até fica bonitinho, não é verdade? E espero que, a longo
prazo, possa colher os frutos da minha loucura.
Fiel a esta teoria, de manhã limito-me
a verificar que o Diogo acordou com o despertador, mas deixo-o gerir o tempo
como quiser. Sendo certo que, se perder o autocarro, sabe que não há outro meio
de transporte disponível. E nem sequer lhe faço o farnel para o almoço. Até
porque tenho a certeza de que não estaria à altura do seu paladar apurado. Sim,
que o meu filho tem a mania de fazer sandes gourmet com queijo derretido, um
fio de azeite e ervas aromáticas. Cá sandochas mistas com manteiga é coisa de
gente com gostos pouco refinados. Ora acontece que, no outro dia, atrasou-se
entre a franja que não baixava, o cinto que não aparecia, a camisola de gola
alta que picava e não sei mais o quê… Resultado: ficou sem tempo para preparar o
repasto. Mas ele não se atrapalhou. Agarrou em seis fatias de pão, numa faca e
no pâté de atum e enfiou tudo na mochila às pressas, antes de desatar a correr
para apanhar o autocarro. E eu, que ia seguindo a cena ainda estremunhada,
pensei cheia de orgulho que, afinal, no meio da lufa-lufa lá vou conseguindo
desenrascar uma educação de jeito.
Mas hoje lixei-me. Com o Vasco, claro. Desde que ouviu o coro infantil, na festa de Natal da academia de música, que
não me larga. Tentei fingir-me de morta, que já tenho o meu horário de motorista
completamente preenchido. Nem me passou pela cabeça que a coisa pequena tentasse
resolver o problema sozinha. Esta tarde, quando estávamos à espera do professor de
violino, diz-me que ia até à secretaria perguntar se o tinham visto. Como
estava em pulgas para mostrar o novo violino, achei normal o entusiasmo e
deixei-o ir. Uns minutos depois, o meu alarme de mãe soou e decidi ir atrás
dele. Demasiado tarde. O Vasco já se tinha informado dos diferentes pólos da academia
onde havia coro. E dos horários. E preços. E qual o mais perto de casa. Quando
entrei na secretaria, deparei-me com três senhoras muito solícitas a rir.
Disseram-me logo que tenho um filho muito despachado. Hum, hum… Que iam avisar a professora de canto que o Vasco ia fazer
uma aula na 6ª feira à experiência. Ainda tentei brincar com a situação… “Ó
filho, então queres entrar para o coro, é? Podias ter dito à mãe…” Ele não se
fez rogado e disse que andava há semanas a pedir para eu o inscrever. Lá
se me foi o sorriso falso. Infelizmente, o director andava por ali.
E como é fã do Vasco, a mascote da academia por ser o aluno mais
novo na classe de instrumento, aprovou a escolha. Nem é preciso pagar nada.
Resumindo: Na próxima 6ª feira, vou fazer mais 40 km para levar o menino ao coro. O Vasco está
todo ufano por ter resolvido o assunto sozinho. O Diogo está nas nuvens com a
perspectiva de ficar duas horas sozinho em casa. E eu… eu só tenho a dizer que a
educação para a autonomia é uma merda, é o que é.
[ Mas admito que deve ter a sua quota-parte
na construção da auto-estima da coisa pequena. Já no carro, comentava que bom,
bom, era entrar para o coro de Harzé, só para adolescentes e adultos, porque
seria a única criança. E que ser único era especial. ]
Dá muuuuito mais trabalho a educação para a autonomia. Mas também não consigo conceber outra forma de os ajudar a crescer confiantes. E ainda nem me tinha passado pela cabeça essa dos enrascados não serem grandes candidatos à felicidade.
ResponderEliminarEu não disse que eles não existiam, Gralha... eu é que nunca conheci nenhum! :)
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