(porque
às vezes faz bem olhar para trás e ver o caminho percorrido)
Há
uns dias atrás, aceitei um pedido de amizade no Facebook de uma velha amiga do
meu pai, que mostra aquela doçura própria de quem me conheceu em criança e me
vê, agora, já adulta e com filhos. Como é normal, percorreu o meu mural e
deparou-se com um post escrito em
2011. Foi um texto que escrevi para o Diogo, na madrugada de 10 de Junho, por
ocasião do seu décimo aniversário.
Não
lia este texto há muito tempo e senti um choque quando o reli. A vida era
outra, naquela altura. Estava prestes a celebrar 13 anos de casamento, com dois
filhos maravilhosos. Estava em pleno processo de adopção de uma pré-adolescente
por quem estávamos completamente enamorados. Trabalhava noite dentro a fazer
tradução e legendagem, para poder dedicar o dia à família. Tínhamos uma vida simples,
desafogada. Nada faria prever o desmoronamento que aí vinha. Mas, como
canta o Sérgio Godinho, “Um dia – há sempre um dia – moeda ao ar, a cara e a
coroa viram a sorte mudar”…
Passaram-se
dois anos e meio. Tudo mudou. A nossa vida mudou. Eu mudei. Há apenas duas coisas que não
mudaram. O Diogo continua o mesmo miúdo e eu continuo a mesma mãe. Mas mais
felizes. Muito mais felizes e realizados. Ele porque encontrou finalmente um
ambiente escolar que respeita e estimula a sua inteligência, com tantos amigos
que já me perco nos nomes. Eu porque tirei a venda que tinha nos olhos e hoje encaro
a vida de forma diferente. Porque cresci. Aqueles tempos foram felizes, sim, mas era uma
“felicidadezinha”. Uma coisa poucochinha feita do ram-ram quotidiano e de ambições
igualmente pequeninas. Eu tinha-me acomodado a uma “espécie de felicidade”. E era
incapaz de ver que aquela não era a vida que eu queria de facto viver.
Reler
este texto foi importante para mim por outro motivo. No momento em que a minha
capacidade como mãe é posta em causa de maneira tão violenta, no momento em que
o meu suposto desequilíbrio psicológico é usado como argumento para me ameaçar e amedrontar, eu leio um texto dessa época e continuo a rever-me nele. Tenho a certeza
absoluta de que fui, sou e sempre serei a mesma mãe. O mais importante na minha vida são os meus filhos. Até que um dia tenham asas para voar e eu dê o meu trabalho por terminado. Tudo à minha volta pode mudar: o
objectivo de vida, o país, o emprego, a estabilidade económica, o lazer, o
coração… eu continuo a ser a mesma mãe. Não sou a melhor mãe do mundo. Não sou certamente a mãe que sonhava ser um dia. Sou a mãe que
posso ser. Que sei ser. Mas mais feliz. Muito mais feliz e realizada.
O
Diogo nasceu há 10 anos… há 10 anos?! Há 10 anos! Sinto que foi ontem. Nasceu
quase sem batimentos cardíacos e não chorou. Quando o encostaram a mim, abriu
muito aqueles olhos enormes e eu chorei. Senti que era Natal. Ainda hoje sinto
quando olho para ele. Minutos mais tarde, ao ouvir a voz do pai pela primeira vez,
o Diogo virou-se e fixou-o com uma expressão de reconhecimento. E nesse
momento, juro, vi o amor acontecer.
O
Diogo fez-me acreditar no transcendente. Há algo nele que está para além do meu
entendimento. A forma como encara o mundo não pára de me surpreender. Tem um
altruísmo, uma capacidade de empatia, uma inteligência para ver mais além. E
uma resistência, uma resistência feroz. Tem 10 anos, mas tem a coragem de ser
ateu. E sabe explicar porquê. É ateu após anos de visitas assíduas a igrejas
onde mantinha grandes conversas com Deus, para nosso desespero que só queríamos
fazer turismo.
Um
não para o Diogo nunca é um não, nunca é definitivo. Nunca é uma porta que se
fecha, é uma janela que ele tenta forçar. Um não tem de ser explicado,
justificado, escamoteado, negociado até à exaustão. É a este lado negro da
força que o Diogo vai buscar a sua energia. Consegue adquirir competências para
fazer o que decide que deve fazer, no momento exacto em que decide que tem de
ser feito. Começou a falar com 7 meses para dizer olá a quem passava por ele.
Aprendeu a ler nos lábios sem dizer nada a ninguém, quando perdeu a audição aos
3 anos. Após o nascimento do irmão, aprendeu a ler sozinho porque percebeu que
ninguém tinha tempo para lhe ler histórias e que a primária ainda estava longe.
Nunca
disse mal da escola, apesar de ter apanhado mais professoras imbecis do que
muita gente durante todo o seu percurso escolar, apesar de nunca terem
respeitado a sua inteligência, apesar de ter sido obrigado a mudar de escola no
último ano. Ao fim de meses seguidos de bullying, estranhámos vê-lo entrar na
escola todos os dias com um sorriso. “Tenho sempre esperança que o novo dia
seja diferente”, respondeu. Tinha um único amigo. Nesse dia, senti pela
primeira vez na vida instintos assassinos.
Aprendeu
a fazer amigos noutros sítios, em qualquer sítio. Anda no hóquei, na natação,
no trompete. Gostava de tocar guitarra. Deixou agora os trampolins porque o
tempo não é elástico. Porque para o Diogo o tempo é um conceito estranho,
mutável. É capaz de demorar meia hora a calçar os sapatos e ainda diz que se
despachou. Vai passear o cão de trela na mão e esquece-se de o levar. Mas nunca
esquece um caminho.
Tem
um saber livresco. Quando lhe pergunto “Sabias que…”, na maior parte das vezes
já sabia. E ainda me ensina qualquer coisa de permeio. Lê três livros ao mesmo
tempo a uma velocidade alucinante. Sempre à cata do erro, da incongruência.
Anda com a “Mensagem” na mochila da escola. Escreve poemas e BD, apesar de
desenhar muito mal. Ora quer ser cientista, ora historiador, ora educador de
infância, ora arqueólogo. Professor e médico, nunca. Mas tem uma vantagem que a
minha geração ainda não tinha: a cada nova profissão que surge, pergunta sempre
primeiro se é rentável.
É
um cinéfilo inveterado que só gosta de filmes para gente grande. E que não tem
vergonha de chorar no escuro. Quando começou a falar de mulheres, levei-o a ver
um documentário francês sobre o nascimento. Viu mulheres a parir durante hora e
meia e só desviou o olhar quando sacrificaram uma cabra. Não conheço muitos
homens que aguentassem. A conversa abrandou durante uns tempos, mas não há nada
a fazer. O Diogo é um apaixonado por natureza. Espero sinceramente que ninguém
lhe parta o coração.
Nos
seus 10 anos de vida, já viu muitas crianças sem família invadirem a sua casa,
brincarem com os seus brinquedos, usurparem o colo dos seus pais… nunca lhe
ouvi uma palavra que fosse de desagrado. Nunca. É o mais entusiasta defensor da
adopção que eu conheço. Embora deseje ardentemente ter mais um irmão bebé e
saiba que ambos os projectos são incompatíveis. Porque o Diogo adora bebés e
tem muito jeito. É verdade que adora o irmão mas odeia ser idolatrado, copiado,
imitado. Nesta vida, em que todos somos tão iguais, há que manter a originalidade.
E o Diogo é, de facto, único.
Este
é o meu filho. O filho a quem dou os parabéns pelos 10 anos feitos hoje. O
filho do meu tamanho, que entrou na idade em que os braços e as pernas ganham
vida própria, mas que continua a pedir colo e mimo. E a dizer que me ama. O
filho que entrou na idade em que tudo muda, mas que continua lindo. Os pais não
costumam dizer estas coisas aos filhos, andam tão ocupados a tentar educá-los
que se esquecem de os amar simplesmente. E eu sei que ralho, grito, castigo e
até dou palmadas, mas eu não me canso de lhe dizer que o amo e que tenho um
orgulho imenso em ser mãe dele. Dou-lhe os parabéns porque em 10 anos de vida
se transformou numa pessoa maravilhosa.
Só tenho isto a dizer: cá de longe há alguém que a admira cada vez mais!
ResponderEliminarObrigada, querida Mariana! :)
ResponderEliminarobrigada pelo(s) teu(s) texto(s)...
ResponderEliminar(descobri que temos mais em comum que o gosto ou necessidade de escrever)
algumas lutas deixam-nos mais fortes, ainda que as forças gritem por descanso, por vezes
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