quinta-feira, 17 de julho de 2014

Vida de cão

(porque afinal os patos voam, o melhor é caçar ovelhas)


Há cães que nasceram para sofrer. Cães que sofrem os horrores da tentação da carne. Literalmente da carne. Cães que vivem em desassossego por causa dos gatos que ousam passear dengosos pelos seus novos domínios. Cães que sabem que atrás da porta da casinha no quintal se escondem impunemente o coelho, o porquinho-da-índia e o hamster. Cães que têm de se deparar com patos a nadar tranquilamente no lago quando passeiam. Cães que, dia após dia, convivem o melhor que podem com a tentação ambulante. Tentação com patas. Tentação com penas, pêlo… e lã. Como se esta provação não fosse suficiente, há cães que assistem impotentes ao desembarcar de um rebanho de ovelhas mesmo à frente do seu território. E que as ouvem balir todo o santo dia. A gozar com ele. A provocá-lo. A atiçá-lo.

Ninguém compreende estes cães. A única solução é serem pacientes. Têm de esperar por um momento de distracção humana para poderem fugir por um buraco discreto. Cães que mal acreditam nos seus olhos, quando avistam o rebanho protegido por uma simples cerca. Cães que percebem tarde demais que a dita cerca está electrificada. Com uma voltagem ajustada para animais com mais 150 quilos do que eles. Cães destemidos que, após um choque fortíssimo, insistem corajosamente em correr atrás do rebanho. A ganir, com a língua de fora e a perna maluca aos saltos. Cães que finalmente conseguem isolar e arrebanhar um bicho oito vezes o seu tamanho. Que fazem o seu trabalho. E que – cúmulo dos cúmulos – sabe-se lá porquê, ainda têm de suportar os gritos histéricos dos donos e os insultos. Cães fortes, que não se deixam intimidar nem influenciar por nada, nem por ninguém. Cães com personalidade. Carisma. Que preferem ser arrastados novamente até à cerca maldita a largar a presa que tanto trabalho deu a apanhar. Há cães que ficam colados à cerca a tremer com espasmos até um ser humano furioso, mas apiedado, lhes deitar a mão. Há cães que depois de um esforço inimaginável são forçados a largar a presa e a serem trazidos ao colo para casa. A humilhação suprema.

Há cães que nasceram para sofrer, condenados a passar ao lado de uma grande carreira de caçadores. Cães incompreendidos. Cães infelizes.

4 comentários:

  1. Até parece que consigo ouvir os cat-lovers todos a ler este post e a sentenciar (novamente) que os cães são animais mesmo estúpidos. E não são. São só muito, muito, muito fixados na sua gana de trincar um bife. (são realmente um bocado totós, pronto)

    ResponderEliminar
  2. Totós, nada! Continuo a ter muito mais respeito por um animal que quase se mata a perseguir presas verdadeiras, do que outro que fica horas a perseguir reflexos luminosos nas paredes... :)

    ResponderEliminar
  3. Acho que conheci um exemplar dessa matilha...

    ResponderEliminar
  4. E tenho a certeza de que o exemplar que conheceste ainda se recorda de ti com muitas saudades. Principalmente dos passeios matutinos e das maratonas a traduzir! :) Amigos como tu valem ouro, Pato.

    ResponderEliminar