(porque
é preciso amadurecer a coragem de ser diferente)
O
Vasco tem um segredo. Segundo ele, é assim um bocadinho como as vidas duplas dos
super-heróis. Agora que penso, é engraçado que a coisa pequena tenha descoberto
os super-heróis este ano. Ele que nunca se aventurou muito para além do
universo do Star Wars. O mais curioso é que o Vasco não se interessou
exactamente pelas histórias típicas dos super-heróis, como seria de esperar. Os
livros que ele agora devora são um género de biografia. Falsa biografia,
evidentemente. Tipo, “Batman, o super-herói” ou “Superman em construção”.
Livros que exploram o nascimento do super-herói, a sua vida dupla. Acho que
funcionam mais como material de pesquisa do que como objecto literário.
Seja
como for, há quase um ano que o Vasco mantém o seu segredo. Ninguém sabe que
ele anda no ballet. Aqui, diz-se dança clássica. Como é evidente, a família e
os amigos mais chegados sabem. Mas ele prefere não falar muito sobre o assunto.
Faz questão de cultivar esse segredo, essa vida dupla. Em casa, nunca está
quieto. Bicho-carpinteiro em acção. Passa a vida a correr, a dançar, a
rodopiar, a fazer saltinhos e piruetas. A ensaiar o pas de bourré, o chassé,
o coupé… Dá gosto vê-lo fazer pequenos
passos, completamente distraído. Alheado do mundo que o rodeia. Nunca faz os
esquemas completos, só excertos, vindos do nada. E apenas quando estamos em
família. Treina a memória do corpo. Às vezes, mostra-me o que aprendeu. “Olha
aqui este novo passo, mãe…” O jeito não é muito, sejamos sinceros. Mas o importante
é que ele gosta.
A
professora é muito dura com eles. Está sempre a ralhar nas aulas. Principalmente
com o Vasco, que começou há menos tempo e não tem a graciosidade da meninada. Nem
a mesma capacidade de concentração. Mas ele adora-a. Acha-a engraçada, sabe-se
lá porquê. O boletim do Natal não foi extraordinário e ele desmotivou. Nunca
tinha recebido más notas na vida, não foi fácil. Voltou a animar com o espectáculo que deram em Março, onde se portou lindamente… apesar de ter tido medo
que algum colega da escola pudesse reconhecê-lo em palco. Do pouco que pude ir
espreitando das aulas, pareceu-me que estava a melhorar. Além de gostar muito de dar asas ao corpo,
o Vasco também aprecia toda a componente física, anatómica, da dança clássica. Às
vezes, a professora explica o movimento de uma determinada parte do corpo e
eles têm de pôr as mãos naquela zona para sentirem o movimento, de tal forma é
imperceptível a olho nu. Têm de aprender a sentir o corpo, a ouvir o corpo, que é uma coisa
que os homens fazem pouco na nossa sociedade.
Há
pouco tempo, fomos consultar dois ortopedistas, porque o Vasco começou a coxear
e a professora de ballet me alertou para rigidez de certos músculos. Depois de
um susto inicial e de vários exames, percebeu-se que não era nada de grave. O
Vasco dificilmente será um bailarino, mas tem de continuar a fazer dança
clássica, porque funciona como uma espécie de fisioterapia localizada. A coisa
pequena teve muita dificuldade em admitir que andava no ballet, à frente dos
diferentes especialistas que o analisaram. A dada altura, um médico germanófono
que falava um francês atabalhoado, explicou que era uma sorte o Vasco gostar de
ballet e não de futebol, um desporto que nunca poderia fazer. A coisa pequena
percebeu que o médico queria que ele se inscrevesse no futebol e exclamou, aflito. “Futebol?!
Mas eu detesto futebol!” Compreendi, então, que esta história do segredo do
Vasco tinha outra dimensão. Porque não só ele não diz a ninguém que anda no
ballet, como passa os recreios a jogar à bola. E a dar-me cabo dos ténis e das
calças. Quando o questionei, respondeu-me que é o que todos os colegas fazem.
Tipo efeito de grupo. Que não quer ser diferente. Que não quer que gozem com
ele. Lembrei-o da inveja que o Diogo e o amigo tinham sentido quando
lhes contou que, durante o espectáculo de ballet, as miúdas todas – da mais
nova à mais velha – se tinham despido à sua frente, nos balneários. “Deixa-os
crescer mais um pouco e tu vais ver…”, disse-lhe para o animar. Ele fez-me
um sorriso cúmplice. “Eu sei, mãe!” É esperto este meu filho pequeno.
Igualmente
esperta é uma colega da escola do Vasco, que ainda está na Maternelle. O que só prova que, de facto, as miúdas amadurecem
muito mais cedo. A menina em questão também anda no ballet, numa turma anterior
à do Vasco. Quando ele entra, está ela a sair. Aqui há uns tempos, a miúda
perguntou-lhe no recreio se ele andava na dança clássica. O meu super-herói disse
logo que não. Nem pensar nisso. Que disparate. Olha que ideia. A menina não
desistiu. Disse que o via todas as terças-feiras a entrar para a aula de
ballet. Mas o Vasco já tinha o argumentário
preparado e explicou que andava num ATL, na mesma escola. Ela não insistiu,
foi-se embora. E o Vasco pensou que estava safo. Parvo, vê-se bem que ainda não
conhece os meandros subtis da mente feminina. No último dia de aulas, a
professora de dança reuniu as turmas todas para entregar os boletins e encher a
criançada de doces. A coleguinha também lá estava, claro. O Vasco decidiu
ignorá-la, tornando-se invisível com os seus superpoderes. A miúda entrou no
jogo e fingiu que não o via. Para seu azar, a professora estava especialmente
bem-disposta e fartou-se de brincar com o Vasco. Meteu-se com ele por causa dos
trambolhões e das leggings rasgadas, elogiou-lhe
os progressos, fez questão de ler em voz alta o que tinha escrito no boletim sobre
a capacidade discursiva do pequeno bailarino… Enfim, o Vasco acabou por ser a
estrela da companhia. À saída, a menina veio ter com ele. A coisa pequena
encolheu-se, mas não tinha como fugir. E, do alto dos seus cinco anos, a miúda
disse-lhe meigamente: “Ainda bem que nenhum de nós anda na dança clássica, não
é?!” Algo envergonhado, o Vasco confessou-me depois que achava que o seu segredo estava em boas mãos...
:) :) :)
ResponderEliminar♥
EliminarO Vasco é a coisinha mais cool do mundo.
ResponderEliminarO Gabriel e ele deviam entender-se às mil maravilhas! :)
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