(onde se faz eco de medos inexplicáveis)
Olho
para a caixa cheia de gaufres na bancada da cozinha. E recordo a voz doce de
quem a medo me tem tentado telefonar. Atendo sempre e sou agradável, sem
qualquer esforço, tenho de admitir. Nunca deixei uma mensagem sem resposta. Mas sinto-me
envergonhada. Pela minha atitude de fuga. Pela insistência na negação.
Sobretudo, pela minha cobardia. Sem dúvida, resquícios de uma vida passada.
Estou
desejosa de que os miúdos comam as gaufres todas o mais depressa possível. Não
quero continuar a relembrar os meus medos, cada vez que vou à cozinha e vejo
aquela caixa transparente ali pousada. Sou incapaz de lhes tocar. E, no
entanto, foram feitos com o coração. São caseiros, têm pouco açúcar. Parece que
foram feitos por alguém que me conhece bem. Provavelmente, conhece
mesmo. Tal como eu a conheço a ela, sem nunca sequer a ter visto. E lhe tenho,
ainda assim, um certo carinho.
Começou
por ser um prato de comida. Um prato bonito, antigo. Coberto por uma
folha de papel de alumínio. Achei ternurento. Um dia também hei-de mandar um
prato assim aos meus filhos. Depois, quando soube da minha existência fugidia,
passou a mandar comida para dois. Depressa deve ter sabido que éramos, na
realidade, três. E deixou de mandar aqueles seus pratos cuidadosamente
preparados. Ele dizia-me que eram restos, mas uma mãe reconhece de imediato o
cuidado que outra põe no desvelo aparentemente descuidado com que trata o
filho. Eram restos, sim, mas restos de amor. E mal percebeu que havia agora
quem se preocupasse em dar alimento – não simples comida – deixou
de sentir necessidade de o fazer.
Aos
poucos, começaram a vir doces. Frascos de compota caseira. Mel. Bolos, tartes,
gaufres. Sempre caseiros. Sempre em quantidade. Sempre a cheirar a infância.
Ou, então, rebuçados que vai trazendo das suas viagens. Mas toda a gente sabe
que rebuçado é coisa de criança. São para as minhas crianças, portanto. “Os
seus meninos”, como uma vez me disse ao telefone com aquela voz doce que parece
surpresa, mas não ofendida, pela distância ferozmente imposta.
“Posso
telefonar-lhe?”, perguntou-me. “Sempre que precisar”, respondi sem hesitar. Mas
mais do que isso tenho medo. Não quero voltar a sentir-me obrigada a gostar de
alguém. Muito menos que alguém tenha de gostar de mim e dos meus filhos por
obrigação.
O
marido é mais directo: “Gostaria muito de ter o prazer de a conhecer
pessoalmente.” E eu minto, descaradamente. “Claro que sim. Um dia, quando se
proporcionar”. E falamos, falamos, falamos. No fim, diz-me: “Gostei muito de
falar consigo. Tem uma visão extremamente lúcida das coisas, isso é raro.” Apesar dos
elogios, protejo-me. Protejo os meus rapazes. Do quê, nem eu sei bem.
Às
vezes, o filho pequeno ainda pergunta. “Quando vamos conhecer os pais do
Pascal?”. O filho grande já há muito que deixou de fazer perguntas. Com os
rapazes sou brutalmente sincera: “O amor não deve ser uma obrigação. A nossa família
é a única que nos ama e apoia incondicionalmente, aconteça o que acontecer. E
na nossa família só entra quem o nosso coração adopta, sem amarras nem
imposições.” Acho que não conseguem compreender, mas aceitam. E comem
alegremente o que vai chegando. Ontem, foi uma caixa cheia de gaufres.
Mas um dia fiquei triste. Porque também eu sou mãe. “Posso fazer-lhe uma pergunta?”
Respondi, com sinceridade. “Tudo o que quiser.” “Entre vós há sentimentos
sinceros?” A formulação antiquada e o pudor da pergunta fizeram-me sorrir.
Fiquei comovida com a preocupação. Pais de filho único, sem o ser. Pais que carregam
a dor profunda da morte de um filho que será eternamente jovem. Pais que sabem
que nunca serão avós. Deixei o coração falar. “Nunca amei ninguém como amo o
seu filho. Tenho-lhe uma amizade e uma admiração sem fim. É a melhor pessoa que
conheço. A mais inteligente. Faz-me rir todos os dias. E não tenho qualquer dúvida de que sou amada como nunca fui. Eu e os meus
filhos, com uma meiguice que me comove.” Ouvi um suspiro de alívio. E um sorriso. Ouvi um sorriso. Que me faz
sentir culpada até hoje pela minha cobardia.
Cada coisa tem o seu tempo. Como seria bom que tantas relações não se apressassem mas pudessem seguir o seu ritmo próprio. Lembrei-me agora que tenho de reler O Principezinho :)
ResponderEliminarSe fosse médica, receitava anualmente a releitura de "O Principezinho" e de "Winnie-the-Pooh", Gralha. ;)
EliminarTão bem alinhadas as palavras neste post, ou seja, a Rita escreve tão bem! A Rita que aqui parece ter vivido mais do que uma vida, bem diferente da que aparece na fotos do post anterior...É verdade que cada coisa tem o seu tempo, como li ali em cima! Mas quem é nomeado no texto já deve ter a noção de que o tempo lhes está já a fugir...Beijinhos, Rita!
ResponderEliminarTem toda a razão, Mariana. Bem sei que o tempo de uns e de outros nem sempre coincide. :(
EliminarAi que estou de lágrimas nos olhos.
ResponderEliminarQue lindo, pá.
A mim, o que me comove mais do que qualquer outra coisa é o carinho. E vi tanto carinho aqui.
:)