(porque há momentos e pessoas do passado que mudam o presente)
Há
pouco tempo, ligou-me o meu primeiro amor. Precisava de falar comigo. Estranhei
a urgência, pouco habitual. Não nos víamos há bastante tempo, ele está sempre a
viajar. E, da última vez que nos encontrámos, discutimos. O habitual. Quando
entrei no café, estava a ler, numa mesinha do fundo. Não tem tablets, nem smartphones. Não tem nada de moderno, a bem dizer da verdade. Nem
sequer a roupa. Parece uma pessoa antiga. Anda sempre com muitos livros.
Perguntou de chofre: “De que abdicaste por mim, Rita?” Ele diz sempre o meu
nome. Não percebi a pergunta. “Já temos 40 anos. Não tive filhos. Os teus
filhos são os filhos que eu nunca tive. E tu, de que abdicaste por mim?” Escapou-me
uma gargalhada. Ao fim de tantos anos ainda me espanta a sincronia de pensamento.
Esta questão tem-me assombrado, nos últimos tempos. Porque ele foi o começo de
tudo o que se seguiu. Porque demorei muito a compreender, mas finalmente
percebi. Ele foi o ponto de viragem. O momento exacto em que o meu caminho se
desviou inexoravelmente para um lado, e não para outro. E daí advém uma vida.
Três vidas, para ser honesta. Demorei muito a encontrar a solução do meu enigma.
“Aos 16 anos, convenci-me de que nunca mais iria amar ninguém na vida. Que só
temos uma alma gémea e que eu tinha perdido a minha. Por isso, comecei a namorar
com o meu melhor amigo, por quem sentia um carinho imenso. Percebo agora que
nunca o amei verdadeiramente. Nunca o desejei. Mas achei que era uma maneira
segura de ter os filhos que nós nunca teríamos.”
Aos
15 anos conheci a minha alma gémea. A primeira imagem mantém-se nítida até
hoje. Ia começar uma escola nova, num país novo. Não percebia uma palavra do
que me diziam, sentia uma dor de cabeça constante. E depois vi-o. Alheado do
mundo, sentado na relva. Estava a ouvir música num walkman. Um livro de poesia aberto sobre os joelhos. O cabelo
despenteado, demasiado comprido, caía-lhe sobre os olhos. Apaixonei-me
perdidamente naquele preciso instante. Até hoje. É das raras pessoas que
conheço que se manteve fiel à si mesma, sem quaisquer concessões. A única a
quem estou ligada por uma linha invisível, que nem o tempo, nem a distância,
conseguiu apagar. A este homem devo muito. Por isso, é importante falar nele,
agora que me aproximo a passos largos dos 40 anos e estou a acabar de arrumar
as minhas gavetas mentais.
O
meu ano de intercâmbio na Bélgica foi complicado. Cresci muito. Nunca teria
conseguido aguentar sem ele. Quis o destino que calhasse na minha turma. Outsider como eu, num grupo que estava
junto desde a primária, num colégio de meninos ricos. Formámos uma simbiose
perfeita, completamente à margem daquele cenário idílico que nos rodeava. Uma
simbiose feita de espelhos onde se reflectia o melhor e o pior de cada um de
nós. Discutíamos muito de forma extremamente violenta. Mas também conseguíamos
comunicar sem que fossem precisas palavras. Depressa começámos a explorar os
recantos do palacete que nos servia de escola, bem como os bosques que o
rodeavam. Descobrimos todos os pontos de fuga possíveis. Escondíamo-nos no cimo
das traves do velho pavilhão de Educação Física, a muitos metros do chão. E
líamos. O bibliotecário do colégio depressa desistiu de nos fazer fichas de
requisição. Devorávamos prateleiras de livros à velocidade da luz. Escrevíamos
muito, principalmente peças de teatro e poesia. Os professores começaram a
tratar-nos como uma só pessoa. Todos os trabalhos que fazíamos era em conjunto.
Os castigos que recebíamos também eram em conjunto. Até que o Prefeito deixou
de nos castigar, quando percebeu gostávamos de ficar retidos na escola, às
quartas-feiras à tarde.
Aos
poucos, começámos a encontrar-nos fora da escola. Ele levou-me a conhecer
Liège. Os cafés, os teatros, as salas de espectáculo. Passávamos horas na Fnac,
a ler e a ouvir música. Em casa dele, um verdadeiro refúgio para onde me
escapava sempre que podia. O essencial era passar o mínimo de tempo possível
com a minha primeira família de acolhimento, completamente disfuncional. Um
dia, fugimos da escola para irmos à procura da pessoa do programa de
intercâmbio encarregue da zona de Liège. Descobrimos onde morava, numa época
pré-internet e telemóveis. A senhora ia morrendo de susto, quando aparecemos à
sua porta, já noite cerrada. Os contactos dos voluntários eram confidenciais.
Mas não havia nada a fazer, eu teria mesmo de aguentar até ao final do ano
naquela família. Ele começou a azucrinar a mãe, para me deixar ficar com eles.
Mas a senhora, apesar de preocupada e amorosa, recusava-se terminantemente.
Dizia que ainda acabávamos na mesma cama e desgraçávamos as nossas vidas.
Parecia-nos uma heresia. Nós éramos amigos de sangue, com juras feitas.
Até
que a família para quem eu fazia babysitting
todas as semanas percebeu que as coisas não estavam bem. E decidiram
acolher-me, nos sete meses que faltavam para acabar o ano lectivo. Ainda hoje
são a minha “família belga”, a quem devo o mundo. Na manhã seguinte, cheguei
atrasada à escola. Sentei-me discretamente na fila de trás e rabisquei a
novidade numa folha de papel, que lhe atirei à cabeça mal a professora voltou
costas. Nunca vi uma felicidade alheia tão honesta. Levantou-se e atravessou a sala ruidosamente
por cima das mesas corridas até chegar a mim. Caímos nos braços um do outro à
gargalhada. E, em seguida, fomos falsamente cabisbaixos até ao escritório do
Prefeito, para mais um castigo por indisciplina. Daquela vez, escapámos. A
escola estava a par da minha situação e ficaram sinceramente aliviados. Começou,
então, uma das épocas mais felizes da minha vida.
Mais uma das "vidas" da Rita...E explica muito as que vieram a seguir! Beijinhos e uma boa semana
ResponderEliminarÉ verdade, são muitas vidas mesmo... :)Beijinho!
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