(onde se atravessa momentos de turbulência e se sai fortalecido…
para sempre)
Este nosso quinto ano foi difícil. Não
sei se terá sido o mais difícil, mas andou
lá perto. O mais estranho é que, quando olho para trás, não encontro assim
tantos motivos que o justifiquem. Há a questão do desemprego, claro. Estar
desempregado é das piores coisas na vida. Porque nos desocupa os dias e a
mente. Porque nos corrói a auto-estima e os sonhos. Porque nos faz ficar noites
a fio acordados a fazer contas de subtrair, com o medo a trepar por nós acima
até nos tirar o ar. Principalmente, o desemprego obriga-nos a olhar para o
futuro e a ponderar mudanças. A traçar novas rotas. E isso, num casal em que um
quer ficar e outro ir, abre brechas sinuosas. A liberdade individual esbarrou
contra a vontade comum. Tivemos muita dificuldade em admitir que o “nós” se
tinha sobreposto ao “eu” e ao “tu”. O amor tinha tomado as rédeas da situação,
sem pedir licença. Sem aviso prévio. Sem consentimento mútuo. Algures, começou
a escrever-se uma história que escapou por completo ao plano inicialmente
delineado. Fazer cedências desmedidas implicava que estávamos a construir um
projecto a longo prazo. Ora nós tínhamos imaginado isto como um conto. Nunca um
romance. Para sempre era demasiado tempo para mim. Mas, um dia, ele disse com uma simplicidade desarmante: “Vou amar-te para sempre”. Não senti
cosquinhas na barriga. Senti o medo a gelar-me por dentro. Sei lá eu se consigo
amar alguém para sempre. Mas, depois, pensei que tinha a certeza inabalável de
que amaria eternamente os meus rapazes. Sem questionamentos, nem cobranças. Um
amor bastante simples, afinal. Que se alimenta a si mesmo, pela inegável razão
de existir. Não respondi. Ou melhor, dei-lhe um beijo (que é a sempre a melhor
forma de encerrar uma conversa quando não sabemos o que dizer).
Depois, houve a questão do Diogo. Há
largos meses atrás, o filho mais velho adolesceu bastante. O que envolveu
algumas dores de crescimento. Sobretudo, nos adultos da casa. Quando não se tem
mais ninguém à volta, somos saco de pancada para toda a revolta juvenil. Mas eu
vi isso com bons olhos. Vejo sempre. Os miúdos só se conseguem opor a um adulto
em quem tenham absoluta confiança. Estou convicta de que, sem amor, não há
oposição juvenil possível. E a verdade é que ninguém cresce sem primeiro travar
as suas batalhas interiores. Cada vez mais acredito que adolescer é semelhante
a qualquer outro estádio do desenvolvimento infantil. Só quando uma etapa está consolidada
é que se pode passar à aquisição da seguinte. Nenhuma criança consegue lutar em
todas as frentes em simultâneo. O problema é que isto dificulta a compreensão
do verdadeiro problema. Como quando eles passavam uns dias rabugentos e uma
pessoa não percebia patavina até entrever um novo dente a romper. Com o Diogo
foi assim. Tivemos um período de turbulência inesperada. Incompreensível. Limitei-me
a seguir o meu instinto e a fazer o que sempre fiz: dou o peito às balas,
confiante de que a seu tempo perceberei. Mas esqueci que há instintos que se
sobrepõem ao meu. Tipo, a lei do mais forte. A dada altura, havia nesta casa
dois machos-alfa e a coisa descambou. Filho crescido irrompia em gritos e eu
ralhava. Aparentemente, não ralhava o suficiente. Ou com a autoridade
necessária. Passada a tempestade, o gabinete de crise reunia. E,
invariavelmente, o meu amor ralhava comigo. Com o Diogo, nunca se zangou.
Porque não era pai. Porque tinha medo de exagerar, dada a inexperiência. Porque
achava que há coisas que só se resolvem mostrando quem manda. Que se lixe a
diplomacia. E a teoria dos touchpoints
aplicada à adolescência. Às tantas, fartei-me. Isto parecia uma casa de
malucos. E, pela primeira vez, tratei o Diogo como um adulto e abri o jogo.
Disse-lhe que o comportamento dele estava a destruir a minha relação amorosa (o comportamento dele, não ele). E que,
entre um filho e um homem, eu escolheria sempre um filho. Não porque houvesse
muitos homens disponíveis. Para mim, só havia este. Sabia que nunca mais
amaria outro (afinal, a resposta estava dada). Acima de tudo, sabia que nunca
mais encontraria outro que os amasse tanto. Portanto, ele que pensasse bem no
assunto. Ou mudava rapidamente de atitude ou perderia uma das pessoas que mais
o amava no mundo. Não que ela o fosse abandonar, mas porque eu não aguentava
tê-los aos dois debaixo do mesmo tecto. Não sei o que se passou na cabeça do meu
filho mais velho. Tão depressa como tinha surgido, a tempestade amainou por
completo. E, quando a poeira assentou, apareceu um novo Diogo, mais crescido.
Pronto para travar a verdadeira batalha que estava por trás de tudo isto, pois
estava seguro do afecto que nos unia.
Entretanto, começou um novo processo judicial.
Em teoria, sou apenas o braço armado do meu filho menor de idade. Na prática,
sou eu que recebo todos os golpes. Desta vez, recebi vários golpes baixos. Sujos,
muito sujos. O meu amor continua a servir-nos de escudo e a ser o homem do
leme. Nunca dá parte fraca. Raramente se queixa. É um manancial inesgotável de
ideias e recursos. De risos, quando só nos apetece gritar. Há muito que deixei
de chorar. Mas sinto uma raiva surda crescer aqui dentro. Este Verão, senti que
falhei em relação ao meu filho crescido. Que não fui capaz de protegê-lo como
devia. Por agora, creio que acabou. Tenho a certeza de que a Justiça nos fará
justiça. O meu amor tem algum receio, mas esconde-o bem. Só eu conheço as duas
rugas profundas que teimam em marcar-lhe o sobrolho, quando se põe a matutar. E
os abraços apertados que agora dá ao Diogo a toda a hora. Têm sido tempos tão
conturbados, tão espiados, tão extenuantes. Nunca mais tivemos momentos só
nossos. Exclusivos. E fazem-nos tanta falta! Eu reclamo mais do que ele, porque
sinto que não é justo. Digo-lhe frequentemente que outro qualquer já teria
içado vela há anos. Quando estou mais bem-disposta, digo-lhe que nos vamos
separar para dividir o mal pelas aldeias numa guarda alternada de crianças e
problemas. Ele responde logo que sim, mas não está a brincar. Se nos separássemos
mesmo, o meu amor seria incapaz de abandonar os dois rapazes que lhe roubaram o
coração empedernido. Cinco anos volvidos, este homem mudou tanto por nós. Por
eles. Não sei se se terá tornado uma pessoa melhor. Sem dúvida, teve de
aprender a viver com o coração fora do peito. E isso é dificílimo. Porque ele cuida
ferozmente dos que tomou como seus. Nós, a tribo.
Quando me ponho a pensar, cinco anos
parece-me tão pouco para o muito que já vivemos. Este último ano foi sofrido,
mas creio que nos trouxe a maturidade que faltava à nossa relação. Para sempre
já não me assusta tanto. Tornou-se uma ideia reconfortante. Porque a verdade é
que continuamos apaixonados, apesar de nos amarmos. Continuamos a adormecer
todas as noites enroscados. A minha cabeça aninhada no buraquinho do ombro
dele, feito exactamente à minha medida. E acordamos sempre nos braços um do
outro. Ele diz que é o melhor momento do dia. Todas as manhãs pomos a mesa do
pequeno-almoço só para nós. Quando um cozinha o jantar, o outro lava a loiça. Nunca
discutimos tarefas, deveres, boleias, limpezas, decisões, agendas, dinheiro.
Aliás, nunca discutirmos sobre coisas comezinhas. Há um entendimento tácito
sobre inúmeros assuntos. E temos sempre conversa. Muitas vezes, ficamos noite
adentro a falar sobre coisa nenhuma. Somos os melhores amigos. Passamos a vida
na brincadeira. Nunca me ri tanto como nestes últimos cinco anos. Tentamos
não nos levar muito a sério. Ver o lado cómico da vida. Quando nos sentimos
submergir pela raiva, arquitectamos homicídios imaginários que nunca passarão
de palavras. Nenhum de nós é capaz de matar uma formiga. Continuamos a
projectar férias e passeios, que vamos realizando à medida das nossas possibilidades
mais reduzidas. Vivemos felizes com os rapazes, mas gostamos de fazer planos
para quando estivermos finalmente sós. Já só faltam x anos, dizemos muitas vezes. Somos despojados. Cultivamos diariamente o despojamento. Somos aquilo que somos, nunca seremos escravos daquilo que temos.
Por isso, precisamos de muito pouco para sermos felizes. Às vezes, basta-nos um
passeio à volta do lago quando o sol aparece. Umas panquecas de banana no
Domingo à tarde. Todas as viagens de carro feitas de mãos dadas. Um café
quentinho a ver a neve cair. O telefonema que ele faz invariavelmente quando
estamos longe um do outro. Sabermos que amanhã é o nosso dia (sim, para nós funciona na perfeição termos um dia fixo
para fazermos aquelas coisas que os adultos gostam de fazer quando se apanham a
sós). A nossa série à noite, enroscados no sofá com o cão. É o nosso reset todas as noites, antes de
subirmos. Para mim, é o melhor momento do dia. Chaque jour sufit sa peine, costuma ele dizer. Acredito que
conseguimos sobreviver incólumes a estes anos todos exactamente porque compartimentamos
tudo e criámos uma gaveta específica onde, no final de cada dia, deixamos o que
mais nos fez sofrer. Nunca nos deitámos zangados. Nunca. Tal como nunca levamos
os problemas para o nosso quarto. Fica tudo em baixo, no fundinho da tal
gaveta. Deste modo, todos os dias há um renascimento. Algo feliz que começa.
Uma esperança que se renova. Este amor que se mantém inextinguível, apesar das
mudanças. (graças às mudanças?)
O que eu gosto de vos ler!! Tudo a correr bem por aí!
ResponderEliminarObrigada, Carmen! Beijinho.
EliminarJá não te lia há tanto tempo e é sempre uma surpresa boa como da primeira vez. Tudo a correr bem nesse amor de livro :)
ResponderEliminarObrigada, Carla... pelo elogio fofinho e pelo "amor de livro"! :)
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