domingo, 25 de março de 2018

Ni juge, ni soumise


(onde se faz a apologia da sala de cinema, 

quando queríamos era vender o filme)



Sou sincera: deixei de “ir ao cinema” há anos, na verdadeira acepção do termo. Ainda me lembro de ver os horários dos filmes no Expresso e de escolher a sala de cinema em função disso. Muitas vezes meia hora antes de o filme começar. Para quem vivia e estudava em Lisboa, a oferta era muitíssimo variada. Apesar de ser uma cinéfila assumida, nunca fui uma cliente fiel de uma sala de cinema específica. Quer dizer, só era fiel às pipocas da Lusomundo.

Até emigrar para a Bélgica. E descobrir o “nosso cinema”, em Stavelot. O Ciné Versailles, um dos mais antigos cinemas europeus. É uma pérola rara. Desde que foi inaugurado, em 1913, nunca interrompeu a programação. Nem sequer durante as duas grandes guerras. Creio que já devo ter falado nele algures por aqui. Muito provavelmente porque o dono é anti-pipocas. É dificílimo conseguir que nos venda um saco de pipocas. Com grande esforço, lá conseguimos arrancar-lhe um saquito se formos ver uma comédia francesa qualquer. Nos “filmes intimistas” não há cá pipocas para ninguém, para não incomodar o público. Mesmo que só haja mais uma pessoa na sala. O problema é que, quatro anos depois de termos começado a frequentar assiduamente o Ciné Versailles, ainda não percebemos bem o que é um “filme intimista”, que vai variando consoante os humores do dono bastante sui generis.

Contudo, é injusto reduzir esta sala de cinema à problemática tão comezinha das pipocas. Porque a verdade é que a programação é excelente. Estou desconfiada de que o dono também é anti-americano. Os filmes da moda e os “oscarizáveis” nunca por lá passam. Muito menos as comédias americanas. O cinema estrangeiro ligeiramente alternativo tem sempre primazia. Não raras vezes os filmes são legendados, o que é um autêntico achado neste país. Tanto mais que só pagamos 6 euros. E que o décimo filme é sempre gratuito. Há quase sempre um documentário em cartaz. Ou um filme de pendor ecológico/social. Não raras vezes, há sessões que contam com a presença do realizador e que acabam com um debate muito interessante, que lança novas pistas de interpretação. Mais do que uma sala de cinema, o Ciné Versailles é um clube de cinema que nos conquistou de imediato. Actualmente, já não frequentamos outros cinemas (excepto nas estreias do Starwars…). Deixamo-nos sempre levar pela programação semanal do Ciné Versailles, apesar de só ter duas salas. Em caso de dúvida, seguimos o conselho do dono. Nunca nos arrependemos. Quer dizer… houve dois filmes em que me arrependi amargamente de ter levado o Vasco. O dono e a esposa já nos conhecem bem e estão habituados a ver-nos chegar a quatro. O Vasco foi adoptado como “mini-cinéfilo” de excepção e tudo lhe é permitido. Neste último filme, ainda ponderei dizer qualquer coisa à saída … Tal como da outra vez, optei por me calar. Eu é que sou a mãe. Eu é que devia ter feito investigações mais apuradas antes de irmos ver “Ni juge, ni soumise”, de Jean Libon e Yves Hinant. Azar. O mal estava feito. A verdade é que a linguagem a dada altura era tão crua, que o Vasco não percebeu nada. Quanto à crueza da vida, faz parte… Coisa pequena adorou o filme, essa é que é essa. Tal como nós, os adultos. Ou o adolescente resmungão de serviço. Se por acaso passar por aí não percam, a sério. O trailer parece anunciar um filme, mas não é. Trata-se de um documentário feito com a juíza de instrução de Bruxelas, Anne Gruwez. É fenomenal. Das melhores coisas que tenho visto nos últimos tempos.



segunda-feira, 19 de março de 2018

À distância de um telefonema


(onde realizamos inesperadamente um sonho)


Andei uns tempos perdida, depois de ter desistido do meu projecto de empreendedorismo. Por um lado, sentia-me aliviada por ter conseguido perceber a tempo que aquilo não era exactamente a minha praia. Por outro lado, instalou-se um vazio que parecia interminável. Uma escuridão profunda. O que diabo iria eu fazer da vida, em termos profissionais? Sem os meus diplomas oficialmente aprovados, só podia aspirar a empregos sub-qualificados. Não me entendam mal… não tenho qualquer problema em arregaçar as mangas e fazer o que for preciso. Trabalhar nunca poderá ser sinónimo de vergonha, seja lá qual for o trabalho. O problema é que eu não sei fazer nada. Essa é que é essa. Toda a minha existência se construiu à volta da literatura e das línguas. Trabalhei numa biblioteca. E numa livraria. Muito brevemente, numa editora. Dei aulas de Português. Fui revisora. E tradutora. Geri uma livraria. Escrevi artigos. Especializei-me em tradução e legendagem. Fui professora de Inglês e Espanhol, enquanto o processo de reconhecimento dos meus diplomas na Bélgica estava em curso. Geri um centro de documentação e comunicação, onde ninguém se importava com as burocracias… E agora, o que raio poderia eu fazer?

Há já vários anos que andava calmamente à procura de um emprego a tempo inteiro, porque financeiramente era complicado viver apenas com um part-time. Quando a “minha” biblioteca encerrou devido ao corte de subsídios, eu já sabia que seria praticamente impossível voltar a ter a mesma sorte. Na Bélgica, é preciso diplomas para tudo. Qualquer tipo de trabalho é feito mediante habilitações próprias. Os poucos empregos que não exigem diplomas, requerem impreterivelmente experiência. Ora a única experiência profissional que eu tenho gira em torno dos livros, das línguas, do ensino… ou seja, de conhecimentos que têm mesmo de ser certificados. Eis-me, então, presa num círculo vicioso do qual era muito difícil sair. Foi precisamente para tentar dar a volta a este problema que enveredei pela ideia do abrir um negócio meu, na sequência do insistente pedido do gestor de carreira idealista.

E foi mesmo no escritório do Yannick que a situação se desbloqueou, como que por magia. Em Janeiro recebi uma das suas habituais convocatórias, para fazer um ponto de situação. Estávamos em amena cavaqueira, quando entrou um homem na sala com um passo decidido. Sem pedir licença, puxou de uma cadeira e instalou-se. Enquanto ligava o computador, apresentou-se rapidamente: “Sou o chefe do Yannick. Já sei que desistiu do seu projecto de empreendedorismo, por isso tenho aqui uns empregos para lhe propor…”. Em apenas cinco minutos, fiquei a saber que os Serviços Sociais tinham criado um estatuto especial que permite aos desempregados trabalharem até terem direito ao subsídio de desemprego por completo, deixando de depender de ajudas sociais. A entidade patronal são os próprios Serviços Sociais que põem o trabalhador à disposição de um empregador a custo zero. O tempo de trabalho varia consoante a idade, mas o salário é igual para todos. Tendo em conta que a maioria dos cidadãos que recebe ajudas do Estado é um caso perdido, sobram poucas pessoas aptas para o trabalho… como eu. “Você é normal”, lançou-me o Chefe de chofre. Pela primeira vez na minha vida, a normalidade deixou-me desconfiada. O facto de o pobre Yannick se contorcer pouco à-vontade na cadeira também acabou por levantar suspeitas. Como sou lesta de raciocínio (além de aparentemente normal), respondi: “Acho que estou a perceber... Vocês devem ter uma quota qualquer de inserção no mundo do emprego e, como a maior parte das pessoas que recebe ajudas sociais é pouco dada ao trabalho, eu vou ter mesmo que aceitar um emprego qualquer que me proponha, certo?” A cara do Chefe abriu-se com um sorriso: “Você faz parte dos 10% que sobram se excluirmos os toxicodependentes, os alcoólicos, os que não têm quaisquer estudos, os que sofrem de problemas psicológicos… e os completamente destituídos”. Fiquei a saber que os "destituídos" são pessoas incapazes de trabalhar por não terem qualquer tipo de hábitos de trabalho… tipo, as pessoas que já nasceram dependentes do sistema e que continuam a transmitir essa dependência crónica à progenitura. “A Rita não se insere em nenhum destes casos, pois não?” Ehhh… Acenei lentamente que não e preparei-me para a sentença. “Ora, bem me parecia! Então, vamos cá ver qual o emprego que mais lhe convém…”.

Vinte minutos volvidos, tínhamos esgotado todas as fantásticas ofertas do Chefe. O Yannick parecia cada vez mais infeliz. Eu estava a ficar ligeiramente em pânico. A “proposta” era clara: se eu não aceitasse nenhum trabalho, arriscava-me a ficar sem o complemento do subsídio de desemprego que os Serviços Sociais me pagam todos os meses. Decidi ser sincera. A ideia de voltar a trabalhar agradava-me imenso. Desde que desisti do meu projecto, caí numa espécie de buraco sem fim à vista. Além disso, o que estava a receber não era nenhuma fortuna. O problema é que eu não queria passar os próximos 18 meses da minha vida a fazer aqueles trabalhos horrorosos que o Chefe me propunha. Tenho oito anos de estudos universitários. De certeza que havia outros empregos onde poderia ser mais útil do que a limpar o lar de idosos da commune ou a trabalhar na lavandaria comunitária. O Chefe fechou o computador, tirou os óculos e perguntou com interesse: “Útil? É importante para si sentir-se útil?” O Yannick veio prontamente em meu auxílio: “Eu disse-te que a Mme Barroso era diferente…”. Tive de concordar. “Apesar de ser normal, como o senhor disse, sou ligeiramente diferente. Não andei a estudar tantos anos para fazer um trabalho que qualquer pessoa pode fazer melhor do que eu. Detesto fazer limpezas e passar a ferro. Aliás, em minha casa, não engomamos a roupa. Agora que penso, nem sequer sei onde pára o ferro de engomar… Mas, olhe, há outras coisas que eu posso fazer. Que eu sei fazer. Coisas úteis… Se o senhor me está a oferecer um emprego de bandeja, acho que é o momento ideal para encontrarmos algo que eu não conseguiria fazer de outra maneira.”

O Chefe parecia ter desistido definitivamente das suas fenomenais ofertas de emprego. O computador continuava fechado. “A sua perspectiva é interessante... Pode dar-me um exemplo de um sítio onde gostasse de trabalhar e se sentisse útil?” Respondi de rajada, sem precisar de pensar: “Há cinco anos que respondo a anúncios para trabalhar nos diferentes centros de acolhimento de refugiados. Já respondi a todo o tipo de ofertas de emprego, nunca fui sequer chamada para uma entrevista. A verdade é que não tenho qualquer experiência… Mas eu própria sou emigrante. Falo quatro línguas. E acho que podia ser útil. Olhe, por exemplo, há várias semanas que ando a acompanhar dois refugiados venezuelanos gratuitamente… podiam perfeitamente remunerar-me por este trabalho.” O Chefe largou a rir e pegou no telemóvel. “Já me podia ter dito. Colaboramos regularmente com o centro de refugiados estatal da nossa região. Temos lá seis pessoas a trabalhar neste regime. Vou ligar agora à directora a ver o que ela me diz…” A resposta chegou três semanas mais tarde. Chamaram-me para uma entrevista. O serviço de Animação e o serviço de Integração Local do Fedasil estavam interessados em “contratar-me”. Decidiram criar um posto especial feito à minha medida, uma espécie de elo de ligação entre os dois serviços. E eu – que para trabalhar no Fedasil, estava disposta a fazer qualquer tipo de trabalho – fiquei incrédula por terem encontrado uma função que é a minha cara. Sem nunca me terem visto, parecia que já me conheciam e que estavam decididos a tirar partido do meu "potencial". O que quer que isso fosse…

Comecei a trabalhar no dia 1 de Março. E todos os dias percorro os 10 minutos que me separam do trabalho com um sorriso de incredulidade. Ainda sinto vontade de me beliscar. Sabem o que é um sonho tornado realidade? É o meu trabalho no Fedasil. Tenho sempre pressa de chegar e saio sempre depois da hora. Se pudesse, passava lá a vida. Falo diariamente as minhas quatro línguas e esforço-me por aprender algumas palavras numas mil outras. Já ensinei jovens mães a fazer massagens aos seus bebés. E aprendi a fazer crochet com uma senhora idosa, que conseguiu reproduzir fielmente as pegas que a minha avó Clarisse fazia com as guitas de embrulhar as caixas dos bolos. Consegui fechar um projecto de colaboração com a academia de música onde andam os meus filhos, que me encheu de orgulho. Provei comida de terras longínquas, generosamente oferecida por quem nada tem. Aprendi danças folclóricas com os nossos residentes. E organizei uma palestra para pais solteiros. Fiz cartazes que são verdadeiras obras-primas, em diversas línguas. Ajudei as crianças a fazerem os trabalhos de casa, numa luta titânica contra a conjugação francesa. Participei numa festa de homenagem aos nossos voluntários. Animei um atelier sobre a situação dos refugiados para um 10º ano e consegui não chorar com as histórias que foram narradas. Enchi-me de medo a conduzir uma carrinha por montes e vales. Só passaram duas semanas e já fiz tantas coisas diferentes. Coisas que, afinal, eu sei fazer. Que eu consigo fazer. Que eu gosto de fazer. Coisas que fazem a diferença na vida de muitas pessoas. Mas, principalmente, na minha. Às vezes, sinto-me cansada só de pensar nos constantes malabarismos que tenho feito nos últimos cinco anos para nos conseguir sustentar. Não há meio de desencantar uma rotina qualquer, que me permita finalmente baixar as armas. Parece que sou constantemente obrigada a sair da minha zona de conforto. No fundo, sei que me queixo sem razão. A verdade é que eu gosto de recomeços. De novas oportunidades. De páginas em branco. De sonhos tornados realidade.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Um desabafo profético


(onde a crise dos refugiados

nos entra pela casa adentro sem pedir licença)



Desde que começou a crise dos refugiados que abriram diversos centros de acolhimento na nossa região. Com mais ou menos problemas, a integração foi-se fazendo. Aos poucos, habituámo-nos à sua presença constante. À sua presença discreta. A ponto de se confundirem com a paisagem, tornando-se quase invisíveis. O meu amor espanta-se sempre com as histórias que tenho para contar sobre as pessoas com as quais me vou cruzando. Porque para ele – e, sejamos sinceros, para a maioria dos belgas – a situação dos refugiados tornou-se quase banal. Normalizar o inimaginável talvez seja apenas uma questão de sobrevivência, não sei. Mas sempre achei preferível o desconforto à ignorância. Talvez porque também sou estrangeira. E me “refugiei” neste país. Talvez porque também sou mãe, o que mudou a minha forma de olhar para todas as crianças. Talvez porque adoro uma boa conversa. Uma boa história. Por isso, não perco uma ocasião. Um olhar compreensivo. Um gesto de simpatia. Uma ajuda a explicar algo. Quase sempre recebo um pequeno relato em troca. Saio sempre mais rica.

Sei que o Vasco tem uma menina síria na turma, a Zainab, que esteve dois anos sem ver o pai. Sei que na escola do Diogo há vários menores não acompanhados (nome frio que designa a triste realidade dos meninos que, sabe deus como, chegaram sozinhos a este país). Sei que, na minha rua, mora um químico que trabalhava para o Ministério do Ambiente num longínquo país africano e que, durante uma reunião em Bruxelas, soube que tinha a cabeça a prémio. Sei que, na cozinha do restaurante chinês onde costumamos ir, trabalha um jovem da Eritreia cujo maior sonho era tirar a carta. Sei que o senhor afegão que passeava de motoreta sem capacete com o filho pequeno já conseguiu arranjar casa (e capacetes). Sei que a carrinha do centro de refugiados vem buscá-los ao fim da tarde, na praça em frente à nossa casa. E que o motorista tem de contá-los cuidadosamente, porque se não o fizer leva sempre mais do que os que trouxe.

Até que a realidade com que nos cruzamos nos irrompe casa adentro. Peito adentro. As breves narrativas transformam-se numa longa história de vida com contornos dantescos, que aos poucos vamos descobrindo. Já não sentimos um ligeiro desconforto, mas uma profunda tristeza pela dor alheia.

Os belgas têm uma qualidade que eu adoro: são gente desenrascada. As coisas raramente são feitas by the book. O que interessa é o fim, os meios são de somenos importância. Bate-se às portas que for preciso bater até se obter resultados concretos. Porque de teorias está o mundo cheio. Foi assim que, um dia, acordei com o telemóvel. Atendi atarantada, ainda meio a dormir. Do outro queriam saber se era mesmo eu. Quem mais haveria de ser? Não-sei-quem tinha dito que eu falava espanhol. Queriam saber se falava mesmo espanhol. Confirmei. Outro-não-sei-quem tinha dito que talvez eu estivesse disponível para ajudar. Porque tinha chegado um casal de refugiados venezuelanos que estava completamente perdido. Que a assistente social encarregue do dossier queria fazer o ponto da situação, mas tinha esbarrado numa total incapacidade comunicativa. Eles não falavam uma palavra de inglês. Francês, muito menos. E o espanhol dela nem para as férias em Maiorca servia. Será que eu poderia ajudá-los… Tipo, dali a umas horas? No centro de acolhimento de transição da nossa commune. Claro que sim. Como não? Nessa tarde, conheci o Jaime e o Jhony. Um advogado e um artista plástico a quem a vida trocou as voltas demasiadas vezes. Com demasiada crueldade. E recusei-me a ser mera espectadora da situação. Nunca senti que estivesse a fazer grande coisa. Limitei-me a fazer aquilo que outros fizeram por mim, quando aqui cheguei sozinha com duas crianças.

Por circunstâncias várias, o Jaime e o Jhony entraram na nossa vida quando outras pessoas à minha volta também estavam a precisar de ajuda. O vizinho do lado, cuja mulher teve finalmente autorização para deixar o Congo (talvez valha a pena referir que foi o presidente da Câmara que conseguiu este feito, quando todas as vias legais se esgotaram). A minha amiga Christine, que andava a lutar com um grave problema de saúde. E, finalmente, a vizinha do outro lado, histérica com o seu novo cão. Quando dei por mim, andava esbaforida a gerir mil outras vidas. A marcar consultas de diversas especialidades. E a esperar séculos nas salas de espera. A tomar conta do cachorro, quando a vizinha ia trabalhar à noite. A ver preços dos voos de Kinshasa para os diferentes aeroportos aqui perto. A comprar o que faltava ao meu vizinho para melhor acolher a esposa. A correr todas as lojas da Cruz Vermelha de roupa em segunda mão. A servir de intérprete no percurso do combatente da burocracia belga… Às tantas, já não tinha tempo para mim, nem para os meus. Muito menos para as traduções que nestes últimos meses têm vindo em catadupa. O meu amor desabafou: “Ou arranjas depressa emprego a tempo inteiro ou esta casa vai acabar por se transformar no Exército da Salvação!”. Sem que nenhum de nós soubesse, estas palavras vieram a revelar-se proféticas. Afinal, ajudar os outros acabou por me salvar a mim. Mas isso fica para outra conversa, que este post já vai longo.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Há vida em marte

(onde se chega à conclusão que por vezes a idade faz milagres)


Filho crescido começou a tocar trompete com gosto. Finalmente. Esperei nove longos anos por este dia. É de referir que o Diogo foi forçado a escolher um instrumento de sopro, numa tentativa desesperada de resolver os problemas auditivos de que sofria em criança. [ se houver por aqui pais à procura de soluções não-cirúrgicas/não-invasivas – sendo a proposta mais comum a colocação de “tubinhos” – eis um excelente método alternativo que superou todas as expectativas, tendo em conta que o Diogo chegou a perder 70% de audição. ]
Aos sete anos, não lhe passava pela cabeça tocar nenhum instrumento… muito menos, trompete. Admito que, não fora a sugestão do otorrino, provavelmente nunca o teria incentivado a tocar um instrumento. Não era exactamente uma tradição familiar. Não só não tenho qualquer instrução musical, como sou completamente destituída de musicalidade. Mesmo. C.o.m.p.l.e.t.a.m.e.n.t.e.
Eis-nos, portanto, na academia musical lá do burgo, onde os miúdos aprendiam solfejo a martelo com adolescentes pouco dotados pedagogicamente e o instrumento com um militar. Não estou a brincar, o professor de trompete do Diogo era mesmo um militar no activo. Até eu tinha medo dos berros do homem (e tinha uma porta a separar-nos). Obviamente, os primeiros anos de aprendizagem foram um suplício. Para o Diogo e para mim. Suponho que também deve ter sido traumático para o cão, que tem uns ouvidos mais sensíveis do que os nossos.
Quando viemos viver para a Bélgica, estava fora de questão abandonar o trompete. Era o meu único meio de controlo da audição do Diogo. E, verdade seja dita, descobri-lhe outra otite serosa enquanto assistia a mais uma miserável aula. Foi, aliás, a última otite que o Diogo teve até hoje. Já lá vão quatro anos. Por isso, há algum tempo, disse-lhe que podia abandonar finalmente o malfadado instrumento de tortura (dele, minha, do professor… e do cão). Na última consulta de otorrino, ficou claro que as consequências dos problemas auditivos estariam sempre presentes (para seu grande desgosto, o Diogo nunca poderá fazer mergulho com o meu amor), mas estava curado. Há inúmeros problemas de ouvidos que se resolvem com o crescimento, pois o próprio canal e o tímpano também crescem.
Na altura da "libertação", já faltavam poucos anos para o Diogo obter o seu diploma de fim de curso, pelo que decidiu continuar. Apesar dos pesares. Sendo que… hum… o maior pesar neste caso nem sequer é a pouca aptidão para tocar trompete. Ou a falta de amor pelo bicho em si. A dificuldade intransponível do Diogo é o terror do público. Filho grande pura e simplesmente não consegue tocar à frente de ninguém. Nem sequer de mim, que sou mãe. E musicalmente surda.
Depois, da desgraça que foi o último exame de trompete – que era suposto ser, na realidade, o penúltimo exame da sua longa carreira de trompetista forçado – obriguei-o a entrar para a banda dirigida pelo professor. Tive mesmo de o obrigar, foi triste. Mas, depois, as coisas até correram bem. O Diogo acabou por decidir não se apresentar aos exames finais e chumbar de ano. Custou-me a aceitar, mas compreendi a decisão. E, aqui entre nós que ninguém nos ouve, achei-a bastante madura. Mas combinámos que iria fazer um esforço no ano seguinte para obter o diploma. Já que tinha chegado até ali, era uma idiotice desistir.
Este ano – o segundo último ano – as coisas não começaram bem. O professor do Diogo é algo especial, mas já nos habituámos. O senhor conhece bem o entusiasmo transbordante do seu aluno, mas acho que ficou ofendido por ver o amor crescente pelo órgão de igreja. Os ecos desta paixão devem ter-lhe chegado aos ouvidos, por portas e travessas. Não há muitos adolescentes na academia a escolher este instrumento. Tal como não há muitos que conquistem o professor de órgão (este, sim, verdadeiramente sui generis) e que obtenham excelentes notas. Um leigo ainda pode argumentar que o miúdo tem “talento”, mas um velho professor de música sabe perfeitamente que a excelência só se alcança com muito trabalho… trabalho esse que o Diogo sempre se recusou a fazer nas aulas dele. Com o instrumento dele.
Nos últimos meses, filho crescido arrastou-se até às aulas de trompete com um andar ainda mais pesaroso. O professor vingou-se airosamente dando-lhe partituras horrorosas, semana após semana. Que o Diogo se limitava a tocar mal e rapidamente uns minutos antes da aula. Decidi fingir que não via a desmotivação crescente do meu trompetista en herbe. Na vida, apanhamos com gente muito diferente pela frente. E temos que aprender a engolir sapos e a lidar com feitios lixados. Portanto, mandei-o calar e comer (que é como quem diz, calar e tocar). Disse-lhe que aprender a dar a volta ao texto faz parte do crescimento. Ele que se desenrascasse. Ou, então, que acabasse de vez com a história do trompete. Para minha surpresa, o adolescente decidiu continuar. [ ainda não tenho uma teoria muito definida, mas estou desconfiada que uma das vantagens do ensino precoce da música é dar endurance. Dir-me-ão que a prática desportiva na infância tem o mesmo efeito… ao que eu responderei que a única coisa que o hóquei fez pelo meu filho foi dar-lhe uma insegurança que perdura até hoje. Mas tanto no Diogo, como no Vasco, parece-me que a música os ensinou a persistir, a teimar, a repetir uma e outra vez sem desmoralizar. ]
A primeira decisão que o filho grande tomou para tentar dar a volta à situação foi retomar os ensaios com a banda do professor de trompete. E ensaiar mais as músicas que por lá se tocam. O sadismo do professor não vai ao ponto de obrigar a "Ardennaise" em peso a tocar músicas merdosas. E, aos poucos, a coisa deu-se… O Diogo tem andado a tocar quase todos os dias. Há uns tempos, a vizinha mandou uma mensagem a perguntar se era um CD que estávamos a ouvir ou o Diogo. Dá gosto ouvi-lo, claro. Mas, principalmente, dá gosto ver o prazer com que toca. Não faço ideia se, no final do ano, conseguirá tocar publicamente e obter o tão almejado diploma. Mas a verdade é que também já não me interessa muito. Neste momento, nada me parece mais importante que vê-lo a tocar tão bem o instrumento que lhe mudou a vida. Hoje, a música é uma parte fundamental da existência do Diogo. Fala, respira e bebe música diariamente. Passa horas infinitas a tocar órgão. A ouvir música de todos os géneros, especialmente clássica. Vai frequentemente à Opèra de Liège. Conseguiu convencer a namorada a voltar às aulas de violino, que tinham ficado pelo caminho há uns anos. Se o Vasco conseguir acabar este ano o curso de solfejo deve-o sem dúvida à ajuda (algo selvagem, é certo) do irmão. E eu, que não tenho uma única célula musical, fico feliz por ver que o primeiro amor-ódio começou a receber a atenção que merecia.


( como não podia deixar de ser, filho crescido está escondido atrás do microfone 
e do suporte das partituras… e recusou-se a usar aquelas calças muito pouco discretas! )

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Nós, cinco anos depois


(onde se atravessa momentos de turbulência e se sai fortalecido… 

para sempre)



Este nosso quinto ano foi difícil. Não sei se terá sido o mais difícil, mas andou lá perto. O mais estranho é que, quando olho para trás, não encontro assim tantos motivos que o justifiquem. Há a questão do desemprego, claro. Estar desempregado é das piores coisas na vida. Porque nos desocupa os dias e a mente. Porque nos corrói a auto-estima e os sonhos. Porque nos faz ficar noites a fio acordados a fazer contas de subtrair, com o medo a trepar por nós acima até nos tirar o ar. Principalmente, o desemprego obriga-nos a olhar para o futuro e a ponderar mudanças. A traçar novas rotas. E isso, num casal em que um quer ficar e outro ir, abre brechas sinuosas. A liberdade individual esbarrou contra a vontade comum. Tivemos muita dificuldade em admitir que o “nós” se tinha sobreposto ao “eu” e ao “tu”. O amor tinha tomado as rédeas da situação, sem pedir licença. Sem aviso prévio. Sem consentimento mútuo. Algures, começou a escrever-se uma história que escapou por completo ao plano inicialmente delineado. Fazer cedências desmedidas implicava que estávamos a construir um projecto a longo prazo. Ora nós tínhamos imaginado isto como um conto. Nunca um romance. Para sempre era demasiado tempo para mim. Mas, um dia, ele disse com uma simplicidade desarmante: “Vou amar-te para sempre”. Não senti cosquinhas na barriga. Senti o medo a gelar-me por dentro. Sei lá eu se consigo amar alguém para sempre. Mas, depois, pensei que tinha a certeza inabalável de que amaria eternamente os meus rapazes. Sem questionamentos, nem cobranças. Um amor bastante simples, afinal. Que se alimenta a si mesmo, pela inegável razão de existir. Não respondi. Ou melhor, dei-lhe um beijo (que é a sempre a melhor forma de encerrar uma conversa quando não sabemos o que dizer).

Depois, houve a questão do Diogo. Há largos meses atrás, o filho mais velho adolesceu bastante. O que envolveu algumas dores de crescimento. Sobretudo, nos adultos da casa. Quando não se tem mais ninguém à volta, somos saco de pancada para toda a revolta juvenil. Mas eu vi isso com bons olhos. Vejo sempre. Os miúdos só se conseguem opor a um adulto em quem tenham absoluta confiança. Estou convicta de que, sem amor, não há oposição juvenil possível. E a verdade é que ninguém cresce sem primeiro travar as suas batalhas interiores. Cada vez mais acredito que adolescer é semelhante a qualquer outro estádio do desenvolvimento infantil. Só quando uma etapa está consolidada é que se pode passar à aquisição da seguinte. Nenhuma criança consegue lutar em todas as frentes em simultâneo. O problema é que isto dificulta a compreensão do verdadeiro problema. Como quando eles passavam uns dias rabugentos e uma pessoa não percebia patavina até entrever um novo dente a romper. Com o Diogo foi assim. Tivemos um período de turbulência inesperada. Incompreensível. Limitei-me a seguir o meu instinto e a fazer o que sempre fiz: dou o peito às balas, confiante de que a seu tempo perceberei. Mas esqueci que há instintos que se sobrepõem ao meu. Tipo, a lei do mais forte. A dada altura, havia nesta casa dois machos-alfa e a coisa descambou. Filho crescido irrompia em gritos e eu ralhava. Aparentemente, não ralhava o suficiente. Ou com a autoridade necessária. Passada a tempestade, o gabinete de crise reunia. E, invariavelmente, o meu amor ralhava comigo. Com o Diogo, nunca se zangou. Porque não era pai. Porque tinha medo de exagerar, dada a inexperiência. Porque achava que há coisas que só se resolvem mostrando quem manda. Que se lixe a diplomacia. E a teoria dos touchpoints aplicada à adolescência. Às tantas, fartei-me. Isto parecia uma casa de malucos. E, pela primeira vez, tratei o Diogo como um adulto e abri o jogo. Disse-lhe que o comportamento dele estava a destruir a minha relação amorosa (o comportamento dele, não ele). E que, entre um filho e um homem, eu escolheria sempre um filho. Não porque houvesse muitos homens disponíveis. Para mim, só havia este. Sabia que nunca mais amaria outro (afinal, a resposta estava dada). Acima de tudo, sabia que nunca mais encontraria outro que os amasse tanto. Portanto, ele que pensasse bem no assunto. Ou mudava rapidamente de atitude ou perderia uma das pessoas que mais o amava no mundo. Não que ela o fosse abandonar, mas porque eu não aguentava tê-los aos dois debaixo do mesmo tecto. Não sei o que se passou na cabeça do meu filho mais velho. Tão depressa como tinha surgido, a tempestade amainou por completo. E, quando a poeira assentou, apareceu um novo Diogo, mais crescido. Pronto para travar a verdadeira batalha que estava por trás de tudo isto, pois estava seguro do afecto que nos unia.

Entretanto, começou um novo processo judicial. Em teoria, sou apenas o braço armado do meu filho menor de idade. Na prática, sou eu que recebo todos os golpes. Desta vez, recebi vários golpes baixos. Sujos, muito sujos. O meu amor continua a servir-nos de escudo e a ser o homem do leme. Nunca dá parte fraca. Raramente se queixa. É um manancial inesgotável de ideias e recursos. De risos, quando só nos apetece gritar. Há muito que deixei de chorar. Mas sinto uma raiva surda crescer aqui dentro. Este Verão, senti que falhei em relação ao meu filho crescido. Que não fui capaz de protegê-lo como devia. Por agora, creio que acabou. Tenho a certeza de que a Justiça nos fará justiça. O meu amor tem algum receio, mas esconde-o bem. Só eu conheço as duas rugas profundas que teimam em marcar-lhe o sobrolho, quando se põe a matutar. E os abraços apertados que agora dá ao Diogo a toda a hora. Têm sido tempos tão conturbados, tão espiados, tão extenuantes. Nunca mais tivemos momentos só nossos. Exclusivos. E fazem-nos tanta falta! Eu reclamo mais do que ele, porque sinto que não é justo. Digo-lhe frequentemente que outro qualquer já teria içado vela há anos. Quando estou mais bem-disposta, digo-lhe que nos vamos separar para dividir o mal pelas aldeias numa guarda alternada de crianças e problemas. Ele responde logo que sim, mas não está a brincar. Se nos separássemos mesmo, o meu amor seria incapaz de abandonar os dois rapazes que lhe roubaram o coração empedernido. Cinco anos volvidos, este homem mudou tanto por nós. Por eles. Não sei se se terá tornado uma pessoa melhor. Sem dúvida, teve de aprender a viver com o coração fora do peito. E isso é dificílimo. Porque ele cuida ferozmente dos que tomou como seus. Nós, a tribo.

Quando me ponho a pensar, cinco anos parece-me tão pouco para o muito que já vivemos. Este último ano foi sofrido, mas creio que nos trouxe a maturidade que faltava à nossa relação. Para sempre já não me assusta tanto. Tornou-se uma ideia reconfortante. Porque a verdade é que continuamos apaixonados, apesar de nos amarmos. Continuamos a adormecer todas as noites enroscados. A minha cabeça aninhada no buraquinho do ombro dele, feito exactamente à minha medida. E acordamos sempre nos braços um do outro. Ele diz que é o melhor momento do dia. Todas as manhãs pomos a mesa do pequeno-almoço só para nós. Quando um cozinha o jantar, o outro lava a loiça. Nunca discutimos tarefas, deveres, boleias, limpezas, decisões, agendas, dinheiro. Aliás, nunca discutirmos sobre coisas comezinhas. Há um entendimento tácito sobre inúmeros assuntos. E temos sempre conversa. Muitas vezes, ficamos noite adentro a falar sobre coisa nenhuma. Somos os melhores amigos. Passamos a vida na brincadeira. Nunca me ri tanto como nestes últimos cinco anos. Tentamos não nos levar muito a sério. Ver o lado cómico da vida. Quando nos sentimos submergir pela raiva, arquitectamos homicídios imaginários que nunca passarão de palavras. Nenhum de nós é capaz de matar uma formiga. Continuamos a projectar férias e passeios, que vamos realizando à medida das nossas possibilidades mais reduzidas. Vivemos felizes com os rapazes, mas gostamos de fazer planos para quando estivermos finalmente sós. Já só faltam x anos, dizemos muitas vezes. Somos despojados. Cultivamos diariamente o despojamento. Somos aquilo que somos, nunca seremos escravos daquilo que temos. Por isso, precisamos de muito pouco para sermos felizes. Às vezes, basta-nos um passeio à volta do lago quando o sol aparece. Umas panquecas de banana no Domingo à tarde. Todas as viagens de carro feitas de mãos dadas. Um café quentinho a ver a neve cair. O telefonema que ele faz invariavelmente quando estamos longe um do outro. Sabermos que amanhã é o nosso dia (sim, para nós funciona na perfeição termos um dia fixo para fazermos aquelas coisas que os adultos gostam de fazer quando se apanham a sós). A nossa série à noite, enroscados no sofá com o cão. É o nosso reset todas as noites, antes de subirmos. Para mim, é o melhor momento do dia. Chaque jour sufit sa peine, costuma ele dizer. Acredito que conseguimos sobreviver incólumes a estes anos todos exactamente porque compartimentamos tudo e criámos uma gaveta específica onde, no final de cada dia, deixamos o que mais nos fez sofrer. Nunca nos deitámos zangados. Nunca. Tal como nunca levamos os problemas para o nosso quarto. Fica tudo em baixo, no fundinho da tal gaveta. Deste modo, todos os dias há um renascimento. Algo feliz que começa. Uma esperança que se renova. Este amor que se mantém inextinguível, apesar das mudanças. (graças às mudanças?)



terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Os últimos seis meses

(onde se faz um balancete da tribo)


Celebrámos os 16 anos do Diogo em Metz. Pela primeira vez desde que estamos na Bélgica, filho crescido não tinha um exame no seu dia de anos, porque era fim-de-semana. Obrigámo-lo a ir passear até França com os livros atrás. Acabou por admitir que tinha sido uma óptima ideia intercalar o estudo com passeios turísticos. Bebeu a sua primeira cerveja, com um orgulho desproporcional ao teor alcoólico da mesma. Antes do jantar festivo num restaurante indiano de duvidosa qualidade, um telefonema ditou o início do fim.

Coisa pequena enfrentou os exames finais com uma displicência inusitada. E uma enorme lazeira. A pré-adolescência apareceu sem aviso prévio e apanhou-nos a todos de surpresa.

A queixa por ofensa à integridade física do meu filho mais velho foi finalmente arquivada. Quatro anos mais tarde. Porque entretanto o “ofendido” fez 16 anos e o tribunal achou por bem perguntar-lhe de sua justiça. Pobres crianças que efectivamente são espancadas em Portugal. Talvez o problema ficasse resolvido se, em vez de se limitarem a arquivar falsas-queixas, começassem a criminalizar os falsos-queixosos para ver se os dissuadiam. A longo prazo, talvez restassem apenas as queixas verdadeiras e se conseguisse acudir às reais vítimas em tempo útil.

O Diogo desistiu de fazer o exame final do curso de trompete. Eu aceitei. Contrariada, mas aceitei. O meu amor, nem por isso. Tivemos a nossa primeira discussão sobre os rapazes. Foi estranho. Mas ambos concordámos que devia continuar a tocar na Ardennaise.

O ano lectivo terminou. E eu suspirei de alívio. Passei nove meses a correr contra o tempo, sem nunca me conseguir organizar totalmente. Os rapazes tiveram bons resultados nos exames, mas nem esperámos por Julho para fugir de férias.

Passámos duas semanas de sonho nos Açores. Dou por mim a rever aquelas fotografias vezes sem conta. Pedacinhos de felicidade em imagem.

Fizemos obras em casa. Dias e dias e dias a fio. Jurei para nunca mais (entretanto, já me passou). Ficou linda! Cada vez gosto mais desta casa. O nosso lar. Se pudesse ficava aqui para sempre.

O meu irmão Pedro mudou-se para Eindhoven. Agora, o meu bebé-tóxico está apenas a duas horas de distância. Por ironia do destino, o Belga é o único que o compreende quando desata a falar holandês (felizmente a toxicidade tende a desaparecer à medida que crescem).

Em Agosto, rumámos ao sul da Bélgica. E ao Norte de França. Ainda não sabíamos, mas passámos as nossas últimas férias do ano a dois, sem filhos. Estivemos uns dias num hotel que parecia saído dos anos oitenta. Foi muito giro. Demos bons passeios. Descansámos. Comemos divinalmente.

Em França, vimos um espectáculo de aves de rapina absolutamente fabuloso.

Filho crescido decidiu que não queria passar mais férias com o outro lado e, mal fez 16 anos, escreveu ao tribunal a dizer isso mesmo. Responderam-lhe que teria de continuar a ir até haver novo processo. Fiz-me de desentendida. Durou até chegarem de férias, no final de Agosto. E eu receber um e-mail a dizer que o Diogo era um criminoso, um ladrão, um delinquente, um cobarde, um alienado… apenas porque tentou levar às escondidas o violininho que o irmão pede em vão há anos para trazer. Percebi que o inimigo tinha mudado de táctica. Filho crescido passou de bestial a besta, para poder servir de prova na “fábula dos alienados”. Salva-se o Vasco, que agora terá absolutamente de ser resgatado in extremis da loucura que reina nesta casa. Se esta gentalha dedicasse metade do seu tempo a escrever argumentos de telenovelas ainda ficava rica. Assim, acabam apenas ridicularizados na barra do tribunal.

No início de Setembro, estiveram uns dias de sol maravilhosos. Durante os fins-de-semana, fingimos que estávamos de férias. D. Fuas Roupinho foi a banhos e, pela primeira vez, não entrou em pânico.

Filho pequeno iniciou o seu último ano na escola primária e eu senti um alívio indescritível. Seis anos. Finalmente, chegámos aqui. Os anos mais difíceis ficaram para trás. Consegui driblar os horários das suas mil actividades extracurriculares, não sei bem como. Olhando para trás, parece-me um feito incrível.

Filho crescido iniciou o seu penúltimo ano. Parece que anda num daqueles colégios dos livros da Enid Blyton. No 11.º ano, os alunos começam a ter favores especiais. Organizam festas e actividades. E detêm uma sala exclusiva, onde podem aquecer o almoço e comer. Os professores já os tratam como gente grande, mas ainda não consigo vê-lo voar sozinho...

A minha irmã mais velha veio visitar-nos com o meu sobrinho. Gostei tanto de a ter cá. Acho que é das pessoas que mais falta me faz, nesta nova vida que creei.

Como prenda de despedida, a minha irmã Ana ofereceu-me uma fritadeira de ar pulsado e eu reconciliei-me com os rissóis de peixe. Há “fritos” que resultam melhor do que outros, é verdade. Aos poucos, vamos aprendendo. As batatas fritas ficam uma delícia! O mamarracho de fazer “fritos” saudáveis foi sem dúvida a grande descoberta deste ano.

Finalmente, fui andar de balão. À terceira, foi de vez! Aproveitámos para passar o fim-de-semana em Waterloo. Sobrevoámos aquela zona ao pôr-do-sol. Admito que tive um ligeiro ataque de pânico quando vi a quantidade de pessoas que ia trepar para dentro do cesto gigante. Aquilo mais parecia um autocarro voador. Mas quando estamos no ar, cada grupo no seu cestinho separado, até nos esquecemos uns dos outros. Foi muito giro.  E durou uma eternidade. Contrariamente ao que imaginei, não fiquei enjoada (o meu amor explicou porquê, mas eu ainda estava na fase pós-pânico e não percebi nada). Nem com medo. Nem com nada. Estamos a tantas centenas de metros do chão e a vida parece que pára. Só nós e a paisagem. Nós e o céu a pintar-se de cor-de-rosa. Beijei o meu amor ao pôr-do-sol, foi o ponto alto da viagem.

Fui uma boa vizinha este ano. Ajudei os que estão literalmente à minha volta. O meu amor ainda não se habitou a ver entrar vizinhos pela porta traseira, mas eu adoro o pragmatismo da vida no campo. É tão mais fácil e rápido recorrer a quem está mesmo ao nosso lado. Simplifica a existência de todos nós. Faz-me sentido.

O Vasco agora faz parte do grupo dos mais velhos da escola e isso continua a parecer-me estranho. Eu, que ainda o vejo tão pequeno. Percebi que o melhor amigo, basquetebolista ucraniano, deve ter a mesma opinião. Vejo-o muitas vezes no recreio, com um braço protector à volta do meu baixote. No outro dia, a escola organizou uma actividade ao ar livre. Coisa pequena liderou um grupo de cinco crianças mais novas num percurso aventureiro através dos bosques. Pior que temer que nunca mais encontrasse o caminho de volta, foi pensar que podia perder alguém pelo caminho. Enchi-lhe a mochila de doces e avisei-o que os fosse distribuindo amiúde, de modo a manter o rebanho motivado. E unido. Principalmente, unido. Chegaram em penúltimo lugar, mas vinham todos. Em que condições, não sei. Provavelmente, sedentos. E com um pico de glicémia. Mas não faltava ninguém. Foi uma vitória. Filho pequeno chegou a casa com aquele seu sorriso.

Fiquei oficialmente desempregada. E não voltei a ter traduções. Tive muito tempo para pensar. Demasiado tempo para pensar. Alturas houve em que perdi um bocado o Norte, de tão à deriva que andei. Entretanto, uma luz ao fundo do túnel começou a delinear-se devagarinho. Às vezes, parece que temos de sofrer um bocadinho para crescer.

Iniciei o curso de empreendorismo e, na recta final, percebi que não era nada daquilo que eu queria. Talvez a formação em gestão e contabilidade tenha contribuído ligeiramente. Não me custou nada abandonar aquele sonho. Não sou uma empreendedora. Acho que o auto-conhecimento é sempre uma mais-valia. Quanto mais me conheço, mais sei o que quero (e, principalmente, o que não quero). Além disso, encontrei pessoas extraordinárias. Aprendi imenso. Continuo a pensar que o mais importante é o acto de aprender, não o conteúdo da aprendizagem. Gosto de aprender.

Neste último ano, deixei cair definitivamente as barreiras. E ganhei o afecto inesperado de uma nova família. Boas pessoas geram boas pessoas. O meu amor tem os melhores pais do mundo.

O Vasco e eu passámos um dia mãe-filho fantástico, no jardim zoológico de Aachen, na Alemanha. Descobrimos que há recintos de animais com uma espécie de entrada para humanos, que não permite a saída da bicharada. Muito giro.

Tornei-me auto-suficiente em inúmeras coisas: alimentação, produtos de limpeza, produtos de higiene… Depois, percebi por que razão a Béa Jonhson perde tanto tempo no seu livro a falar dos erros e exageros iniciais. Encontrar o ponto de equilíbrio é essencial a uma gestão saudável do tempo. Acho que estou no bom caminho.
[ fiambre caseiro... acabaram-se os corantes, o açúcar, o excesso de sal e os sulfitos ]

O meu amor e eu vivemos a nossa primeira separação. Durou uma semana. “Cinco dias”, corrige o meu amor. “Quase uma semana”, defendo eu. A verdade é que me pareceu interminável. O Vasco nem deu por isso, porque o meu amor está muitas vezes fora. O Diogo gozou connosco. Passou uma (quase) semana a dizer que não sabíamos viver um sem o outro. Tinha razão. Pagámos a factura de termos construído uma relação baseada na premissa da liberdade individual. Cinco anos volvidos, nenhum de nós queria continuar nessa direcção. As coisas mudaram. Nós mudámos. Mas esquecemo-nos de o confessar. Ou tivemos pudor.

Na noite em que o meu avô António faleceu, o meu amor voltou. Numa hora, apenas. Secou-me as lágrimas. Comprou-me os bilhetes de avião. Fez-me a mala. Levou-me ao aeroporto. E aguentou as pontas em nossa casa durante uns dias. Quando regressei, falámos. Mas não dissemos grande coisa. Decidimos que para onde um de nós for, o outro irá atrás. Sempre. Porque só fazemos sentido juntos. Pela primeira vez, admitimos que “sempre” já não é demasiado tempo.

Encarei a morte do meu avô com alívio. Quando a cabeça já não está cá, o corpo também deve ir indo. É uma questão de respeito pela pessoa que outrora ocupou aquele receptáculo (e mais uma vez respirei de alívio por viver num dos países mais progressistas do mundo em termos de eutanásia). Apesar de tudo, há um sentimento de perda. Perda de memórias de uma infância que parece cada vez mais distante, onde os meus avós paternos foram tão presentes e importantes. Perda de um futuro cada vez mais próximo, na velhice dos meus pais que não posso acompanhar de perto. Salva-se a família. A de sangue e a de coração, ambas tão chegadas. Gostei muito de ver a família toda. E de ver que nos unimos sempre que um bocadinho do nosso mundo desaba.

Filho pequeno celebrou os seus 11 anos como os ciganos, com uma festa de três dias. Enfim, foram três dias separados por várias semanas. A primeira festa foi no Halloween, com a casa decorada a rigor para receber os amigos. A segunda, em casa dos pais do meu amor. A terceira, num restaurante brasileiro em Dublin (o bolo de aniversário foram brigadeiros). A quarta, quando chegámos. A última, na escola. Em Dezembro. Não somos supersticiosos, o Vasco pode fazer anos antes e depois da data marcada, ninguém se incomoda. Bem vistas as coisas, também andei nove meses grávida a celebrar a vida.

Este ano, começou a nevar no Outono. Felizmente, ainda não tinha tido tempo para trocar os pneus-neve do Inverno passado, pelo que não fui apanhada desprevenida como é hábito.

Em Novembro, estivemos em Dublin com o tio Rui. Não ficámos no hotel do Bono só porque não calhou… arranjámos outro, um nadinha mais em conta. J Mas foi espectacular. Fazia um frio de rachar, embora estivesse sol. O meu amor arrastou-se estoicamente atrás de nós, a espirrar desalmadamente. A última vez que o vi ter uma crise alérgica destas foi em Frankfurt… com o Rui. Acho que ele é alérgico ao Rui.

Nos últimos seis meses, fiz dez viagens de avião. Tão cedo não me apanham noutro. Hum… pelo menos, antes de Abril.
  
O Saint-Nicolas trouxe-nos imensas prendas e umas camisolas pirosas de Natal, com que andava a sonhar há anos. Iniciámos uma tradição pirosona do melhor e fizemos furor no jantar de Natal.

Passámos o Natal na Holanda com a avódrasta, o tio Pedro e o bebé-tóxico. Comemos bacalhau da Deolinda. Só faltou mesmo a Deolinda. Mas o bacalhau da Lena à Deolinda estava excelente, é preciso que se diga. Nunca tinha oferecido uma prenda que tivesse tanto sucesso como a garagem que dei ao Luca. Foi o cabo dos trabalhos montar aquele mamarracho com ele a brincar ao mesmo tempo.

Pela primeira vez, chegámos ao final do ano com saldo positivo em termos de lixo. Em Janeiro, a Commune distribui os sacos que julga necessários ao agregado familiar. É unânime que o Estado belga tem um optimismo a raiar o utópico em relação aos dejectos dos cidadãos. Não conheço ninguém que não precise de começar a comprar sacos do lixo lá para o Verão. Este ano, sobrou-nos quase um rolo de sacos. Para mim, foi uma das nossas maiores vitórias ecológicas de 2017.

Deixei-me de merdas e permiti que o pai do meu amor me salvasse um dente que estava dado como perdido. Ele fez magia. Fez uma obra de arte, na verdade. E ficou tão feliz e orgulhoso! Pela primeira vez na minha vida, larguei à gargalhada na cadeira do dentista. Retribui com uma visita ao circuito de fórmula 1 de Spa-Francorchamps (com direito a dar umas voltinhas na pista num carro de corrida).

Coisa pequena começou a fazer o trajecto casa-escola-casa completamente sozinho. Nunca chegou atrasado. Ainda não perdeu a chaves, nem o chapéu-de-chuva. Nem a mochila. Nem o casaco. Não vos consigo dizer o quão orgulhosa estou deste feito.

Com tantas viagens a Portugal, estes últimos seis meses estive muito próxima da minha amiga Ana. A eterna madrinha de tudo e mais alguma coisa. Companheira de inúmeras aventuras (a última das quais bastante rocambolesca, que a malta recusa-se a crescer). A sua ausência custa-me todos os dias.

O Vasco iniciou o seu último ano do curso de solfejo, com uma voz ainda tão cristalina! E o primeiro no conjunto de cordas, ao lado de vários adultos. Diz que é demasiado falador. Ralhei com ele. Parece que não melhorou.

Desisti de fazer bolos paleo…e, com isso, da alimentação paleo tout court. Fazer bolos sem usar açúcar ainda consigo. Fazer bolos sem usar farinha de trigo é impossível. Parabéns a quem consegue, sois os maiores! Eu capitulei. Prefiro que os miúdos continuem a deliciar-se com os lanches que mando para a escola e não se atirem a outros doces para compensar. Os meus bolos nunca serão tão saudáveis como eu gostaria, mas são bons. E caseiros. Há que saber as batalhas que queremos ganhar.

Iniciei mais uma batalha judicial. Desta vez, a pedido de um filho. Mas o outro também quis fazer ouvir a sua voz. Sei que não será a última. Porque os rapazes crescem e isso implica mudanças. Infelizmente, até agora as mudanças vão sempre no sentido de se aferroarem a nós como carrapatos. Lá haverá o dia em que hão-de começar a querer viajar sozinhos por esse mundo fora. Aguardo com ansiedade.

O Diogo trabalhou bastante nestes últimos tempos. Sempre com brio e profissionalismo. Mesmo doente. Mesmo em dias de enchente, quando abriram as pistas de esqui na Baraque. Mesmo quando só lhe apetecia passear com a namorada. Continua a adorar aquele restaurante como se fosse a sua segunda casa (terceira, vá… a segunda casa é a escola). Mais do que dinheiro, ganhou maturidade. E comprou uma vespa em segunda mão com as suas economias. Tento calar o medo comprando capacetes luminosos e luvas à prova de bala. Não resulta lá muito bem…

Mandei pela primeira vez o filho pequeno sozinho para Portugal. Começou a chorar ainda nem tínhamos saído de casa. Encerrei 2017 a fazer um das coisas mais difíceis deste longo ano. E a semana seguinte não foi mais fácil. Recebemos dezenas de SMS todos os dias. Cada um de nós. Dezenas. “ET phone home”, repetiu ele à exaustão. E não pude deixar de pensar que este meu menino tem uma sensibilidade enorme para interpretar emoções. Possa essa ser a sua maior arma de defesa.

Celebrámos o ano novo a fazer voluntariado. Filho grande e a namorada decidiram acompanhar-nos. À meia-noite, estava cada um para seu lado. Eu estava a carregar pilhas de loiça para a cozinha. Não houve tempo para pedir desejos. Achei que foi mesmo bem passado. O meu amor derreteu corações à sua passagem e estive quase, quase para dizer “É meu” (mas tive vergonha). Filho grande recebeu rasgados elogios. Dessa vez, disse logo que era meu sem vergonha nenhuma. Humildade em demasia não faz bem a ninguém. Estranhamente, parece que os jovens gostaram muito desta passagem de ano altruísta (o facto de terem enchido o bandulho de permeio deve ter tido uma enorme contribuição).