(onde a crise dos refugiados
nos entra pela casa adentro sem pedir licença)
Desde que começou a crise dos
refugiados que abriram diversos centros de acolhimento na nossa região. Com
mais ou menos problemas, a integração foi-se fazendo. Aos poucos, habituámo-nos
à sua presença constante. À sua presença discreta. A ponto de se confundirem
com a paisagem, tornando-se quase invisíveis. O meu amor espanta-se sempre com
as histórias que tenho para contar sobre as pessoas com as quais me vou cruzando.
Porque para ele – e, sejamos sinceros, para a maioria dos belgas – a situação
dos refugiados tornou-se quase banal. Normalizar o inimaginável talvez seja
apenas uma questão de sobrevivência, não sei. Mas sempre achei preferível o
desconforto à ignorância. Talvez porque também sou estrangeira. E me “refugiei”
neste país. Talvez porque também sou mãe, o que mudou a minha forma de olhar
para todas as crianças. Talvez porque adoro uma boa conversa. Uma boa história.
Por isso, não perco uma ocasião. Um olhar compreensivo. Um gesto de simpatia.
Uma ajuda a explicar algo. Quase sempre recebo um pequeno relato em troca. Saio
sempre mais rica.
Sei que o Vasco tem uma menina síria
na turma, a Zainab, que esteve dois anos sem ver o pai. Sei que na escola do
Diogo há vários menores não acompanhados (nome frio que designa a triste
realidade dos meninos que, sabe deus como, chegaram sozinhos a este país). Sei
que, na minha rua, mora um químico que trabalhava para o Ministério do Ambiente
num longínquo país africano e que, durante uma reunião em Bruxelas, soube que tinha
a cabeça a prémio. Sei que, na cozinha do restaurante chinês onde costumamos ir,
trabalha um jovem da Eritreia cujo maior sonho era tirar a carta. Sei que o
senhor afegão que passeava de motoreta sem capacete com o filho pequeno já
conseguiu arranjar casa (e capacetes). Sei que a carrinha do centro de
refugiados vem buscá-los ao fim da tarde, na praça em frente à nossa casa. E
que o motorista tem de contá-los cuidadosamente, porque se não o fizer leva
sempre mais do que os que trouxe.
Até que a realidade com que nos
cruzamos nos irrompe casa adentro. Peito adentro. As breves narrativas
transformam-se numa longa história de vida com contornos dantescos, que aos
poucos vamos descobrindo. Já não sentimos um ligeiro desconforto, mas uma profunda
tristeza pela dor alheia.
Os belgas têm uma qualidade que eu
adoro: são gente desenrascada. As coisas raramente são feitas by the book. O que interessa é o fim, os
meios são de somenos importância. Bate-se às portas que for preciso bater até se
obter resultados concretos. Porque de teorias está o mundo cheio. Foi assim
que, um dia, acordei com o telemóvel. Atendi atarantada, ainda meio a dormir.
Do outro queriam saber se era mesmo eu. Quem mais haveria de ser? Não-sei-quem
tinha dito que eu falava espanhol. Queriam saber se falava mesmo espanhol. Confirmei.
Outro-não-sei-quem tinha dito que talvez eu estivesse disponível para ajudar.
Porque tinha chegado um casal de refugiados venezuelanos que estava
completamente perdido. Que a assistente social encarregue do dossier queria
fazer o ponto da situação, mas tinha esbarrado numa total incapacidade
comunicativa. Eles não falavam uma palavra de inglês. Francês, muito menos. E o
espanhol dela nem para as férias em Maiorca servia. Será que eu poderia
ajudá-los… Tipo, dali a umas horas?
No centro de acolhimento de transição da nossa commune. Claro que sim. Como não? Nessa tarde, conheci o Jaime e o
Jhony. Um advogado e um artista plástico a quem a vida trocou as voltas demasiadas
vezes. Com demasiada crueldade. E recusei-me a ser mera espectadora da situação.
Nunca senti que estivesse a fazer grande coisa. Limitei-me a fazer aquilo que
outros fizeram por mim, quando aqui cheguei sozinha com duas crianças.
Por circunstâncias várias, o Jaime e o
Jhony entraram na nossa vida quando outras pessoas à minha volta também
estavam a precisar de ajuda. O vizinho do lado, cuja mulher teve finalmente autorização
para deixar o Congo (talvez valha a pena referir que foi o presidente da Câmara
que conseguiu este feito, quando todas as vias legais se esgotaram). A minha
amiga Christine, que andava a lutar com um grave problema de saúde. E,
finalmente, a vizinha do outro lado, histérica com o seu novo cão. Quando dei
por mim, andava esbaforida a gerir mil outras vidas. A marcar consultas de
diversas especialidades. E a esperar séculos nas salas de espera. A tomar conta do cachorro, quando a vizinha ia
trabalhar à noite. A ver preços dos voos de Kinshasa para os diferentes aeroportos
aqui perto. A comprar o que faltava ao meu vizinho para melhor acolher a esposa. A correr todas as lojas da Cruz Vermelha de roupa em segunda mão. A
servir de intérprete no percurso do combatente da burocracia belga… Às tantas,
já não tinha tempo para mim, nem para os meus. Muito menos para as traduções
que nestes últimos meses têm vindo em catadupa. O meu amor desabafou: “Ou arranjas
depressa emprego a tempo inteiro ou esta casa vai acabar por se transformar no
Exército da Salvação!”. Sem que nenhum de nós soubesse, estas palavras vieram a
revelar-se proféticas. Afinal, ajudar os outros acabou por me salvar a mim. Mas
isso fica para outra conversa, que este post já vai longo.