(de dentro para fora, sempre)
Em
Portugal, a vida passa muito pelo exterior. As vizinhas falam à janela ou no
patamar das escadas. Os amigos encontram-se no café. A família alargada reúne-se
no restaurante. A rua, latu sensu,
tem outra importância. Não há muito aquele hábito de entrar pela casa dos
outros adentro sem se fazer anunciar. Sem convite formal. Aqui, passa-se
exactamente o contrário. Cultiva-se o interior. Talvez porque o clima frio se
preste ao resguardo do lar. Ou porque ninguém tem o hábito de marcar encontro
em locais públicos, impessoais. De passagem. Há um bocado aquela ideia de que
os restaurantes e cafés foram feitos para comer, não para conviver. A família e
os amigos recebem-se em casa. E não precisam de convite para aparecer. Muito
menos de comida para se empanturrarem. Ditam as boas maneiras que se deve
avisar. Mas o anúncio é feito quando as visitas já estão praticamente a bater à
porta. Ora eu detesto visitas surpresa. Odeio receber gente em casa sem que
esteja tudo impecavelmente arrumado. O problema é que o Belga consegue ser
ainda mais português do que eu. Juntos, somos completamente ermitas. Este
Verão, os meus sogros ligaram a dizer que estavam no restaurante onde o Diogo
trabalha. O meu amor trocou algumas palavras, desejou-lhes um bom almoço e
desligou. Depois, ficámos a olhar um para o outro. Não foi preciso dizer nada.
Passou-nos o mesmo pela cabeça. A casa não estava muito arrumada. Nem propriamente
limpa. Não estávamos bem vestidos. E já tínhamos planos. É pá… mas se calhar
estávamos a exagerar. Também não era preciso sermos malcriados. E lá ligámos de
volta, a convidá-los para beber um café connosco. Em nossa casa, pois claro.
Tal como ela estava. Ou melhor, tal como ela ficou, em 15 minutos
contra-relógio.
O
mais ridículo disto tudo é que a nossa casa está sempre impecável. Se a
compararmos com a casa da típica família belga dir-se-ia que vivemos num museu.
Mas quando alguém aparece sem avisar, não me consigo conter. Começo logo a justificar-me:
“Desculpe lá, não ligue à desarrumação…” Invariavelmente, as pessoas arregalam
os olhos de espanto. Ou pensam que estou a brincar. Desfazem-se em elogios ao
ver os quartos dos nossos rapazes. A minha amiga Christine, que me conhece de
ginjeira, sabe bem que estou a falar a sério. Por isso, entra logo a gozar.
Queixa-se de que as janelas precisam de ser lavadas. Que o bolo não é fresco.
Que acabou de ver um bocadinho de cotão… Eu já nem lhe ligo porque, verdade
seja dita, a casa dela é das poucas que também está sempre impecável... não
fosse ela filha de uma portuguesa. Regra geral, os belgas são pessoas muito
descontraídas. Eu é que não. Só uma grande dose de descontracção permite expor o
nosso “interior” ao mundo.
Aqui
há uns tempos, o senhorio apareceu sem aviso. Estava a trabalhar no cimo do
terreno e o Vasco foi levar-lhe um café. Quando dei por ele, já estava sentado
na cozinha a comer uma fatia de bolo. Menos mal, de Domingo a 5ª há sempre bolo
nesta casa. Estava eu a preparar-me para começar a ladainha da desarrumação,
quando o senhorio se antecipou: “Gosto mesmo muito do que vocês fizeram à casa.
É igualzinha à do lado, mas ficou completamente diferente. Não sei como
conseguiram. Parece maior. Está sempre ordenada. É aquela coisa do Feng Shui, não é? É despojada ou lá
como se diz.” Larguei a rir. Acho que ele resumiu bem a nossa forma de estar na
vida: somos despojados. Expliquei-lhe que éramos adeptos ferrenhos da
organização. Que tínhamos a preocupação que não acumular. Acho que o perdi
quando comecei a dissertar sobre as vantagens de uma vida desprendida. O meu
amor apressou-se a servir-lhe mais um café e mudou de assunto. Pode ser ainda
mais obcecado do que eu, mas domina melhor a arte de fingir que somos normais.
Faz-me
imensa confusão quando ouço falar de estratégias para destralhar. Como se fosse
possível encarar este aspecto isoladamente. Como se bastasse “limpar” os armários.
Desfazermo-nos daquilo que já não queremos. O problema é muito mais vasto. É
todo um paradigma que tem de mudar. É perceber que é impossível termos ordem na
nossa vida enquanto o ambiente à nossa volta estiver poluído. É uma purga
transversal que começa na nossa cabeça e que acaba na nossa casa. Que passa
obrigatoriamente por uma certa higiene de vida que temos de cultivar. Por uma alimentação
o mais saudável possível. E por perceber que precisamos efectivamente de muito
pouco. Faz tudo parte do mesmo. Quando pensamos bem, todos os caminhos
convergem. É um processo. A verdade é que, quando as diferentes peças do puzzle
começam a encaixar, as coisas começam a fazer sentido. Aos poucos, sentimo-nos
melhor. Dentro e fora de portas. Sentimo-nos desprendidos. Livres.
Crescemos
com a ideia de que precisamos de muitas coisas. A sociedade actual apela
incessantemente ao consumo. A publicidade está sempre a inventar mais uma necessidade.
A verdade é que a minha geração não cresceu com muitas hipóteses de escolha.
Não havia Continentes, havia a mercearia do bairro. Não havia Fnacs, havia livrarias
e lojas de música. Não havia Staples, havia papelarias. Não havia Primarks,
havia a loja de roupa da esquina. Não havia Toys R Us, havia as lojas de
brinquedos no Rossio. Não havia Colombos, havia o Fonte Nova. E por aí fora… em
Lisboa, bem entendido. Principalmente, havia a ideia de que as coisas tinham um
certo custo e a longevidade inerente. Agora, quantas vezes não ouvimos: “Estraga-se
num instante, mas também é tão barato nos Chineses!”. Não admira que os quartos
dos nossos filhos estejam a abarrotar de brinquedos. Eu sei que o quarto dos
meus filhos em Portugal parecia uma loja de brinquedos. Mas também sei que
todas as pessoas que me criticavam, nessa altura, hoje têm os quartos dos
filhos exactamente no mesmo estado. E quem diz brinquedos, diz roupa, calçado,
produtos de higiene… As nossas casas de banho estão a abarrotar com produtos de
higiene cada vez mais sofisticados. Temos milhentos produtos de limpeza, cada
um com a sua função específica. Tudo isto exige espaço e arrumação. Felizmente
o Ikea trata do assunto. Sim, porque o velhinho Vassoureiro da minha infância
já fechou há muito.
Admito
que é mais fácil adoptar uma filosofia de vida despojada quando se tem hipótese
de recomeçar do zero, virando costas a tudo o que ficou para trás. Começa por
ser uma necessidade logística, espacial e mental. Transforma-se numa forma de estar
na vida, que se reflecte no ambiente que nos rodeia. A nossa casa quase não tem
móveis. O pouco mobiliário que temos é pequeno e tem uma função eminentemente
prática. O princípio é muito simples: quando nunca se acumula tralha, nunca é
preciso destralhar. Ora ninguém acumula coisas no meio do chão. Normalmente, as
casas têm arrumação. Demasiada arrumação. O segredo não é arrumar ocasionalmente
as gavetas, mas eliminar de vez as gavetas. Se tivermos apenas os móveis
indispensáveis aos bens que efectivamente usamos, é impossível acumular mais do
que precisamos. Por isso é que a nossa casa depressa nos parece desarrumada…
porque não há onde esconder nada. Não há prateleiras para poisar objectos
perdidos, nem armários para encafuar tarecos. Como diz o meu amor: “cada coisa
tem o seu lugar e cada lugar tem a sua coisa”.
Na
sala de jantar só precisamos de uma mesa e de quatro cadeiras. Mais um movelzinho
para arrumar os pequenos electrodomésticos. E um enorme mapa-mundo na parede
para sonharmos. Mais uma ou outra decoração que a minha mãe fez. Quando temos
convidados, vamos buscar mais cadeiras, desviando-as momentaneamente da sua
utilidade primária. As nossas quatro secretárias não têm gavetas, está tudo à
vista… logo, tem de estar sempre tudo arrumado. Em nossa casa, não há
guarda-fatos. Cada um de nós tem uma cómoda no quarto, com a roupa da estação
actual. Na casa das máquinas, temos armários maiores para guardar a roupa e o
calçado da estação anterior. Para entrar algo novo, algo velho tem de sair. Não
é complicado. Só compro um novo par de ténis, quando deito fora o velho. E isto
é válido para tudo. Uma frigideira está demasiado riscada, vai para a
reciclagem e compra-se uma nova. A mochila do Vasco está toda esfarrapada,
vai para o lixo e compra-se uma nova. Tudo é usado até ao final de vida. Ou, caso
deixe de ter utilidade, oferecemos a quem precise. Nem sequer é preciso ir
muito longe. Às vezes, mesmo ao nosso lado encontramos quem lhes dê novo uso.
Na Bélgica é muito comum as pessoas oferecerem aquilo que já não usam. Ninguém leva
a mal. Seja restos de comida, material escolar que já não é necessário ou roupa
que deixou de servir. Antes de dar a uma instituição ou de pôr nos contentores,
primeiro procura-se à nossa volta se há quem queira.
O
problema é que aprendemos a valorizar os objectos muito mais pelo seu aspecto
afectivo do que financeiro ou utilitário. Isto foi oferecido. Aquilo traz boas
memórias. Aqueloutro está associado a uma ocasião especial. E vamos acumulando
sem nos darmos conta. Há sempre espaço para mais uma coisinha. Seja lá o que
essa “coisinha” for... Um livro que nunca iremos ler. Um CD deixámos de apreciar.
Uma camisola lindíssima que ganhou borbotos. Um bibelot horroroso que nos
ofereceram. Uma caneta que deita tinta, mas que guardamos porque foi muito cara.
Um creme que vinha numa promoção. Uma caneca esbeiçada. Um medicamento que
passou de prazo há apenas um mês. Um frasco de compota que não gostámos, mas
que custa deitar fora. É preciso aprender a abrir mão das coisas. É preciso
cultivar o desprendimento. Por que raio hei-de guardar um casaco que raramente
uso se alguém pode aproveitá-lo?! Ou, pelo contrário, por que diabo hei-de
comprar uma nova televisão LCD se o velho mono funciona na perfeição? É este
equilíbrio que temos de aprender a gerir.
A
partir do momento em que a nossa casa tem apenas a arrumação estritamente
indispensável às nossas necessidades, basta limitarmo-nos a geri-la. E isto
representa um ganho de tempo considerável. Todos os nossos armários estão aproveitados
ao milímetro e organizados. Somos os especialistas das caixas e caixinhas, dos
cestos e cestinhos. Nos móveis da cozinha, creio que é imprescindível. Tenho o
cesto dos cereais e das leguminosas, o cesto das farinhas, o cesto dos produtos
de pastelaria, o cesto das especiarias, etc. E assim sucessivamente, em todos
os armários da casa. É prático e acho que fica mais bonito. A papelada e os
documentos estão todos classificados em dossiers
num pequeno móvel da sala. Os medicamentos estão todos no mesmo sítio, tal como
os produtos de limpeza ou de higiene. Nunca é preciso andar à procura de nada…
“cada coisa tem o seu lugar e cada lugar tem a sua coisa”. Simples. Agora só
tenho de começar a praticar a descontracção dos Belgas, para poder abrir a casa
às visitas inesperadas…
É pá, não. Tudo muito descontraído, tudo muito amigo, mas não me entrem pela casa sem serem convidados ou sem me darem a devida antecedência. A casa pode estar mais ou menos arrumada (mentira, está sempre arrumada) mas a minha cara vai estar de certeza pouco convidativa.
ResponderEliminarPois, também sou muito Tuga nisso! :) Ainda esta semana a vizinha do lado decidiu pular a cerca (literalmente), para vir beber um café comigo para não estarmos conversar de um quintal para o outro. Eu só lhe tinha perguntado se estava melhor...
EliminarAi, Rita! Se eu soubesse o que sei hoje...mas foi preciso desmanchar 4 casas que outros viveram e perceber que a maioria dos objectos só tem valor para quem o escolheu, usou e cuidou...Depois é a hora de decidir para quem vai, se é doado ou vendido por junto! E fecha-se a porta...Acontece que eu sou uma falhada a destralhar coisas minhas, acho que me vai fazer falta, quase me vejo no pós guerra a guardar material de sobrevivência...E preciso tanto de conseguir passar pelo seu processo, sem ser por razões tão penosas! Esta semana fui à IKEA e só me apetecia ter uma casinha daquelas que eles montam com o mínimo em vez de tanto serviço de café nunca usado ou serviços de chá com leiteirinhas à inglesa! Parabéns pelo estádio/estado desta fase da sua vida, que ele se prolongue por muitos e bons...Beijinhos e boa noite!
ResponderEliminarAs "leiteirinhas à inglesa" ficam lindas expostas na sala com suculentas lá dentro! ;)
EliminarBeijinho grande, Mariana.