sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Cabeleireiro-vidente

(e as suas outras mil facetas, todas elas cruelmente sinceras)


 
Entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.

É preciso que se diga que detesto gastar dinheiro em futilidades, por isso, não sou uma cliente fiel. Nos primeiros tempos na Bélgica, nem sequer havia verba para cortes de cabelos. Mas, com dois rapazes em casa, tive mesmo de arranjar uma solução. Íamos todos a Liège cortar o cabelo numa escola de cabeleireiros, a custo zero. Foi graças a essa escola que o meu amor arranjou coragem para me convidar para sair, pelo que estou imensamente grata àquelas miúdas tagarelas. O convite acabou por se transformar num jantar lá em casa com os miúdos. Romantismo zero, mas o cabelo estava impecavelmente cortado e com madeixas.

Entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.

Desde que nos mudámos, ainda ninguém cortou o cabelo. Felizmente os miúdos deixaram de precisar. Agora, é a primeira coisa que fazem, quando chegam a Portugal, para ficarem apresentáveis e sem ar de campónios parolos que vivem com uma desleixada. E eu parei de cortar o cabelo, desde que o meu amor se apaixonou pelas minhas longas madeixas. Entretanto, deixei de ter madeixas, porque deixei de cortar o cabelo. A escola de cabeleireiros exige cobaias que dêem livre-trânsito à imaginação das alunas. Não se pode chegar ali e pedir só para cortar as pontas, que as miúdas tagarelas entram em desespero. Portanto, acabou-se o cabeleireiro gratuito e tive de encontrar outra solução.

Entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.

Mas, antes, conheci a Glória. A tchía Glória para os minínus. Que além de nos cortar o cabeuo em tempo recorde, servia um cafezínhu e matava a saudadji da língua-mãe. Vá… da língua-irmã, no caso dela. Enquanto o Vasquinhiu estava na aula de solfejo em Barvaux, ela cortava o cabelo ao Djiôgo. Depois, invertíamos. Pelo meio, ainda havia um tempinhu para dar um jeicthinhu nas minhas pontas. Eu gostava muito da Glória, que me tratava por quirida e ainda me fazia um díscontchinhu às escondidas da patroa, porque éramos compatríôtas. Uma espécie de pátria unida pelo Atlântico, que ficou para trás quando os rapazes deixaram de ter aulas em Barvaux.

Entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.

A última vez que cortei o cabelo foi em Malempré, há muitos meses atrás. A minha vizinha cabeleireira aproveitava as folgas para desenrascar o mulherio e a miudagem lá da aldeia. O corte era quase sempre o mesmo, o que fazia com que o Diogo fugisse dela como o diabo da cruz. O Vasco ainda tentava convencê-la a fazer-lhe cristas e outras modernices, mas saía de lá igual aos outros rapazes todos de Malempré. Eu gostava da Leticia, que me recebia de cabelo ainda molhado, depois de deixarmos os miúdos na escola, e me cortava as pontas por 10 euros. E, no fim, nem sequer me chateava cá com brushings e coisas do estilo. Mas Malempré agora fica fora de mão.

Por isso, entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm. Apenas porque passei à porta e estava vazio. E o meu amor não estava comigo para zelar pelo comprimento do meu cabelo. Fiquei imenso tempo à espera que aparecesse alguém. Ainda pensei vir-me embora, quando me pus a olhar em volta para passar o tempo. Aquele salão era um bocado estranho. Não tinha aquele tipo de sacadores-capacete, nem expositores, nem posters nas paredes. Tinha dois lavatórios e três cadeiras em frente a um espelho. Um sofá com uma mesinha sem revistas nenhumas. O balcão à entrada estava vazio. Nem sombra de multibanco. Estava a fazer contas por alto para ver quanto dinheiro teria na carteira, quando finalmente apareceu um homem. Um homem com ar de trolha. Ténis velhos, calças de ganga rotas, pólo desbotado a tapar a barriga de cerveja… e meia dúzia de cabelos grisalhos no cimo da cabeça.


Eu: Bom-dia. Queria cortar o cabelo…
Trolha: Pois, só lhe posso fazer mesmo isso.
Eu: Não faz mal, eu só quero cortar o cabelo. Nada de muito complicado.
Cabeleireiro: Espero bem, no estado em que tem o cabelo não lhe posso fazer mais nada. De qualquer modo, nós aqui não fazemos permanentes nem nada dessas coisas que estragam o cabelo em nome da beleza. Salvo seja... Sente-se lá aqui.
Eu: Tenho perdido imenso cabelo. Muito, mesmo. Por isso, pensei que era melhor cortar um bom bocado.
Cabeleireiro: Hum, hum…
Eu: O que lhe parece?
Vidente: Que o pior já passou.
Eu: Como?
Vidente: Não se preocupe, o pior já passou. Isso foi um choque emocional que você sofreu há uns… uns… eu diria, uns dois ou três meses atrás. Caiu muito, mas já está a passar.
Eu: Ah, bom…
Vidente: Quer dizer, não ajudou muito estar com um problema de saúde. Isso deixa sempre uma pessoa mais fragilizada. Nesses casos, não há muito que se possa fazer. É esperar que passe.
Eu: E não ajuda comprar aqueles produtos anti-queda na farmácia?
Farmacêutico: Normalmente, não. No seu caso específico, como há um problema de saúde subjacente, pode comprar um complexo vitamínico. Vai ajudá-la.
Eu: Desculpe lá… mas como é que sabe isso tudo, só de mexer no meu cabelo?!
Vidente: O cabelo é a parte morta do nosso corpo. O seu cabelo mostra-me o seu passado, é simples.
Eu: Dito assim, parece um bocadinho estranho…
Vidente: Não, nem por isso. É só uma questão de se saber analisar o que o cabelo diz.
Eu: É que nunca ninguém me tinha dito isso.
Director de Recursos Humanos: Cada um nasce para o que nasce. Ser cabeleireiro é também saber analisar o cabelo que temos entre mãos. Você faz o quê?
Eu: Muitas coisas. Sou tradutora.
Director de Recursos Humanos: Devia era ir trabalhar para o Luxemburgo. Os salários são muito mais elevados.
Eu: Pois, mas eu não sei falar luxemburguês.
Linguista: O luxemburguês é apenas uma espécie de dialecto local. Uma mistura de alemão de má qualidade com francês. O essencial é falar outras línguas. E português, claro.
Eu: Como é que sabe que eu sou portuguesa?
Linguista: Tenho várias clientes portuguesas. Nota-se no vosso sotaque.
Eu: Há mais portugueses em Vielsalm?!
Cabeleireiro de renome: Que eu saiba, não. As minhas clientes vêm de Trois Vierges, no Luxemburgo.
Eu: Ah…
Cabeleireiro de renome: Então, como é que vamos cortar?
Eu: Não sei. Corte o que achar que é preciso. Não faz mal se tiver de cortar curto.
Consultor de imagem: Isso, não. Você tem uma cara toda redonda, fica-lhe mal o cabelo curto.
Eu: Eu também acho! É por isso que tenho sempre o cabelo comprido.
Consultor de imagem: Mas não lhe fica nada bem, sabe? Você é muito pequena e o cabelo comprido só piora.
Eu: Ah, pronto…
Consultor de imagem: E também não ajuda nada ter o cabelo comprido nessa desgraça... Mais vale tê-lo mais curto, mas bem cuidado.
Eu: Olhe, então, corte como quiser.
Vidente: Era o que eu ia fazer de qualquer modo. Temos de cortar aí uns bons 15 centímetros do seu passado.
Eu: Tanto?
Vidente: Eu faço o meu trabalho. Vou deixá-la com uns cabelos saudáveis. Primeiro que tudo, saudáveis. Você trate da sua saúde e deixe de viver sob esse stress permanente, está bem?
Eu: Ok…
Consultor de imagem: E pare lá de fazer experiências com a cor, sim? O que lhe fica bem é o seu castanho claro natural. Não se ponha a inventar, está bem?
Eu: Não são bem experiências… às vezes, compro o que está em promoção. Outras vezes, deixo os miúdos escolherem a cor. Ah… e também já me aconteceu não chegar às caixas que estão lá mais em cima e trazer uma qualquer da prateleira mais baixa…
Consultor de imagem: Hein?! Olhe, concentre-se no tom da cor e não na marca, sim? Sempre fica mais fácil e faz menos disparates.
Eu: Ok…
Psicólogo: Afinal, o que se passa na sua vida?
Eu: Tenho um filho adolescente. É complicado.
Pedopsiquiatra: Isso é exactamente a mesma coisa que com a queda de cabelo. É acalmar-se, manter-se saudável e esperar que passe. Passa sempre, sabe? Eles um dia voltam ao normal. Parece grave, mas é sempre passageiro.
 
E, pronto... Uma hora depois, saí de lá mais leve. O cabelo ficou pelos ombros, escadeado. O meu amor diz que adora, mas acho que é só para me animar. Os miúdos nem notaram. Não fosse o caso de o cabelo curto me ficar tão mal porque tenho uma cara de lua-cheia, ainda um dia experimentava chegar a casa careca para ser se eles reparavam. Desconfio que enquanto a comida estiver na mesa a horas (e em abundância), nenhum dos meus filhos dá pela diferença. Quando reclamei, o Vasco veio a correr abraçar-me. Disse-me que para ele sou sempre bonita porque sou mãe. É o que interessa. Isso e a comida na mesa, claro.

5 comentários:

  1. Este post dava um conto, no mínimo.

    Mas eu morria se um cabeleireiro me falasse assim. Morria e nunca mais entrava num cabeleireiro, deusmelivre.

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  2. Pena que seja longe... Era mesmo dum desses que eu precisava!

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  3. Pá... admito que foi uma experiência um bocadinho perturbadora! :p

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