(e
as suas outras mil facetas, todas elas cruelmente sinceras)
Entrei
por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.
É
preciso que se diga que detesto gastar dinheiro em futilidades, por isso, não
sou uma cliente fiel. Nos primeiros tempos na Bélgica, nem sequer havia verba
para cortes de cabelos. Mas, com dois rapazes em casa, tive mesmo de arranjar
uma solução. Íamos todos a Liège cortar o cabelo numa escola de cabeleireiros,
a custo zero. Foi graças a essa escola que o meu amor arranjou coragem para me
convidar para sair, pelo que estou imensamente grata àquelas miúdas tagarelas.
O convite acabou por se transformar num jantar lá em casa com os miúdos.
Romantismo zero, mas o cabelo estava impecavelmente cortado e com madeixas.
Entrei
por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.
Desde
que nos mudámos, ainda ninguém cortou o cabelo. Felizmente os miúdos deixaram
de precisar. Agora, é a primeira coisa que fazem, quando chegam a Portugal,
para ficarem apresentáveis e sem ar de campónios parolos que vivem com uma
desleixada. E eu parei de cortar o cabelo, desde que o meu amor se apaixonou
pelas minhas longas madeixas. Entretanto, deixei de ter madeixas, porque deixei
de cortar o cabelo. A escola de cabeleireiros exige cobaias que dêem livre-trânsito
à imaginação das alunas. Não se pode chegar ali e pedir só para cortar as pontas,
que as miúdas tagarelas entram em desespero. Portanto, acabou-se o cabeleireiro
gratuito e tive de encontrar outra solução.
Entrei
por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.
Mas,
antes, conheci a Glória. A tchía Glória
para os minínus. Que além de nos
cortar o cabeuo em tempo recorde, servia
um cafezínhu e matava a saudadji da língua-mãe. Vá… da
língua-irmã, no caso dela. Enquanto o Vasquinhiu
estava na aula de solfejo em Barvaux, ela cortava o cabelo ao Djiôgo. Depois, invertíamos. Pelo meio,
ainda havia um tempinhu para dar um jeicthinhu nas minhas pontas. Eu gostava
muito da Glória, que me tratava por quirida
e ainda me fazia um díscontchinhu às
escondidas da patroa, porque éramos compatríôtas.
Uma espécie de pátria unida pelo Atlântico, que ficou para trás quando os
rapazes deixaram de ter aulas em Barvaux.
Entrei
por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm.
A
última vez que cortei o cabelo foi em Malempré, há muitos meses atrás. A minha
vizinha cabeleireira aproveitava as folgas para desenrascar o mulherio e a miudagem
lá da aldeia. O corte era quase sempre o mesmo, o que fazia com que o Diogo
fugisse dela como o diabo da cruz. O Vasco ainda tentava convencê-la a
fazer-lhe cristas e outras modernices, mas saía de lá igual aos outros rapazes
todos de Malempré. Eu gostava da Leticia, que me recebia de cabelo ainda
molhado, depois de deixarmos os miúdos na escola, e me cortava as pontas por 10
euros. E, no fim, nem sequer me chateava cá com brushings e coisas do estilo. Mas Malempré agora fica fora de mão.
Por
isso, entrei por impulso num cabeleireiro, em Vielsalm. Apenas porque passei à
porta e estava vazio. E o meu amor não estava comigo para zelar pelo comprimento
do meu cabelo. Fiquei imenso tempo à espera que aparecesse alguém. Ainda pensei
vir-me embora, quando me pus a olhar em volta para passar o tempo. Aquele salão
era um bocado estranho. Não tinha aquele tipo de sacadores-capacete, nem
expositores, nem posters nas paredes. Tinha dois lavatórios e três cadeiras em
frente a um espelho. Um sofá com uma mesinha sem revistas nenhumas. O balcão à
entrada estava vazio. Nem sombra de multibanco. Estava a fazer contas por alto
para ver quanto dinheiro teria na carteira, quando finalmente apareceu um homem.
Um homem com ar de trolha. Ténis velhos, calças de ganga rotas, pólo desbotado
a tapar a barriga de cerveja… e meia dúzia de cabelos grisalhos no cimo da
cabeça.
Eu:
Bom-dia. Queria cortar o cabelo…
Trolha:
Pois, só lhe posso fazer mesmo isso.
Eu:
Não faz mal, eu só quero cortar o cabelo. Nada de muito complicado.
Cabeleireiro:
Espero bem, no estado em que tem o cabelo não lhe posso fazer mais nada.
De qualquer modo, nós aqui não fazemos permanentes nem nada dessas coisas que estragam o cabelo em nome da beleza. Salvo seja... Sente-se lá aqui.
Eu:
Tenho perdido imenso cabelo. Muito, mesmo. Por isso, pensei que era melhor
cortar um bom bocado.
Cabeleireiro:
Hum, hum…
Eu:
O que lhe parece?
Vidente:
Que o pior já passou.
Eu:
Como?
Vidente:
Não se preocupe, o pior já passou. Isso foi um choque emocional que você sofreu
há uns… uns… eu diria, uns dois ou três meses atrás. Caiu muito, mas já está a
passar.
Eu:
Ah, bom…
Vidente:
Quer dizer, não ajudou muito estar com um problema de saúde. Isso deixa sempre
uma pessoa mais fragilizada. Nesses casos, não há muito que se possa fazer. É
esperar que passe.
Eu:
E não ajuda comprar aqueles produtos anti-queda na farmácia?
Farmacêutico:
Normalmente, não. No seu caso específico, como há um problema de saúde
subjacente, pode comprar um complexo vitamínico. Vai ajudá-la.
Eu:
Desculpe lá… mas como é que sabe isso tudo, só de mexer no meu cabelo?!
Vidente:
O cabelo é a parte morta do nosso corpo. O seu cabelo mostra-me o seu passado,
é simples.
Eu:
Dito assim, parece um bocadinho estranho…
Vidente:
Não, nem por isso. É só uma questão de se saber analisar o que o cabelo diz.
Eu:
É que nunca ninguém me tinha dito isso.
Director
de Recursos Humanos: Cada um nasce para o que nasce. Ser cabeleireiro é também
saber analisar o cabelo que temos entre mãos. Você faz o quê?
Eu:
Muitas coisas. Sou tradutora.
Director
de Recursos Humanos: Devia era ir trabalhar para o Luxemburgo. Os salários são
muito mais elevados.
Eu:
Pois, mas eu não sei falar luxemburguês.
Linguista:
O luxemburguês é apenas uma espécie de dialecto local. Uma mistura de alemão de
má qualidade com francês. O essencial é falar outras línguas. E português,
claro.
Eu:
Como é que sabe que eu sou portuguesa?
Linguista:
Tenho várias clientes portuguesas. Nota-se no vosso sotaque.
Eu:
Há mais portugueses em Vielsalm?!
Cabeleireiro
de renome: Que eu saiba, não. As minhas clientes vêm de Trois Vierges, no
Luxemburgo.
Eu:
Ah…
Cabeleireiro
de renome: Então, como é que vamos cortar?
Eu:
Não sei. Corte o que achar que é preciso. Não faz mal se tiver de cortar curto.
Consultor
de imagem: Isso, não. Você tem uma cara toda redonda, fica-lhe mal o cabelo
curto.
Eu:
Eu também acho! É por isso que tenho sempre o cabelo comprido.
Consultor
de imagem: Mas não lhe fica nada bem, sabe? Você é muito pequena e o cabelo
comprido só piora.
Eu:
Ah, pronto…
Consultor
de imagem: E também não ajuda nada ter o cabelo comprido nessa desgraça... Mais
vale tê-lo mais curto, mas bem cuidado.
Eu:
Olhe, então, corte como quiser.
Vidente:
Era o que eu ia fazer de qualquer modo. Temos de cortar aí uns bons 15
centímetros do seu passado.
Eu:
Tanto?
Vidente:
Eu faço o meu trabalho. Vou deixá-la com uns cabelos saudáveis. Primeiro que
tudo, saudáveis. Você trate da sua saúde e deixe de viver sob esse stress
permanente, está bem?
Eu:
Ok…
Consultor
de imagem: E pare lá de fazer experiências com a cor, sim? O que lhe fica bem é
o seu castanho claro natural. Não se ponha a inventar, está bem?
Eu:
Não são bem experiências… às vezes, compro o que está em promoção. Outras vezes,
deixo os miúdos escolherem a cor. Ah… e também já me aconteceu não chegar às
caixas que estão lá mais em cima e trazer uma qualquer da prateleira mais baixa…
Consultor
de imagem: Hein?! Olhe, concentre-se no tom da cor e não na marca, sim? Sempre
fica mais fácil e faz menos disparates.
Eu:
Ok…
Psicólogo:
Afinal, o que se passa na sua vida?
Eu:
Tenho um filho adolescente. É complicado.
Pedopsiquiatra:
Isso é exactamente a mesma coisa que com a queda de cabelo. É acalmar-se,
manter-se saudável e esperar que passe. Passa sempre, sabe? Eles um dia voltam
ao normal. Parece grave, mas é sempre passageiro.
E, pronto... Uma
hora depois, saí de lá mais leve. O cabelo ficou pelos ombros, escadeado. O meu
amor diz que adora, mas acho que é só para me animar. Os miúdos nem notaram.
Não fosse o caso de o cabelo curto me ficar tão mal porque tenho uma cara de
lua-cheia, ainda um dia experimentava chegar a casa careca para ser se eles
reparavam. Desconfio que enquanto a comida estiver na mesa a horas (e em
abundância), nenhum dos meus filhos dá pela diferença. Quando reclamei, o Vasco
veio a correr abraçar-me. Disse-me que para ele sou sempre bonita porque sou
mãe. É o que interessa. Isso e a comida na mesa, claro.
Este post dava um conto, no mínimo.
ResponderEliminarMas eu morria se um cabeleireiro me falasse assim. Morria e nunca mais entrava num cabeleireiro, deusmelivre.
Ahahahah
ResponderEliminarAdorei! Adorei!
Pena que seja longe... Era mesmo dum desses que eu precisava!
ResponderEliminarAi tão bom este texto!
ResponderEliminarPá... admito que foi uma experiência um bocadinho perturbadora! :p
ResponderEliminar